Diálogos para a

                 
 

Diálogos para a “Desjudicialização": As Serventias Extrajudiciais como aliadas do Poder Judiciário

 

Por Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro*

 

Dada a grande relevância que o tema tem assumido no cenário atual, parece-nos imprescindível tecer algumas linhas propedêuticas consistentes, em realidade, em projetar breves reflexões reputadas essenciais para a escorreita compreensão desse importante movimento institucional que vem se consagrando como “desjudicialização”.

A toda evidência, considera-se superada a necessidade de se justificar os motivos pelos quais se faz necessário desafogar o Poder Judiciário. Os dados são objetivos e perceptíveis a olho nu, até mesmo para os que não operam na seara jurídica.

Com efeito, tem-se que hoje questões de baixa ou pouca complexidade, especialmente quando orientadas pelo consensualismo das partes envolvidas, não necessitam da presença de um magistrado, investido na função jurisdicional. Resulta claro que há meios outros de se chegar ao mesmo resultado final sem que a máquina do Poder Judiciário seja movimentada.  

De pronto, deve-se colocar em evidência que não é objetivo trancar as portas do Poder Judiciário para o cidadão. Não é isso. Trata-se, apenas, de criar alternativas para que as pessoas possam resolver questões jurídicas simplificadas de maneira mais fácil, ágil e descomplicada. 

Nessa atmosfera, o que se pretende é tão somente permitir que as partes de uma relação jurídica possam trilhar outro caminho para chegar ao mesmo resultado que se alcançaria com a presença de um juiz. A ideia é, pois, tornar o Judiciário a ultima ratio, confiando-lhe somente as causas de alta complexidade e de intensa litigiosidade. 

Reafirme-se, assim, que a intenção de criar meios alternativos de solução de questões jurídicas não será empecilho algum para que as partes, querendo, possam se socorrer do Poder Judiciário, até porque este acesso é inafastável e constitucionalmente consagrado (art. 5º, XXXV, da CF).

Exatamente nesse cenário é que emerge com vigor as serventias extrajudiciais como grande aliadas do Poder Judiciário. O ponto fulcral é a criação de uma sistemática de cooperação harmoniosa de funções entre juízes e notários/registradores.     

Entrementes, antes de qualquer passo, faz-se necessária uma deferência. Singela, mas indispensável. Um dos maiores responsáveis pela valorização do setor extrajudicial no quadro contemporâneo – especialmente no viés aqui tratado de consagrar a atividade notarial e registral como importante fonte auxiliadora do Poder Judiciário – foi (e ainda é), sem dúvida, o desembargador José Renato Nalini, que atualmente encontra-se à frente da presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em conseqüência, de sua busca incessante pela melhoria da prestação jurisdicional no País, vem se construindo primado de valor imensurável para o extrajudicial no direito brasileiro. Feita esta menção honrosa, cumpre investigar qual a importância dos cartórios nesse movimento de desjudicialização.

O aparato jurídico que hoje se tem de formatação da atividade notarial e registral no Brasil – desde suas regras constitucionais basilares, passando pela democrática forma de ingresso na carreira, até o complexo sistema de deontologia profissional, com extensa tábua de direitos e deveres, previstos na “Lei Orgânica dos Notários e Registradores” (Lei nº 8.935/1994) – garante o desempenho das funções delegadas pelo Poder Público, com independência e imparcialidade. Enfim, o que se quer dizer é que notários e registradores são plenamente aptos a “dizer o direito”. São exercentes de “jurisdição” (palavra derivada do latim, “juris dictio”, dizer o direito). 

O fato é que, apesar de ainda existir alguma resistência,1 modernamente, no Brasil, para contextualizar o sentido contemporâneo de realização de Justiça, pode-se dizer que notários e registradores são exercentes de jurisdição voluntária.  

