Inventário Extrajudicial com menores no Marrocos

INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM MENORES – ESTA E OUTRAS EXPERIÊNCIAS DO NOTARIADO MARROQUINO

No mês de agosto tive a oportunidade de acompanhar as duas visitas do Presidente da Ordem dos Notários de Marrocos, Sr. Touhami El Ouzzanni, a São Paulo e à sede do Colégio Notarial do Brasil-Seção São Paulo e a sua recepção pelo Presidente do Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil, Dr. Ubiratan Pereira Guimarães e pelo Presidente do Colégio Notarial do Brasil Seção São Paulo, Dr, Carlos Fernando Brasil Chaves. Novamente uma experiência para enriquecer nosso conhecimento.

O Marrocos é considerado uma monarquia constitucional, com parlamento eleito democraticamente, mas cujo chefe de governo é o rei. Observa-se a existência dos três poderes tradicionais, sendo o notariado controlado e fiscalizado pelo Ministério da Justiça e Ministério das Finanças, logo atrelado não só ao Judiciário, como ao Executivo.

O Notariado Marroquino é do tipo latino, portanto, guarda semelhanças em seus princípios com o notariado brasileiro. Ao mesmo tempo, possui inúmeras peculiaridades, que o diferenciam do nosso notariado. De acordo com a classificação de Leonardo Brandelli, o notariado pode apresentar um número fixo de notários ou número livre. O notariado marroquino, assim como o brasileiro, é de número fixo. Não obstante, Marrocos, com sua população de pouco mais de 33 milhões de habitantes, possui 1150 notários. Em Casablanca, região metropolitana de pouco mais de 4 milhões de habitantes, são 250 notários.

A expansão do notariado marroquino e a afirmação de sua importância se deram com a lei que criou a Ordem dos Notários e proporcionou significativas alterações na profissão, que se espelha em muito no notariado francês, em especial na formação profissional e no acesso à carreira. Porém, o sistema notarial e de registro marroquino guarda algumas outras semelhanças com o nosso sistema, talvez mais do que propriamente com o francês. Isso decorre da existência de registros imobiliários no Marrocos, o que não ocorre no sistema francês, no qual se prevê a transferência de direitos no campo obrigacional, sem a constituição de direitos reais por meio de registro.

Diversas práticas e experiências foram trocadas com o Presidente da Ordem dos Notários do Marrocos, que em muito se interessou pelas tecnologias existentes no Brasil para o tratamento de informações e banco de dados de atos notariais, em especial a CENSEC, que congrega diversos módulos de Centrais de Informação, a qual o Presidente da Ordem marroquina teve oportunidade de conhecer, em apresentação realizada no CNB-SP.

Entre as diversas peculiaridades da atividade notarial marroquina, interessante citar o recebimento dos valores das transações de compra e venda imobiliária pelo Tabelião. Se, por um lado, cria um fluxo monetário quiçá problemático (considerando a realidade brasileira da insegurança física), por outro se destaca a confiança que é depositada no notário, sendo ele responsável pela entrega do preço do negócio ao vendedor, quando verificado pelo notário da legalidade do negócio jurídico por si instrumentalizado. A prática reduz, inclusive, a sonegação de valores declarados e de impostos recolhidos, o que de certa forma, parece ser uma vantagem superior aos incômodos que pode causar.

Outra boa prática exigida pela normatização marroquina é que o notário deve levar a escritura a registro peremptoriamente, sendo responsabilizado por sua negligência. Em que pese os registros serem estatizados, o sistema notarial e registral, à nossa semelhança, garante ao comprador a transferência da propriedade, evitando que a escritura seja engavetada, gerando maior segurança jurídica, na justa medida em que o vendedor terá reduzidas chances de efetuar venda a mais de um comprador.

Mas, entre os atos notariais praticados no Marrrocos que mais despertaram atenção, encontra-se a possibilidade de realização de inventário extrajudicial na existência de herdeiros menores. O sistema, conforme relatado, pareceu relativamente simples e eficiente. É necessário uma simples autorização judicial, obtida por petição ao juízo competente. Lavra-se a escritura mencionando-se tal autorização, efetua-se a partilha e a escritura é submetida à homologação, oportunidade na qual será verificada pelo Parquet a preservação dos interesses dos menores.

Em que pese a participação do Judiciário e do Ministério Público no procedimento, a lavratura de escritura pública economiza uma grande parte do procedimento processual que tramitaria no judiciário, trazendo todas as benesses que a desjudicialização pode proporcionar, dentre as quais a celeridade e o desafogamento do judiciário se destacam. Ao indagar quanto aos riscos aos herdeiros menores, ao Presidente marroquino, este devolveu: Que riscos? Ora, a partilha de bens é determinada em lei e a homologação a posteriori evita eventuais erros na partilha ou prejuízos aos menores.

