DONA FLORA E SEUS DOIS CARNEIROS NO CARTÓRIO

DONA FLORA E SEUS DOIS CARNEIROS NO CARTÓRIO 

A primeira vez que vi Dona Flora, com aquele oceano de ternura nos olhos azuis, foi no dia em que ela adentrou no cartório, esbaforida, praticamente atropelando quantos estivessem à sua frente, quase aos prantos, repetindo:

– Roparum est criptura!… Roparum est criptura!…

Um futuro advogado que estagiava no cartório correu em busca de um dicionário de expressões e brocardos latinos, para decifrar aquele dito. Não se tratava, porém, de uma expressão de latim, mas do dialeto falado no lugar – uma mistura de alemão com português da roça.

Em razão da descendência germânica, Dona Flora tinha sérias dificuldades com a língua pátria. A falta de escolaridade fabricava aquela estranha verborréia, ininteligível para os forasteiros, mas compreendida pelos nativos. E eu era um nativo.

Roubaram a escritura, é o que ela queria dizer.

Fazia-se agora absoluto silêncio no cartório, até então ruidoso, não só pela prosa dos clientes, mas também pela fúria das máquinas de escrever, naquela época em que os sossegados computadores de hoje nem de longe espiavam as lides tabelioas.

A anciã continuava com a ladainha, esbravejando em minha direção, como se a culpa fosse do escrivão, que é como me chamavam por lá. Disse que a escritura estava na gaveta, e que só podia ter sido coisa do traste do genro, aquele posta.

Coisa típica, briga de sogra e genro.

Quem já viveu no interior conheceu pessoas assim, cada vez mais escassas, de uma época em que não se podia estudar, porque era preciso trabalhar desde cedo para ajudar os pais, e mesmo, naquele tempo, estudar pra quê? Em especial as moças da roça, cujo destino era arranjar marido, ter filhos, cozinhar, lavar, passar, ordenhar, debulhar milho, peneirar feijão, carpir, ter mais filhos, não necessariamente nessa ordem, além do sexo. Por isto, pela falta de leitura e dificuldades da fala, era normal que se trocasse letras e palavras, especialmente o b por um p, um erre por dois erres, meu por minha, carinho por carrinho, e por aí, inclusive com expressões quase ininteligíveis.

Quando por fim calou-se, ofegante, pedi-lhe a palavra, e no fim das contas, depois de muita conversa, acalmou-se, a pobre. Ela não iria perder as terras só porque a escritura havia desaparecido. Bastava obter uma certidão para fazer a prova do domínio. Eu mesmo providenciaria tudo para ela, não se preocupasse.

Foi embora mais calma, a sombrinha protegendo a pele muito branca, os belos e doces olhos azuis sorrindo ternuras pelo caminho, e prometendo voltar com uma galinha gorda, pela atenção que lhe fora dada no cartório.

A segunda vez que a vi foi outra vez muito engraçado, agora com o furto do carneirinho, que também estava na gaveta. Um só, que o outro havia ficado.

Desta vez ela chegou novamente esbaforida na repartição, mais assustada que a galinha que trazia sufocada sob o braço. Mas que carneirinho, Dona Flora? Perguntei.

– Do abocetadoria, não sabe? Respondeu ela.

Abocetar é verbo transitivo direto com mais de um sentido, e dentre outros, significa esboçar. É evidente que para Dona Flora o sentido era outro que não nenhum daqueles do dicionário. Em verdade, estava se referindo à aposentadoria, querendo dizer, ao seu modo, que havia sumido o carnê da sua aposentadoria.

Os mais antigos lembram que os pensionistas da previdência recebiam um carnê, para o saque mensal. Talvez em razão da minguada aposentadoria, metade de um salário mínimo – esse fato aconteceu lá pelo início de 1980, e somente a CF/88 veio determinar um salário mínimo, cheio, e não meio, com era então – é que o carnê ficou conhecido, pelos pobres de letras, como carnezinho, assim mesmo, no diminutivo. Para Dona Flora e suas dificuldades linguísticas, carneirinho. E ela tinha dois: um, da própria aposentadoria, e o outro da pensão por morte do marido, que Deus o tivesse. E havia sumido justo o que ela mais gostava, por lembrar do finado.

Depois de assuntar um tanto novamente acalmei a coitada. Não havia perigo, o banco não pagaria para outra pessoa, sem procuração, e não tinha procuração; ficasse tranquila; pedisse uma segunda via; regressasse ao lar.

Passado o susto, já estava ela se indo quando lembrou da galinha, agora também mais calma, pois não cocoricava mais.

Um presentinho, disse, alcançando-me a ave.

Pedi desculpas, mas não podia aceitar a franga – o Código Penal fala sobre obter vantagem ilícita em razão do cargo. Ela não gostou. Não estava habituada a que alguém fizesse desfeita de uma galinha, dada de coração, e além de tudo gorda.

Antes de sair, já na porta, um tanto quanto irônica com o que provavelmente tenha significado afetação, disse que não me preocupasse, porque da próxima vez traria a galinha assada. E saiu altaneira, a velha e bondosa Flora, com a galinha a tiracolo. No cartório todos ficamos sorrindo. Tinha sido muito engraçado.

Depois, bem, depois eu fui embora, nessa de ir e vir, assumindo outro cartório, por remoção, e não tive o prazer de vê-la uma terceira vez. Por isso, fiquei muito triste quando num outro dia soube que Dona Flora, com quase cem anos, também foi embora… desta vez para sempre.

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EXIBINDO 4 COMENTÁRIOS

  1. Paulo Ferreira disse:

    Hildor, vc prova que o tabelião pode escrever bem melhor que os famosos formulários. Que prosa gostosa!
    Mas, confesse: estes olhos azuis da viúva não roparam um cantinho do teu coração?

  2. JOSE ANTONIO disse:

    Só o Senhor mesmo Dr. Hildor. Não é a toa, que ainda continuo com a idéia fixa que o senhor ou tem um “protótipo”, ou uma “fotinha” do
    velho “CHEFROFORAEROFUSCA”. Muito Bom, brinde-nos sempre. Creio que já, hoje com a fuga do REBIMBAR DAS MÁQUINAS E DO LERO LERO DAS PROSAS, impostas pela máquina computadorizada, tenha nos tornado meio robóticos, quase, disse…quase nos fazendo perder o senso do quanto é bom a lembrança daquele passado não tão longinquo, mas que nós insistimos em transformá-lo em inexistente pela nossa pouca prática da boa prosa. Um abraço do seu amigo José Antonio, aqui de Amaporã-PR.

  3. Marco Antonio disse:

    Hildor, estas histórias deliciosas… quem não as tem?… difícil é escrevê-las com elegância e estilo como fizeste.
    Aqui em Matão, nestes últimos tempos não ganhamos nenhuma galinha em retribuição a serviços prestados… mas ganhamos uma PITAIA.
    (acaso não saiba, apesar do nome estranho, Pitaia é apenas uma fruta exótica e muito saborosa, da família do “figo da índia’, uma espécie de cactus)

  4. Aguiel Moisés Rodrigues disse:

    Artigo fantástico!!!!! Na qualidade de ex-funcionário posso confirmar a varacidade de esses fatos, bem como de outros.
    Porém, aguardemos o artigo em que a D. Flora veio pedir para fazer as autenticações, pedidas “pela homa do sinicato”.
    Abraços

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