Notas e Registros:Função e Princípios Finalísticos

NOTAS E REGISTROS: FUNÇÃO E PRINCÍPIOS FINALÍSTICOS

(Milson Fernandes Paulin)*

 

1 Função Notarial e Registral

 

Por função notarial e registral entende-se aquela típica, exclusiva e legalmente (Lei nº 8.935/94) exercida pelos notários e registradores, na consecução dos atos próprios de seu mister, de maneira a alcançar os fins de natureza pública, em especial a segurança jurídica como subprincípio básico do próprio conceito de Estado de Direito, sob a constante fiscalização do Estado, a cargo do Poder Judiciário. O exercício de tal atividade, no Brasil, opera-se por meio de descentralização administrativa por colaboração (via delegação), conservando, assim, o Poder Público a titularidade do serviço ao mesmo tempo que faz transferir sua execução a particulares especializados e devidamente nomeados. A Constituição Federal de 1988, na sua originária formulação, cuidou da função notarial e registral nos exatos termos propostos pelo artigo 236:

Art. 236: Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

 Como se pode denotar, o artigo 236, em boa medida, vem ditar os pontos fundamentais a delinear nosso notariado (tipo latino), tendo, talvez, mais expressividade o que atine à questão do caráter privado, típico da função (a ser exercida por delegação, após regular aprovação em concurso público de provas e títulos) bem como o relativo à fiscalização dos atos, a ser perpetrada por parte do Poder Judiciário. Pronunciando-se sobre o fenômeno da delegação, inserta na essência da função notarial/registral, Antônio Albergaria Pereira assim pontificou:

Delegar é transferir um encargo ou um poder […]. Aqueles a quem esses serviços forem delegados, pela sua natureza e pelas peculiaridades de seu exercício, não poderão ser enquadrados na carreira dos servidores públicos civis, porque não integrarão o quadro da Administração Pública direta, e nem serão integrantes de uma autarquia ou de uma fundação pública. Só são servidores públicos aqueles que em planos de carreira integram a Administração Pública direta, ou autarquia direta ou a fundação pública. A Delegação é uma forma indireta de administração dos serviços públicos. Os que exercem esses serviços, por delegação, são particulares, e, como tais, continuam vinculados no Poder Público unicamente pelo ato de delegação […] Pela Delegação, o Poder Público competente, com poderes para exercer serviços notariais e de registro, descentraliza-os de suas funções, transferindo-os para serem exercidos por pessoas físicas fora do seu quadro de servidores civis […]. A Delegação prevista no preceito constitucional é a investidura de uma pessoa física no exercício das atribuições do Poder Público, e que por este deveriam ser exercidas. O Poder Público deixa de exercer tais funções e delega o seu exercício a particulares, mediante condições previstas no texto constitucional e lei. O delegado, ao ser investido nas funções, não adquire os característicos do poder delegante, muito embora sua investidura no exercício decorra de preceitos legais estabelecidos pelo próprio poder delegante. Exercendo eles essas funções, definidas na própria Constituição como de caráter privado, não se transforma em servidor público, simplesmente por exercê-las. [1]

Discorrendo, analogamente, sobre os traços fundamentais que contornam os serviços notariais e de registro, Carlos Ayres Brito, em interessante ótica, abarca o fenômeno da delegação da função, cometida por parte do Estado, coadunando-a de maneira holística com o regime jurídico a que precisamente dita a Constituição da República Federativa Brasileira; in verbis:

I – serviços notariais e de registro são atividades próprias do Poder Público, pela clara razão de que, se não o fossem, nenhum sentido haveria para a remissão que a Lei Maior expressamente faz ao instituto da delegação e a pessoas privadas. É dizer: atividades de senhorio público, por certo, porém obrigatoriamente exercidas em caráter privado (CF, art. 236, caput). Não facultativamente, como se dá, agora sim, com a prestação dos serviços públicos, desde que a opção pela via privada (que é uma via indireta) se dê por força de lei de cada pessoa federada que titularize tais serviços;

II – cuida-se de atividades jurídicas do Estado, e não simplesmente materiais, cuja prestação é trespassada para os particulares mediante delegação. Não por conduto dos mecanismos da concessão ou permissão, normados pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos;

III – a delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. Ao revés, exprime-se em estatuições unilateralmente ditadas pelo Estado, valendo-se este de comandos veiculados por leis e respectivos atos regulamentares. Mais ainda, trata-se de delegação que somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Carta Magna Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público.