De fato, a partilha de bens seguindo a determinação legal prescrita na legislação civil não há de gerar outro resultado, independente de quem atua no seu processamento. Ora, o Tabelião é observador da legalidade dos atos e conhecedor do Direito a ser aplicado, em especial das normas civilistas incidentes, de forma que nada difere a partilha de bens na presença de menores ou não.

Considerando a hipótese na qual os herdeiros partilhem os bens de forma que cada qual receba uma fração ideal de cada bem do espólio, seguindo-se, portanto, a previsão legal, não há de se cogitar de prejuízo a qualquer herdeiro, seja menor ou não. Porém, os herdeiros podem decidir por atribuir diferentes bens em suas totalidades a diferentes herdeiros ou ainda partilhando-se usufruto e nua-propriedade, mantendo-se a equivalência dos valores partilhados, o que não foge da prescrição legal, de qualquer forma. Neste caso, poderá haver eventual indagação sobre prejuízo ao menor, na hipótese em que a este for atribuído um bem de qualidade inferior, ou que seu valor não reflita a realidade, mesmo quando preservada a equidade dos valores partilhados. Para tanto, serve a homologação posterior, no qual seria feita a mesma análise que o Parquet faz no procedimento judicial, em defesa dos interesses dos menores.

Naturalmente, os atos de disposição e alienação implicariam necessidade de autorização judicial, tendo a cessão de direitos hereditários como exemplo. Certo que não havendo atos de alienação, não se presencia conflito de interesses. Do contrário, necessário representação ou assistência por tutor ou curador. A mesma dificuldade pode ocorrer nos casos em que apenas existam herdeiros menores, sem herdeiros capazes ou viúvo meeiro, que pudesse exercer o múnus de inventariante. Caso em que a nomeação de curador se imporia neste caso, o que requereria minimamente outra intervenção judicial, mas ainda assim não afastaria a possibilidade de inventário por escritura pública, uma vez suprida essa necessidade.

Não obstante, o procedimento de apreciação prévia das questões relativas a filhos menores não é novidade na atividade notarial. Observem-se as normas de serviço paulistas, aplicáveis à separação e divórcio, que prescrevem: “Se comprovada a resolução prévia e judicial de todas as questões referentes aos filhos menores (guarda, visitas e alimentos), o tabelião de notas poderá lavrar escrituras públicas de separação e divórcio consensuais.” (Item 86.1., Cap XIV, Tomo II, NSCGJSP).

Veja-se que a intervenção judicial autorizativa não é motivo impeditivo para a escritura pública. Recente decisão da 2ª. Vara de Registros Públicos da Capital do Estado de São Paulo (Processo 0032934-17.2014.8.26.0100) traz a possibilidade da lavratura de inventário extrajudicial na existência de testamento diante de autorização judicial.

Assim, salvo melhor juízo – e deixo aqui também para debate e sugestões sobre esta possibilidade e eventuais obstáculos adicionais a serem pontuados – o inventário extrajudicial com a presença de herdeiros menores -que no Marrocos é tratado como algo bastante simples e eficaz – pode aqui também ser plausível e vantajoso em diversos sentidos, sendo a solução da homologação judicial ou ministerial a posteriori da escritura pública, condição para a eficácia da partilha, o que reduziria enormemente todo o procedimento de inventário a carregar a estrutura do Judiciário nacional, estando os notários brasileiros mais do que aptos a realizar tal procedimento, quando regulamentada a questão.

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  1. Samuel Luiz Araújo disse:

    Parabéns pelo texto, Milton! É bom ter colegas que trazem as novidades de fora e colocam-nas para discussão. Acho isso fundamental, sobretudo para evitar que as inovações se tornem teratologias.
    Sugira o tratamento da questão nos encontros e congressos.
    Se tiver alguma serventia, eu já tenho a minha opinião sobre o assunto.
    Abraço

  2. Milton Fernando disse:

    Caro Samuel, agradeço sua manifestação. Gostaria muito e acredito que os leitores também, de ouvir qual sua opinião sobre o assunto, caso queira utilizar-se deste canal para debates. Aproveito a oportunidade e lhe deixo meu email: cartorio.pilardosul@gmail.com