Oportunas são as anotações de Marco Antonio Greco Bortz, que, com precisão, recorda teoria desenvolvida pelo desembargador paulista, e entusiasta da atividade notarial e registral, Ricardo Dip: (…) Assim, amparados na sólida teoria dos saberes jurídicos, desenvolvida por Ricardo Henry Marques Dip, temos que o saber próprio dos notários é o mesmo saber dos juízes na aplicação do direito em concreto. O que justifica plenamente o fato histórico já assinalado de haverem os notários recebido competências que antes eram exercidas exclusivamente pelos juízes. Curioso é que não se trata de fenômeno recente, como poderíamos pensar a princípio, mas de ocorrência longeva, pois a escritura de compra e venda de bens imóveis, o mútuo feneratício e outros atos mais já foram competências exclusivas dos juízes de direito.2 

Em rápida visita ao direito comparado, pode-se perceber que os mais evoluídos sistemas jurídicos europeus possuem essa visão da atividade notarial e registral desde há muito. 

Na Itália a atividade notarial alçou notável desenvolvimento impulsionado pelas conquistas da “Escola de Bolonha”. Houve uma intensa produção legislativa sobre o notariado e aqueles que exerciam a atividade necessariamente deveriam pertencer a um collegium notariorum.3 Já nas primeiras décadas do século XX, reconhecia-se, segundo a doutrina italiana,4 que a atividade notarial caracterizava-se pelo exercício privado de função pública (esercizio privato di funzioni pubbliche). Repare, portanto, que a atividade notarial para os italianos, há muito, representava a administração pública de interesses privados. 

De outra parte, na França, desde o século XIII, os notários exerciam a jurisdição voluntária, de modo que o Rei Luís IX, passou a confiar ao Judiciário somente questões de litigiosidade.5

Digno de nota também que, em Portugal, notários e registradores eram elevados, desde o século XIX, à categoria de “magistrados de jurisdição voluntária”.

Em realidade, com essa breve incursão comparativa, percebe-se que o movimento que se vê hoje no Brasil, não é novidade em outros países, podendo-se verificar verdadeira tendência mundial para consagração de notários e registradores como exercentes de jurisdição voluntária. 

Mas não é só.

Quadra ressaltar a ótica da “justiça preventiva”, que é ínsita ao exercício da atividade notarial, mormente se considerado o notariado do “tipo latino” – enquadramento típico da atividade tabelioa brasileira – que concentra as principais virtudes dessa função pública na profilaxia jurídica de litígios. Vale dizer, o Tabelião de Notas, profissional do direito dotado de fé pública, exerce a atividade notarial que lhe foi delegada com a finalidade de garantir a eficácia da lei, a segurança jurídica e a prevenção de litígios. Na consecução do seu ato notarial, atua na condição de assessor jurídico das partes, orientado pelos princípios e regras de direito, pela prudência e pelo acautelamento. Nesse sentido, diz a doutrina, exercem verdadeira “magistratura cautelar”, ou ainda, “magistratura da paz jurídica”.   

De outra volta, há, ainda, importante reflexão a ser feita do ponto de vista do atual sistema constitucional de estruturação dos Poderes da República. Em cidades interioranas do Brasil, de pequeno porte – que não são poucas, diga-se de passagem –, de acordo com a organização judiciária do Estado, muitas não são “sede de Comarca”. Isso quer dizer que a população desses municípios não possui acesso a um Poder Judiciário local. Sabe-se, pois, que na organização constitucional do Estado brasileiro não há “Judiciário Municipal”. Nesse toar, muitas das vezes, o cartório representa a única presença do Estado naquela localidade, o que demonstra como é importante o exercício das atribuições confiadas à atividade delegada extrajudicial. Disso se infere que, por mais singelas que sejam, as serventias extrajudiciais sempre estarão presentes em todas as comunidades.

Some-se a isso o fato de que notários e registradores para desempenharem suas funções, que lhes foram delegadas pelo Poder Público, necessitam sempre estar em contato direto com os utentes de seus serviços. Aqui está considerável ponto positivo na atuação das serventias extrajudiciais. Ocorre que, por mais que hoje as informações sejam acessíveis e democratizadas, ainda há na figura do “juiz de direito”, certo misticismo que cerca o exercício de sua função – que não se pretende aqui questionar – mas, que de alguma forma acaba afastando a verdade apurada nas demandas judiciais da “verdade do mundo dos fatos”, seja por temor reverencial ou qualquer outro sentimento que acaba funcionando como empecilho na necessária imediatidade das relações entre as partes e os magistrados.