IV – para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, não por adjudicação em processo licitatório, regrado pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público;

V – está-se a lidar com atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Reversamente, por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações inter-partes, com esta reconhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito;

VI – enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por ‘tarifa’ ou ‘preço público’, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal. Características de todo destoantes, repise-se, daquelas que são inerentes ao regime dos serviços públicos. [2]

De observar, então, que a Constituição da República, ao tratar, explicitamente, da atividade notarial e registral, houve, implicitamente, em bem fazer estabelecer seus alicerces fundamentais [3] e diretrizes básicas: a) a natureza pública da função, bem como a necessidade de que o Poder Público, por meio de descentralização, repasse-a ao particular [legalmente capacitado, por via concurso de provas e títulos], para fins de que a exerça, satisfatoriamente, em caráter privado; b) a imperiosidade de lei para regular as atividades, disciplinar as responsabilidades civil e criminal dos notários, oficiais de registro e seus prepostos, definir a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário, assim como a necessidade de lei federal para estabelecer normas gerais sobre emolumentos; c) o ingresso na atividade por meio de concurso público de provas e títulos; e, d) a impossibilidade de que qualquer unidade fique vaga, sem abertura de concurso, por mais de seis meses.

Arraigados ao desempenho da função pública notarial e registral estão um sem número de comandos normativos (regras e princípios – incluídos os de natureza ético-deontológica), mandamentos estes centrados a nortear, bem como a fazer resguardar a necessária incolumidade da função (função-missão esta que se aloca no corpo do direito notarial e registral – ambos autônomos – numa relação de interdependência). Imbuídas de baixo grau de generalidade e abstração, sabe-se que as regras são dotadas de alta densidade normativa, de modo que dispensam a utilização de outras normas para viabilizar sua aplicabilidade. Já os princípios, a rigor, necessitando de outras normas para ver consubstanciada sua respectiva aplicação, transportam, em seu bojo, a importante missão de informar o sistema jurídico como um todo, sendo latente sua necessidade em qualquer ramo científico (independentemente se portando, ou não, tais cânones, a qualidade de próprio ou exclusivo frente à determinada ciência-atividade a qual se pretenda perscrutar de maneira metódica e epistemológica).

 

2 Princípios Finalísticos do Direito Notarial e Registral

Partindo do pressuposto que os princípios são as proposições fundamentais do arcabouço jurídico, subsume-se que tais alicerces detêm a finalidade de conferir, ao ordenamento, sentido lógico, harmonioso e racional, tornando mais palatável a compreensão de seu funcionamento. Conceito de expressão polissêmica, como outrora aduziu Eros Grau, já foi compreendido, na seara jurídica, como verdade fundante, cânone fundamental que informa a Ciência e, num sentido mais abrangente, como a

 […] garantia de estabilidade, funcionalidade, unidade e adequação valorativa, sendo fundamentais para que qualquer sistema possa existir, pois a tentativa de organização estrutural sem princípios não é e jamais será um sistema. […] Concluindo, podemos conceituar os princípios como sendo as diretrizes teleológicas dos sistemas, às quais o intérprete sempre deve recorrer se quiser realizar uma interpretação fundada nas bases que sustentam a estrutura erigida. [4]

É cediço que a doutrina, em geral, entende haver dicotomia no que pertine a diferença e mesmo a ponderação de regras e princípios. Sobre as variadas fórmulas que têm sido elaboradas como critério de diferenciação para o mote, assim se posicionou Canotilho:

Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõe, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky), a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se. Conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à [lógica do tudo ou nada]), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. (…) em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas [exigências] ou [standards] que, em [prima facie] devem ser realizados; as regras contém [fixações normativas] definitivas, sendo insuscetível a validade simultanea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).[5]

Analisando a contribuição de Frederick Schauer, Claus-Wilhelm Canaris, Josef Esser, Karl Larenz, Dworkin, Alexy, dentre outros nomes, Humberto Ávila [6] conclui serem as regras normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhe são axiologicamente sobrejacentes; sendo os princípios, de outra banda, normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado das coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.