  3. Samuel Luiz Araújo disse:

    Caro Milton Fernando, boa tarde!
    Acho melhor tratarmos do assunto nesta via, tendo em vista a oportunidade de dialogar com todos os colegas.
    Eu não vejo problema algum em se lavrar escrituras de inventário em que haja participação de menores. Contudo, como é sabido, isso reclama uma atualização legislativa. Seguimos a lei, que é a mesma aplicada pelo juiz no processo.
    Em que pese a notável contribuição do MP, penso que, com a intervenção notarial, ela se faz desnecessária. Realizamos a polícia jurídica. Portanto, não haverá manifestação do “parquet”.
    Sobre a homologação, entendo ser igualmente desnecessária.
    Lembro-me da dissolução da união estável que, segundo uma parcela da jurisprudência, exigia a homologação judicial quando feita por escritura pública.
    Se atuamos conforme o ordenamento jurídico, por quê exigir homologação? Seria, tão somente, um “bis in idem”, um formalismo. É preciso ter em mente o respeito às formalidades, que são brutalmente diversas dos formalismos, exigências descabidas, despropositadas, sem qualquer efeito prático.
    Se houver prejuízo para o incapaz (acho difícil com a atuação notarial séria), recorre-se ao Poder Judiciário (aqui entraria o MP).
    Eu não vejo razão para sustentar que isso traria insegurança jurídica, ou “potencial causa de prejuízo” para o incapaz. Se atuamos dentro da lei (que é a mesma do processo, repita-se), não experimentarão prejuízos.
    Por ora, é isso. À medida que o diálogo for robustecendo, poderei apresentar mais algumas ponderações.
    Vamos conversando. Um abraço

  4. Milton Fernando Lamanauskas disse:

    Caro Samuel, de pleno acordo com todas suas observações. Sim, necessária alteração legislativa e o primeiro passo para tanto é uma fundamentação jurídica consistente, o que entendo haver de sobra no caso. Quanto às formalidades e formalismos, pretendi apenas fornecer subsídios para aqueles que entendam necessária a participação do MP em defesa dos interesses dos menores, procurando demonstrar que, ainda assim, o instrumento extrajudicial é viável e de extrema valia. Tomando como exemplo o Marrocos, onde há participação do MP e homologação judicial, derruba-se o argumento da impossibilidade ou inviabilidade pela eventual participação desses órgãos no procedimento. Caso se entenda superável, tanto melhor, mais ágil e eficiente. Concordo que o Tabelião tem plena capacidade de avaliar eventual prejuízo a qualquer parte. Por todos esses argumentos, resta agora juntar forças e demonstrar ao legislativo sua viabilidade. Abraços.

  5. Surie disse:

    Boa Noite, Por gentileza desculpe-me pelo assunto não guardar relação com o texto acima….artigo excelente por sinal, mas aproveito o espaço para formular uma questão, cujo seu parecer sempre sábio me será de grande valia… Qual tem sido o entendimento dos cartórios em relação ao artigo 1790 do CC e demais legislação pertinente, CF 226, etc, a companheira concorre com outros parentes suscetíveis em caso de partilha? Fiz um arrolamento judicial em 2009 (com reconhecimento de união estável) e o juiz deu a totalidade da herança à companheira, mesmo existindo irmãos (não houve oposição dos irmãos).
    Como está atualmente a questão, continua não sendo pacífica ou há uma nova determinação majoritária? Em caso de sobrepartilha de um bem que se encontra financiado, como ficaria a divisão, os irmãos teriam direito, ou tendo em vista decisão judicial que concedeu direito somente á companheira, a sobrepartilha ( se feita em cartório) seguiria o mesmo entendimento?
    Muitíssimo obrigada.

  6. Samuel Luiz Araújo disse:

    Cara Surie,
    Pedindo licança ao Milton, eu vou opinar.
    Eu sou partidário do Direito Civil Constitucional, pelo qual a mesma proteção dada ao cônjuge no CC deve se estender ao companheiro. Não há distinção, pois o que move um relacionamento é o amor. Logo, abstrai-se da letra do 1.790 e aplica-se ao companheiro o 1.829.
    Mas observe que há entendimentos contrários. Sugiro que leia o texto do Tarcisio Alves Ponceano Nunes.
    Espero ter colaborado com você.
    Um abraço,

  7. Surie disse:

    Dr. Samuel, muito obrigada por sua participação e colaboração com tão importante parecer. Diante de seu entendimento em eventual sobrepartilha em cartório seria necessária a presença/anuência dos irmãos dos de cujus, ou a Escritura poderia ser feita somente pela companheira mediante a apresentação da Carta de Sentença ?
    Desde já agradeço a atenção e interesse em prestar seus preciosos esclarecimentos.
    Abraço.

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