Concurso literário do TJ-SP – crônica enviada

Pedro e o Registro Civil. Uma história singular   (*)

 

Sou oficial de registro civil e tabelião de notas em  uma cidade pequena. Em minha atuação profissional no cartório tenho lidado com pessoas e situações das mais diversas; algumas curiosas, outras tristes, não raro, difíceis e complicadas. Entretanto, com referência a um cidadão em particular, meu relacionamento profissional não pode ser definido senão com uma palavra: inesquecível.

Conheci o Pedro da Silva há alguns anos quando, ainda adolescente, ele aproximou-se do balcão de atendimento ao público e chamando pelo meu nome, perguntou:

Seu Antonio! Como eu faço para me emancipar?

Respondi então para aquele rapaz tão ansioso: É preciso fazer uma escritura pública de emancipação. Se você é maior de 16 e menor de 18 e anos, seus pais podem lhe emancipar para que você passe e ser considerado civilmente capaz.

– Mas eu vou poder pilotar a minha moto?

Evidente que não! respondi. A legislação de trânsito não permite que os menores de 18 anos, ainda que emancipados venham a pilotar veículos automotores.

-É… Eu achava que era assim mesmo. Que não ia dar certo, nem com a emancipação. Ainda mais se dependesse da assinatura da minha mãe…

Então aquele rapaz, cujo nome ainda nem era de meu conhecimento, contou-me sua história curiosa.

Ele e um amigo, da mesma idade, nos últimos meses, vinham fazendo um trabalho para um conhecido que lidava com o jogo do bicho e, boa parte do pouco dinheiro que ganhavam, investiam na casa, ou seja, jogavam em um número (que ele me disse ser o número da placa de um carro de luxo que, certa feita, viu passar defronte sua casa).

Quis o acaso que, na semana anterior, aquele número tão especial fosse sorteado e que a dupla de rapazes se visse de posse de uma quantia razoável de dinheiro.

Ora, como o jogo segue à margem da legalidade, não existiu a mínima dificuldade para que o bicheiro, seu conhecido, lhes pagasse o prêmio devido pelo sorteio.

O valor recebido por ele e seu colega, não era o suficiente para a compra daquele carro sofisticado e tão desejado, mas era o bastante para comprar a moto do Sebastião. É verdade que aquela moto estava com os pneus em péssimo estado e o documento estava atrasado, mas ela funcionava relativamente bem e poderia representar liberdade e autonomia para os rapazes.

Como seria de esperar, os pais do Pedro, não puderam aceitar e concordar com tão irresponsável aquisição. Aliás, como vim a descobrir em uma ocasião futura, eles nem sabiam desta ocupação profissional (ou melhor, desta contravenção tão comum nas cidades deste país) a que se filho se dedicava em seus momentos de folga escolar.

Era, então, esta situação e as intermináveis discussões domésticas, que dela resultavam, a causa daquele desejo ansioso de auto-emancipação.

Na verdade, penso que a palavra que melhor definiria tal desejo juvenil deste rapaz não seria auto-emancipação e sim moto-emancipação.

Diante da dificuldade da realização daquele ato jurídico e de sua evidente inaptidão para resolver o problema existente, o assunto foi esquecido.

Por muitos meses não tornei a ver aquele rapaz. Até que um dia ele apareceu novamente sozinho no cartório, muito sorridente e cheio de si.

Seu Antonio! – cidade pequena, todos sabem o nome do único oficial de registro civil e tabelião mas, evidente, que o tabelião não conhece a todos; até aquele momento, eu ainda não sabia o nome daquele jovem, mas imediatamente lembrei-me da história do jogo do bicho, da moto e da emancipação que não ocorreu.

-Como eu faço para me casar!

Você já é de maior idade? Perguntei.

Fiz dezoito em fevereiro, ele me respondeu.

É preciso que você, sua noiva e duas testemunhas venham dar entrada nos papéis para a habilitação… já ia lhe entregando uma relação escrita com os documentos necessários quando ele me interrompeu.

– É que eu quero fazer uma surpresa para ela!

Não acreditei no que ouvi. Como?! Surpresa? Você quer fazer um casamento surpresa? Perguntei incrédulo.

Isso mesmo. No sábado eu dei uma aliança para ela – exibindo-me a mão direita, pude ver que em seu dedo anular brilhava uma larga aliança dourada, certamente o par daquela outra que afirmou haver entregado para a noiva – Ela disse que aceitava se casar comigo! Eu quero então deixar tudo prontinho e trazer ela aqui, de surpresa, pra gente casar!