Desse modo, caminhando para a conclusão destas considerações vestibulares, a partir da necessidade incontestável de “desjudicializar” aliada a todos os fatores favoráveis à atividade extrajudicial adrede expostos, não parece coerente negar aos notários e registradores o exercício do “jus dicere” e a possibilidade de aplicar as normas jurídicas aos casos que lhe são apresentados. 

Nessa diretriz, partindo-se para o direito positivo, no Brasil, tem-se que o mais simbólico marco desse movimento para “desjudicialização” foi o advento da Lei nº 11.441/2007 – regulamentada em detalhes pela Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça – que ofertou a possibilidade dos interessados, observados os pressupostos necessários, realizar inventário, partilha, separação e divórcio extrajudicialmente perante os tabeliães de notas.  A propósito, ressaltando o marco divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro, Narciso Orlandi Neto, ao prefaciar consagrada obra de Leonardo Brandelli, sublinhou com veemência que aqueles refratários em reconhecer a jurisdição graciosa do tabelião deveriam revisar os seus conceitos com o advento da Lei nº 11.441/2007.

Nessa novel contextualização a que o ordenamento jurídico brasileiro está aderindo, não só o tabelionato de notas possui papel de destacada relevância, mas todas as especialidades de serventias extrajudiciais, cada qual com seu feixe de atribuições, estão galgando distinta posição.

De mais a mais, outras questões jurídicas também já foram repassadas aos notários e registradores, desobstruindo as veias do Poder Judiciário. Pode-se citar en passant: (i) no registro civil das pessoas naturais, o reconhecimento de filiação pode ser feito atualmente diretamente em cartório, sendo dispensada a manifestação do Ministério Público e autorização do juiz (Provimento 16 do CNJ); (ii) ainda em sede de registro civil, conforme alteração do artigo 110 da Lei nº 6.015/1973, promovida pela Lei nº 12.100/2009, houve a trasladação para a via administrativa das retificações de registros referentes a erros mais simples, que não exijam qualquer indagação para a constatação imediata da necessidade de sua correção – casos que antes necessariamente eram julgadas pelo Poder Judiciário, podem, hoje, administrativamente ser encaminhadas apenas ao Ministério Público para parecer conclusivo; (iii) no tabelionato de protesto, a nova previsão legal, veiculada pela Lei nº 12.767/2012, da possibilidade de se levar a protesto certidão de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas – antes era considerada exclusividade do Poder Judiciário empreender esforços para satisfação dos créditos tributários; (iv) especialmente no Estado de São Paulo, pelo Provimento CG nº 31/2013, foi conferida a possibilidade de expedição de cartas de sentenças pelas serventias do registro civil e do tabelionato de notas; entre outras medidas elogiáveis.      

Advirta-se, pois, que há ainda uma série de projetos e boas intenções de transformar várias matérias que hoje ainda são de competência exclusiva do Poder Judiciário, em faculdade de acesso pelo interessado às vias notariais e registrais, o que certamente representará um grande avanço para a justiça brasileira tendo em vista à indescritível agilidade que será conferida aos atos e procedimentos. A verdade é que o Brasil, enfim, caminha a passos largos para a necessária “desjudicialização”.   

Em arremate, vê-se que os temas e questões inseridas nesse espírito necessitam de amadurecimento para serem implantadas. Desjudicializar é preciso e o desafio está lançado! Mãos à obra… 

 



Referências

1. Especialmente para os processualistas clássicos, quando se fala em “jurisdição”, em seu sentido mais puro, trata-se da aplicação do direito por um órgão do Poder Judiciário. Dessa forma, para esta orientação tradicional, apenas membros do Poder Judiciário podem exercer a jurisdição, seja contenciosa ou voluntária.

2. BORTZ. Marco Antonio Greco. A desjudicialização – um fenômeno histórico e global. in Revista de Direito Notarial n. 1, 2010, p. 75/110. 

3. Nesse sentido: ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos de fé pública. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 15-16. 

4. Nesse sentido: GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos – o exercício público de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2005. 

5. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos de fé pública. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 84-86.

6. Expressão de Monasterio y Galí, sempre rememorada pelo desembargador Ricardo Dip em seus discursos.

 

 

* Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro é Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Município de Platina, São Paulo. Colunista do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal. Contato: moacyrpetrocelli@hotmail.com

*Publicação original: Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal.

 

 

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