Sem prejuízo de tal dicotomia, tantos as regras como os princípios são dotados de normatividade, porquanto imperativas. Estes, aliás, denotam-se pelo alto grau de generalidade e abstração que carregam em seu núcleo. Predicam-se, ainda, pela trinária função integrativa que ostentam: fundamentadora, interpretativa e supletiva. Podemos afirmar, igualmente, dada sua inegável função irradiante, que os princípios possuem a finalidade de legitimar o ordenamento jurídico; dito à maneira de CARLOS ALBERTO BITTAR, “esses princípios legitimam o ordenamento jurídico, na medida em que representam os ideais primeiros de justiça, que se encontram ínsitos na consciência coletiva dos povos, através dos tempos e dos espaços”. [7]

Em tempo, não intentaremos, com o presente estudo, adentrar na chamada principiologia implícita, vale dizer, aquela encontradiça num segmento próprio ou específico de um dado Direito; v.g. o notarial (autoria e responsabilidade; controle de legalidade; autonomia e independência; unicidade; conservação; dever de exercício; rogação ou instância; justiça profilática ou preventiva); ou o registral (especialidade; prioridade; unitaridade; taxatividade; continuidade; instância; inscrição; tempus regit actum; disponibilidade; presunção de eficácia; cindibilidade; qualificação; autotutela). Perscrutaremos, aqui, tão somente, acerca daqueles sustentáculos mais estruturantes das notas e dos registros, insertos, todos, ora na letra expressa, ora no espírito mais íntimo da Constituição Federal. Daí nomearmos tais proposições nucleares como Princípios Finalísticos do Direito Notarial e Registral, este gênero, sendo espécies os Princípios Constitucionais e os Princípios Organizacionais.

 

2.1 Princípios Constitucionais do Direito Notarial e Registral

Por estar a Constituição de 1988 alocada no vértice do ordenamento, não se discute o fato de que em seu núcleo vicejam os mais importantes preceitos fundamentais, respeitantes aos valores mais estruturantes de toda a sociedade. Assim, porquanto imbuídos de força poliédrica e eficácia irradiante, tem-se que tais sustentáculos (princípios) se fazem presentes em todo o edifício jurídico, alcançando, por óbvio, também o direito notarial e o registral:

2.1.1 Publicidade (O termo publicar, do latim publicare, traz em seu bojo a ação de fazer lançar, para fins de divulgação erga omnes, ato ou fato juridicamente relevante, para a satisfação de fins determinados e a quem possa interessar. Consubstancia-se, em verdade, como meio conferidor de eficácia (aptidão para produzir efeitos) e contribui para a segurança e estabilidade das relações jurídicas. Discursando sobre o escopo da publicidade, UADI LAMMÊGO BULOS dita a seguinte frase de ordem: “manter a total transparência na prática dos atos da Administração Pública”; [8] ato contínuo, o autor associa o princípio à garantia de pleno acesso aos registros públicos, para os cidadãos. Na seara notarial e registral, são públicos os livros conservados pelos delegatários porquanto pertencentes ao Estado, facultada, no entanto, sua consulta por qualquer interessado, ato que prescinde de prévio motivo ou justificação – publicidade indireta, por meio de certidões).

2.1.2        Autenticidade (está atrelado à qualidade daquilo que é certificado e, desse modo, abonado por ato de autoridade, criando-se, no caso da função notarial/registral, presunção relativa de verdade – presunção juris tantum. Por força da autenticidade, somada à fé pública, os instrumentos públicos somente podem ser tachados de nulos ou falsos após um procedimento judicial que assim o declare).

2.1.3        Segurança (o princípio da segurança jurídica pode ser considerado como uma das vigas mestras da ordem jurídica, sendo, segundo Canotilho, um dos subprincípios básicos do próprio conceito do Estado de Direito. É a libertação do risco que, por função, devem promover os registradores notários quando do exercício de seu múnus público. Nas mãos do registrador, tal princípio se exterioriza pelos efeitos declaratório, constitutivo, comprobatório e publicitário, perpetrados quando da prática de seus atos. Pelo notário, tal alicerce se arraiga com o chamado caráter profilático, [9] este imanente por típico dever de assessoramento).

2.1.4        Eficácia (corresponde à aptidão do ato em produzir efeitos jurídicos. Assenta-se o princípio na fé pública tabelioa e registral, vigendo, nesse sentido, a crença popular [uma crença imposta pelo Direito] de serem corretos e autênticos, seus exercitores, em tudo aquilo que ditam e escrevem [porquanto agindo em nome do Estado], salvo inequívoca prova em contrário. No relativo ao registro, propiciando publicidade em relação às partes e a terceiros, produz o condão de afirmar a boa-fé dos que perpetram atos jurídicos, baseados na presunção de certeza daqueles assentamentos).