Se fosse mesmo um cliente comum, não seria inesquecível. Evidente que também naquela ocasião não pude atender o desejo daquele rapaz.

Mas esta história, teve um desenrolar diferente da outra. 

Passadas algumas semanas, retornaram ao cartório, o Pedro da Silva – quando então tomei conhecimento de seu nome – sua noiva, Roseli, um tio da moça e ainda um amigo comum, para então, correta e regularmente, dar início ao processo formal da habilitação para o casamento e que, ao final, efetivamente culminou com a realização da cerimônia.

No processo de habilitação, após os esclarecimentos sobre a possibilidade de, em virtude do casamento, ocorrer o acréscimo do nome do outro cônjuge, a Roseli decidiu que passaria a assinar Roseli dos Santos Silva e o Pedro também assim o fez; ele decidiu que iria mudar o seu nome e adotando o nome dela (primeiro caso lá no cartório),  após o casamento, passaria a assinar  Pedro dos Santos Silva.

Parece que tudo que é diferente e pouco usual atrai aquele rapaz. Ao explicar para ambos os diferentes regimes de bens a regular o casamento, houve um momento de dúvida. O Pedro, demonstrou grande interesse pelo regime da participação final nos aquestos. Penso que se não fosse pela necessidade da realização de uma escritura de pacto antenupcial e de um registro posterior, no cartório de registro de imóveis, ele iria preferir este regime tão pouco usual. O fato é que sua noiva, muito mais prática e objetiva, defendendo a realização do casamento sob o regime comum, o convenceu de que o melhor para eles era mesmo o regime comum. Foi escolhida então a comunhão parcial de bens, dispensado o pacto antenupcial e qualquer outra formalidade.

Naquela ocasião, não resistindo a curiosidade, perguntei ao Pedro sobre o destino daquela mota que o havia incentivado a buscar no passado a sua emancipação.

Ele me contou então que, além de duas cicatrizes em sua perna direita, da moto só lhe restou um Certificado de Registro de Veículo (que nem mesmo em seu nome está). A moto foi apreendida pela polícia e levada ao pátio da delegação, de onde nunca mais saiu.

Com a apreensão da moto, perdeu-se a amizade com aquele companheiro de aventuras mas, pelo menos, findaram-se as intermináveis discussões em sua casa. Encerrando o assunto, ele então me disse que aquilo tudo, que começou como uma sorte grande, representou, na verdade, o maior azar da sua vida.

Mas os dias seguem o seu curso. Transcorrido o prazo dos editais, em diligência, num sábado, às 20:00h., o juiz de paz e eu realizamos aquele casamento do Pedro e da Roseli.

Cerimonial realizado com muito capricho e cuidado. Salão de festas enfeitado;  noiva vestida de noiva; muitos padrinhos  (que, para o registro, são apenas testemunhas do ato). Todos fizeram questão de assinar o termo de casamento, quase nem foi deixada uma linha para minha assinatura ao final da página. Enfim, um casamento como tantos outros, realizado sob a expectativa de um amor que, se não eterno, ao menos infinito enquanto dure.

Mas durou pouco. Muito pouco. Um recorde negativo, eu acho.

Passados aproximados três meses do casamento, recebi no cartório uma pessoa cabisbaixa e abatida que quase nem reconheci:

-Seu Antonio! Como eu faço para me divorciar?  

Era o Pedro dos Santos Silva. Não acreditei no que ouvi:

-Como?! Divórcio? Mas você acabou de se casar? Perguntei incrédulo.

Ele contou-me então em poucas palavras a história de seu breve casamento. O desentendimento se deu por causa dos trabalhos intermináveis na fazenda, para onde ambos se mudaram logo após o casamento.

O Pedro me disse que nunca tinha trabalhado tanto na vida. Era acordar todos os dias antes do sol nascer, sem final de semana ou feriado, para um cuidado sem fim de animais e plantações. Serviço pesado que nunca acaba e, pior ainda, não lhe rendia quase nada.

Aquilo não era vida… Ele então deu um ultimato para a Roseli. Ali não ficaria mais, ela que o acompanhasse de volta para a cidade ou estaria tudo acabado.

Como ela não quis vir; ele veio só e agora quer o divórcio.

Claro que, em se tratando do Pedro (lembrei-me da história do casamento surpresa), não pude deixar de questionar se ela já estava ciente desta sua intenção.