 

2.2 Princípios Organizacionais do Direito Notarial e Registral

 Do ponto de vista do Poder Público, tem-se que os princípios correspondem a normas que pautam e fundamentam toda a sua atuação. Nos dizeres de José Afonso da Silva,

A Administração Pública é informada por diversos princípios gerais, destinados, de um lado, a orientar a ação do administrador na prática dos atos administrativos e, de outro lado, a garantir a boa administração, que se consubstancia na correta gestão dos negócios públicos e no manejo dos recursos públicos (dinheiro, bens e serviços) no interesse coletivo, com o que também se assegura aos administrados o seu direito a práticas administrativas honestas e probas. [10]

             Haja vista serem os serviços registrais e notariais exercidos em caráter privado, por delegação do Estado, considerados tais delegatários “particulares em colaboração com o Poder Público” [11], não se alvitra o fato de que a direção da atividade deve ser orientada, primordialmente, sob o influxo de cânones constitucionais e administrativos, corolário até da própria condição imposta pelo artigo 236, da Constituição Federal. Desse modo, subordinam-se os serviços registrais e notariais também aos seguintes princípios organizacionais:

2.2.1        Supremacia do Interesse Público (também denominado princípio matriz da administração, no confronto entre o interesse do particular e o interesse público, prevalecerá o segundo, conquanto não esteja o delegatário, na qualidade de particular em colaboração com o Poder Público, desobrigado de respeitar os direitos individuais);

2.2.2        Legalidade (segundo o qual ao delegatário – ponte entre a lei e a declaração de vontade – somente é dado realizar o quanto previsto nas leis e regulamentos que regem a função, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso – Lei nº 6.015/73; Lei nº 8.935/94; Normatizações Correicionais expedidas pelas Egrégias Corregedorias de Justiça Estaduais e congêneres; referido princípio está relacionado, umbilicalmente, ao chamado controle de legalidade notarial. Relaciona-se de forma íntima, ademais, com o cânone da moralidade, gozando este, a bem da verdade, de uma certa primazia sobre a própria legalidade. Isto porque, “A preeminência da ordem normativa da moral sobre a ordem normativa do Direito resulta da circunstância de que a moral reside no interior do homem e é ali, no santuário da sua consciência, onde se decide o destino da ordem jurídica”. [12] Desse modo, fica claro que “[…] somente quando o destinatário da norma jurídica tem a virtude moral da justiça, somente quando alguém assimilou o hábito da obediência à lei e cultiva o respeito pela própria profissão, somente quando levado por essas disposições morais, se decide a pôr em prática a norma jurídica, é somente então que o Direito funciona”. [13]

2.2.3        Impessoalidade (no sentido de que a atuação deve voltar-se ao atendimento impessoal, imparcial e independente, sob as guias da lei, da moralidade, da euremática e sob o permanente manto da fé pública – art. 28 e 41, da Lei nº 8.935/94);

2.2.4        Moralidade (uma vez que a dita atividade deve atender, a um só tempo, aos ditames da lei, da moral, da equidade, da ética e da probidade. Com efeito, porquanto investido: 1) da qualidade de fomentador de cidadania originária, revelando-se, igualmente, como fonte segura de referência estatística para o Estado [Registrador Civil de Pessoas Naturais]; e, de outra banda: 2) do apanágio de colaborador técnico-jurídico, tendo como norte a excelência funcional rumo à prevenção de litígios, oriunda de um assessoramento e aconselhamento colocado à disposição das partes por dever de exercício [Notários]; terminam ambos profissionais por irradiar uma certeza ideológica, fundada sob as sendas da euremática e tendo por fim a paz privada, por meio da Fé Pública e da Segurança Jurídica. Nesse sentido, pode-se tomar a moralidade como conditio sine qua da própria legalidade, consubstanciando-se o princípio, então, como um dos fins mais interiores e importantes da atuação Estatal e, ipso facto, também da função registral e notarial. Segundo Bandeira de Mello, “a moral administrativa pressupõe conduta dos agentes públicos pautada nos princípios éticos, e a inobservância desses acarreta ou configura ilicitude”. [14] Atreladas ao cânone estão as questões referentes à observância obrigatória da Tabela de Emolumentos, à cogente Cotação à margem do documento – independentemente da imperiosa expedição de recibos – bem como o fato do necessário respeito às gratuidades previstas, aos bons costumes, enfim, aos deveres da boa administração, tendo sempre como vetor bussolar a higidez e grandiosidade da instituição. Por esse alicerce, ademais, e, observada a estrita legalidade, há de prevalecer o melhor interesse das partes quando da atuação registral e notarial – independente o fato de já investidas, ou ainda não, do atributo da personalidade, haja vista a disposição in fine do art. 2º, do CC; também por ele e, pelas regras que regem a boa atuação, espera-se que a obscuridade da lei (máxime quando destinada a uma atuação jurídico-notarial fadada à temeridade, sobretudo porque considerada [a lei] como pressuposto lógico-formal de todo e qualquer ato jurídico) venha a ceder ante a influência de uma interpretação mais aberta, a ser desempenhada por parte do notário, consubstanciada sob um enfoque hermenêutico [15] e homogeneizado com os fins interiores da ética e da justiça. De ressaltar que tal ato exegético deve ser exercido em via de exceção, somente quando manifestamente prejudicial às partes, sob pena de ferir-se a legalidade. Típico exemplo da atuação tem lugar ante a teratológica situação que ocasiona a Lei nº 11.441/2007, fazendo resguardar, expressamente, os menores não emancipados ou incapazes ao passo que silencia acerca da forma de atuação notarial quando diante de partes tomadas por situação gravídica (situação que, implicitamente, nada mais fez que relegar os nascituros ao limbo do esquecimento e da iniqüidade). Deve o princípio, assim, ser tomado como verdadeira premissa da legalidade, como que sua bússola, sem prejuízo das outras guias de ordem ética, moral, deontológica e euremática.[16]

2.2.5        Publicidade (v. princípio constitucional da publicidade);

2.2.6        Eficiência (fruto da Emenda Constitucional 19/1998 está voltado, em linhas gerais, à plena excelência da atuação estatal – incluídos, aí, os registradores e notários como particulares em colaboração com o Poder Público. Muitos o consideram como o mais moderno princípio da função administrativa, que, segundo Meirelles, [17] já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros. Num outro viés, não é dado ao delegatário atuar de maneira amadorística, desatualizada, omissa, devendo abeberar-se, incessantemente, do estudo das novas leis, das normas correicionais e dos entendimentos jurisprudenciais, perseguindo, enfim, a consecução do melhor resultado possível dentro dos contornos da legalidade, da moralidade e da ética – art. 4º, 7º, par. único, 21 e 30, II, da Lei nº 8.935/94);

2.2.7        Indisponibilidade (os bens e acervo da serventia são públicos, sendo confiados ao delegatário apenas para sua gestão, nunca para a sua disposição; compete ao novo titular, contudo, indenizar o antigo interino, no que tange ao mobiliário da serventia e demais benfeitorias, quando das transições; sobre o acervo, físico ou eletrônico, por seu turno, não há falar em compensação indenizatória);

2.2.8        Continuidade (coaduna-se à ideia de que administrar significa gerir os interesses da coletividade, ou seja, a prestação dos serviços registrais e notariais deve-se dar de maneira contínua e ininterrupta, observado os dias e horários regulamentares estabelecidos por lei. De observar, contudo, que, por força do art. 4º, par. 1º, da Lei nº 8.935/94, o serviço de registro civil das pessoas naturais será prestado, também, nos sábados, domingos e feriados pelo sistema de plantão);

2.2.9        Especialidade (por conta deste sustentáculo, é dever das Serventias atuarem vinculadas e adstritas às atribuições previamente delimitadas; daí que é vedado ao delegatário, p. ex., a confecção de instrumentos particulares, bem como a indicação e/ou intermediação dos serviços de advocacia);

2.2.10    Motivação (na impossibilidade de atendimento à pretensão da parte solicitante, cabe ao titular expedir nota devolutiva ou explicativa, onde, não se conformando o interessado com a recusa, poderá suscitar dúvida diretamente ao juiz corregedor permanente da unidade de serviço; seguem-se, neste caso, as regras previstas no art. 198 e ss., da Lei 6.015/73);

2.2.11    Fiscalização (uma vez que os delegatários realizam tal mister em nome próprio, por sua conta e risco, consoante as normas do Estado e sob a rigorosa e necessária fiscalização exercida pelo Poder Judiciário – art. 236, § 1º, da CF).