Mas, Pedro, vocês não tem filhos menores? (ingênua esta pergunta, pelo tempo do casamento, filhos somente se ainda em gestação). – Vocês vão precisar da assistência de advogado comum ou individual.  Será preciso decidir sobre partilha de bens e pensão alimentícia…

Neste caso, o acaso conspirou a favor daquela intenção. A recente promulgação da Emenda Constitucional nº 66, que aboliu do nosso sistema a figura da separação prévia e o decurso de prazo mínimo para a realização de divórcio, somada à disposição da Lei 11.441/2007, que permitia a realização do divórcio extrajudicial, tornaram possível, em tese, com facilidade, atender ao seu desejo de por fim a tão breve casamento.

Não existiam filhos e ela nem grávida estava. O Pedro tinha um amigo advogado (do tempo em que trabalhava no jogo do bicho) e a Roseli também se demonstrou convicta de que o divórcio era solução para ambos. Ambos dispensaram-se mutuamente de qualquer pagamento de pensão.

Sobre a divisão dos bens do casal, mais uma história curiosa: como um dos padrinhos do casamento, ao tomar conhecimento da separação, reclamou de tamanha irresponsabilidade, do exagero daquela festa e de que o casamento foi  uma verdadeira palhaçada; o Pedro e a Roseli decidiram então, por devolver a maior parte dos presentes para quem os havida dado.

Verificado que não existia a possibilidade ou interesse na reconciliação, após pouco mais de duas semanas, foi lavrada a escritura de divórcio, ali mesmo no cartório, que tem como anexo o serviço de Tabelionato.

Averbado o divórcio diante do termo de casamento. Entregues as certidões de casamento com a devida averbação, o Pedro e a Roseli, agora divorciados, poderiam então seguir novos rumos em suas vidas.

Mas eles não fizeram isso.

-Seu Antonio! Como eu faço para desmanchar o divórcio?

Era o Pedro, de novo, ali no balcão. Todo alegre, radiante de felicidade, numa manhã de segunda feira, três semanas depois de seu divórcio. 

Confesso que, na hora, não entendi o alcance da pergunta. Apenas consegui responder aquela pergunta com outras perguntas:

Desmanchar um divórcio? Como assim? Reconciliar?

-É!  Ele respondeu. Nós estamos juntos outra vez; a gente quer ficar casados de novo. E ela está grávida agora.

Difícil crer em tal situação. A realidade é mesmo mais surpreendente do que qualquer novela da televisão.

– Pedro, Não dá para desmanchar o divórcio feito. Vocês foram avisados sobre isso. Lembra… Eu e o advogado falamos isso naquele dia, vocês disseram expressamente que estavam convencidos de que não existia interesse na reconciliação. Vocês vão ter de casar novamente.

Ele, que estava eufórico, com a nova perspectiva de vida em comum e com o nascimento de um filho esperado contou-me então que o processo de reconciliação somente começou no dia em que assinaram aquela escritura de divórcio. Que, sendo pessoas de boa educação, apesar do divórcio, haviam se comprometido em manter uma relação de amizade e respeito. Que no dia da assinatura daquela escritura de divórcio, foram jantar na pizzaria de um amigo comum e que ali mesmo, combinaram uma inocente noite de prazer. Eram pessoas descompromissadas e não haveria problema algum em fazer uma visita ao conhecido motel de cidade vizinha…

Aquele primeiro e descompromissado  reencontro repetiu-se por algumas vezes e na sexta-feira passada a Roseli confirmou seu estado de gravidez.

No final de semana acabaram-se as dúvidas. Eles decidiram unir-se novamente, desmanchando o divórcio ou casando de novo, se fosse necessário.

E, na medida em que era necessário novo casamento, assim foi feito.

Desta vez muito mais simples e sem cerimônia. Ali no balcão do cartório, mesmo; sem qualquer luxo, cerimônia ou traje de gala. Presentes apenas as duas testemunhas do ato e os pais da Roseli.

Pitoresco neste segundo casamento foram os desdobramentos da publicação do Edital de Proclamas, no jornal local. Na verdade, ao enviar para publicação aquele edital, que era praticamente igual a outro publicado há tão pouco tempo, fiz um comentário como o responsável pela publicação.

– Cuidado Seu João! Não vale publicar o mesmo edital. Agora o estado civil deles é diferente; eles são divorciados.

Corretamente publicado, o edital causou alguma repercussão na cidade.

Embora não seja do conhecimento de muitos, o fato é existem leitores que realmente gostam de acompanhar os editais de casamento publicados na imprensa. Existe uma curiosidade em saber sobre quais seriam as pessoas da comunidade que marcaram para breve, o seu casamento.