Disposta, pois, a Constituição Federal no vértice daquela hierarquia alhures proposta por Kelsen, qualquer norma inferior que, subversivamente, tencione à violação de qualquer um dos princípios nela contidos já nasce maculada, de plano, por vício de inconstitucionalidade, devendo ser extirpada do mundo jurídico (nulidade absoluta). Bem a propósito, como já admoestou Celso Antônio Bandeira de Mello,

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir a uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. [18]

Portanto, pode-se inferir que a violação de qualquer cânone jurídico importa em desrespeito não a uma regra em específico, mas ao edifício jurídico como um todo. Nesse sentido, é dever de todo e qualquer agente público (compreendido o conceito em sentido amplo, incluindo-se, aí, os registradores e notários como particulares em colaboração com o Poder Público e depositários dessa tão hígida Função) atuar não sob o manto da regra isoladamente considerada [19], mas com viso ao ordenamento a ser compreendido como um bloco aberto, abarcando tanto os princípios finalísticos (constitucionais e organizacionais), como também os de natureza ético-deontológica.

 

 

* MILSON FERNANDES PAULIN

Tabelião de Notas e Oficial de Registro Civil no Município de Aracruz/ES

Vice-Presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Espírito Santo

Pós-Graduado em Direito Notarial e Registral pela PUC/MG

Autor de obras e artigos em sites e revistas especializadas

Membro da União Internacional do Notariado – UINL

 

 



[1] PEREIRA, Antônio Albergaria. Comentários à lei nº 8.935 – serviços notariais e registrais. São Paulo: Edipro, 1995, p. 23-24.

[2] Cf. Ministro Carlos Ayres Brito, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.151-1/MT, Pleno, em 08/06/2005.

[3] Cf. RIBEIRO, Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 42-43.

[4] MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de defesa do consumidor: o princípio da vulnerabilidade no contrato, na publicidade, e nas demais práticas comerciais. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 26-30.

[5] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4ª ed. Lisboa: Almedina, 2000, p. 1087-1088.

[6] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 193.

[7] BITTAR, Carlos Alberto. Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994, p. 46.

[8] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. Rio de Janeiro: Saraiva, 2000, p. 563.

[9] Isto porque, “a profilaxia jurídica determina a existência de instrumentos que permitam o fomento do desenvolvimento correto das relações jurídicas, de maneira a evitar a lide e o processo. Neste sentido, surgiu a necessidade de o Estado criar mecanismos de intervenção no direito privado para assegurar a realização normal e espontânea do direito, buscando o cumprimento do ordenamento jurídico voluntariamente, evitando, por conseguinte, a ocorrência de litígios”. Carlos Fernando Brasil Chaves e Afonso Celso Furtado de Rezende, nesse terreno, defendem a chamada Teoria da Justiça Notarial. José Luiz Mezquita Del Cacho, a seu modo, fala em uma proteção defensiva das situações jurídicas e dos direitos subjetivos.

[10] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 25ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 666.

[11] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 223.

[12] COSTA, Elcias Ferreira da. Deontologia jurídica – ética das profissões jurídicas. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 7.

[13] Idem, ibidem, mesma página.

[14] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 64.

[15] Pertinente, a propósito, é a ilação de Plauto Faraco de Azevedo: “O processo hermenêutico sofre decisiva influência de uma idéia prévia que o intérprete tenha do direito, da vida e dos interesses em questão. Quem tiver uma concepção positivista do direito nada mais verá no direito do que a lei. (…). Então, tudo se torna singelo. Sendo a lei injusta, por falta de critério do legislador ou por revelar-se inadequado às exigências do caso concreto (são duas as hipóteses), cause bem ou mal-estar social sua aplicação, tudo isto será irrelevante ao mecanismo a presidir o raciocínio do intérprete […]. Tal postura poderá eventualmente ser-lhe apaziguante, evitando o incômodo da dúvida. Mas os destinatários da interpretação e conseqüente aplicação ver-se-ão frustrados e suas expectativas, o que é sempre mau para a estabilidade da ordem jurídica”. Cf. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 127.

[16] Tivemos, já, a oportunidade de cuidar do assunto na obra Nascituro: aspectos registrais e notariais, publicada pela Editora Del Rey.

[17] Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de direito administrativo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 102.

[18] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 748.

[19] Eis que iniqüidades poderiam ocorrer, passíveis de posterior anulação e eventuais responsabilidades: como no caso do tabelião de notas que, conhecedor do estado gravídico da parte solicitante, lavra escritura de divórcio ou inventário, ignorando a condição jurídica do nascituro – ressalte-se, a propósito, que a Lei nº 11.441/07 é hialina em vedar a atuação do tabelião nas Separações, Divórcios, Inventários e Partilhas em que figurem menores não emancipados e incapazes no ato.

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