Os leitores dos editais efetivamente perceberam e estranharam o fato e manifestaram-se ao jornal sobre ele. Segundo me disse o Sr João Luiz, editor daquela publicação, houve um leitor que, com ironia afirmou que o jornal estaria com falta de assunto para publicar, pois estaria reproduzindo novamente o mesmo edital que havia sido publicado no ano passado.

Outro leitor o avisou de que o Pedro e Roseli já eram casados entre si e que o edital estaria errado, pois não poderia haver novo casamento entre eles (muita gente não sabe mesmo que isso é possível). Um terceiro ainda, lhe telefonou perguntando sobre o motivo de se constar neste novo edital que eles eram divorciados. Este leitor questionou se teria havido erro naquele edital anteriormente publicado e se eventualmento o casamento realizado – do qual ele tomou conhecimento e participou da festa realizada – teria sido cancelado por esta particularidade…

  O fato é que para a Roseli, novamente casada com o Pedro, transcorreu com tranquilidade a gestação do primeiro filho do casal.

O nascimento do bebê, um menino – parto normal e sem incidentes – ocorreu na maternidade da cidade vizinha. O casal, entretanto, decidiu por não aceitar a realização do registro naquela maternidade, pois desejava registrar seu filho no cartório da cidade de sua residência, o mesmo cartório onde estão registrados os seus nascimentos e casamento (na verdade, os dois casamentos).

No quarto dia após o nascimento da criança, o Pedro a Roseli e o próprio bebê a ser registrado, apareceram lá no cartório.

– Seu Antonio, vim registrar o Pedrinho!

– Opa! Parabéns! Vamos então fazer o registro do menino… Então, será Pedro Júnior ou Pedro Filho?

– Nada disso. O nome é Pedro II dos Santos Silva.

Tinha mesmo que ser assim… Quando se trata do Pedro, nada é trivial e comum.

Foi preciso convencê-lo que um numeral não deveria fazer parte de um nome próprio. Que este numeral pode ser considerado vexatório para a criança. Que ao escrever “II”, poucos entenderão que a pronúncia desejada será “segundo”. Que embora eles, pais, possuam liberdade para escolher o nome de seu filho eu, como Oficial de Registro Civil, tenho a obrigação de recusar a realização de um registro de nascimento que possua potencial para expor o seu portador ao ridículo e que diante da insistência deveria o Juiz de Direito ser consultado, em um procedimento de dúvida registraria…

Mas decidimos fazer concessões mútuas.

Concordamos todos em abandonar o uso daquele numeral romano: o Pedrinho haverá de se chamar PEDRO SEGUNDO.

E assim o registro foi feito.

Após entregar a certidão de nascimento para ele – certidão impressa no novo papel de segurança, fornecido gratuitamente pela Casa da Moeda do Brasil, em formato padronizado nacionalmente, contendo um imenso e misterioso número de matrícula – parabenizar novamente o casal pelo nascimento daquela criança e fazendo votos de felicidade e saúde para o bebê, vendo-os partir em direção à rua, permaneci ali, recostado no granito, por alguns instantes a imaginar qual será a próxima surpresa que o Pedro me reserva. Ainda mais agora, são dois. 

 Julho / 2013

 

(*) os nomes e fatos citados neste texto são fictícios, embora inspirados em situações efetivamente ocorridas em diversos cartórios extrajudiciais. Eventual semelhança com pessoas e ocorrências em particular, deve ser considerada mera coincidência.

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EXIBINDO 0 COMENTÁRIOS

  1. CECILIA disse:

    Parabéns Marco Antônio, realmente o Registro Civil nos proporciona histórias emocionantes e hilárias como nenhuma outra Serventia, sinto saudades. Excelente crônica.

    Att,

    Cecília da Costa Luz Lourenço Pacheco
    Ex-Registradora Civil e Tabeliã de Notas de Marabá Paulista – SP
    Registradora de Imóveis e Anexos de Santa Rosa de Viterbo – SP.

  2. Talita Scariot Ferrente disse:

    Parabéns pela maravilhosa colocação das palavras ao relatar situações rotineiras de registradores e tabeliães de típicas cidades do interior! E assim passamos nossos dias recebendo e qualificando a vontade de todos os usuários que nos surpreendem com suas maravilhosas criações.
    Talita Scariot Ferrente
    Registradora Civil do 2º Subdistrito de Botucatu
    Ex-registradora Civil e Tabeliã de Parapuã

  3. J. Hildor disse:

    E daqui a pouco o Pedro Segundo vai procurar o “seu” Antônio para saber sobre emancipação, depois para casar, descasar, casar, e registrar o nascimento do Pedro III.
    É a vida que se repete.
    Parabéns ao autor pelo belo texto.

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