A lei nº 11.441/2007 e a omissão do nascituro

Por Milson Fernandes Paulin*
 

 No intento de Modernizar o Judiciário, deixando claro que a eficiên­cia não está apenas no trinômio presteza, perfeição, rendimento fun­cional, mas também na desburocratização e aperfeiçoamento, houve a Emenda n. 45 (Reforma do Judiciário) em bem trazer mecanismos para fazer valer os seus desideratos maiores – economia e ce­leridade processual. Assim, fez inserir, no art. 5º, da Carta Magna, o seguinte inciso LXXVIII, revelando que A todos no âmbito judicial e administrativo são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Para que tal mecanismo constitucional não soasse como flatus vocis, incentivos e movimentos legislativos começaram a verter dos seios do Legislativo. Nasceu, nesse contexto, a Lei 11.441/07, medida de desburocratização e desafogo do Judiciário, que, fazendo acrescentar os arts. 982, 983, 1031 e 1.124-A ao CPC, passou a facultar novo solo (o extrajudicial) para o deslinde de antigas questões de natureza familiar: Separações, Divórcios, Inventários e Partilhas.

No sentido de aclarar divergências, e, procurando estabelecer contornos de uniformidade à atuação do Notariado brasileiro frente ao então novel regramento, tempos mais tarde o CNJ edita a Resolução n. 35. Segundo a Exposição de Motivos: […] não há razão de ordem jurídica ou lógica que remeta à necessidade de que atos de disposição ou composição de bens realizados entre maiores e capazes, e sobre seu exclusivo interesse, devam correr em juízo, em reluzente prejuízo à partes que objetivam rápida e segura tutela, gerando acúmulo de serviços, so­brecarregando ainda mais o sistema judiciário.

De modo que foi assim, prestigiando os cânones da celeridade, da economia processual e da efetividade da Constituição que a se­ara extrajudicial abarcou aquelas questões mais corriqueiras, de ver­dadeira jurisdição voluntária (administração pública de interesses privados). São requisitos necessários para a substanciação de tais escrituras, além daqueles constantes no artigo 215, do CC/2002: a) ausência de litígio (consensualidade); b) participação de outorgantes e reciprocamente outorgados maiores e capazes (ou, a contrario sensu, ausência de menores impúberes e púberes não emancipados, absoluta ou relativamente incapazes); c) assistência por advogado comum, ou por advogados de cada uma das partes; e, no caso específico dos inventários e partilhas: d) inexistência de testamento [1] (compro­vada mediante certidão negativa extraída junto ao respectivo órgão de classe).

Outras condições legais hão de ser observadas: como aquelas gerais, delineadas no Codificador Civil (v.g.: os elementos de existência, validade e eficácia do negócio jurídico, etc); como também as específicas, previstas no corpo da Lei n. 11.441/07 (e posterior Resolução regulamentadora) e nas demais normatizações correicionais, editadas pelas Egrégias Corregedorias Gerais de Justiças de cada Estado da Federação. Nunca é demais lembrar que o instrumento público, nesse caso, não depende de ho­mologação judicial, constituindo-se título hábil para o registro civil e o imobiliário, fato que impinge verdadeira efetividade ao novo procedimento, amenizando-se, por corolário, a tão conhecida carga judiciária.

Mas, o que dizer do nascituro? A citada lei não abordou a questão; pior, ignorou-a… Como enfrentar, então, a questão da gestante que decide separar-se, ou mesmo divorciar-se de modo consensual? Ou a problemática da viúva que, sem filhos, porém grávida do falecido, pretende lavrar inventário extrajudicial por arrolamento?

Lá pela década de 1990, Lisandro Cruz Ponce, jurista mexicano, em artigo intitulado El Nasciturus, já havia deliberado acerca da problemática ora debatida, o que, na ocasião, após remetê-la numa análise jurídico-comparativa com o então vigente Código de la Fa­milia de las Quince Repúblicas de la Unión Soviética, pugnou pela negativa da recepção do divórcio sob a via extrajudicial (naquele caso a registral):

Puede negarse el juez del Registro Civil a tramitar el divorcio si la esposa se encontrare encinta? No lo dice la ley, pero por aplicación de lo dispuesto en el artículo 22, que considera nacida a la criatura que se encuentra en el seno materno, podría negarse el juez a aco­ger la solicitud de divorcio. Sería una solución lógica que estaria en consonancia con algunas legislaciones modernas que no permiten el divorcio cuando la esposa se encuentra grávida. [2]

Nosso pensamento, em tempo, em nada destoa do raciocínio for­mulado alhures por Cruz Ponce. Entendemos, assim, que, pelo fato de ser igualmente lacunosa a nossa lei, outra alternativa não resta ao tabelião de notas senão em negar a lavratura de atos notariais oriundos da Lei n. 11.441/07 (nos casos em que figurem mulheres grávidas), devendo a questão ser conduzida à apreciação do Poder Judiciário, onde intervirá, necessariamente, o Ministério Público. Bem pertinente, com efeito, o escólio externado por Zeno Veloso:

E se a esposa estiver grávida, pode separar-se por escritura pú­blica? A Lei n. 11.441/2007 diz que a via administrativa para a dissolução da vida conjugal só é possível se não houver fi­lhos menores ou incapazes. A meu ver, a disposição inclui o nascituro. O nascituro não é um vegetal, uma coisa qualquer, mas uma pessoa que está por nascer. Todo ser humano menor de 18 anos recebe proteção especial, não só depois, como an­tes do nascimento. A personalidade civil começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC, art. 2°). Sim, há direitos que não dependem do nascimento com vida. O primeiro deles é o direito à própria vida, e mais: direito à integridade física, à saúde, aos alimentos, direito de ser reconhecido, de ser adotado, de estar submetido ao poder familiar, à curatela, de receber doação, direito sucessório. […] Sem o servilismo de uma compreensão literal-gramatical, e, ao contrário, fazendo uma interpretação teleológica, finalística, dando uma exegese extensiva, com leitura do texto conforme à Constituição Federal, não tenho dúvida de concluir que, se o ca­sal estiver esperando um filho, se há uma criança in fieri, a sepa­ração por via administrativa não é admissível. [3]

Recentemente, a propósito, o Colégio Permanente de Corregedores Gerais dos Tribunais de Justiça do Brasil – CCOGE, reunido na cidade de Manaus-AM, durante os trabalhos do 63º ENCOGE – ENCONTRO DO COLÉGIO PERMANENTE DE CORREGEDORES-GERAIS DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DO BRASIL, com escopo de evi­denciar o Poder Judiciário como vetor de cidadania e inclusão social, deliberou no sentido de “ORIENTAR às Corregedorias-Gerais de Jus­tiça que recomendem a todos os tabeliães de notas, quando procurados para lavratura de escritura de divórcio ou separação, que alertem aos in­teressados da impossibilidade de uso da via administrativa prevista no art. 1.124-A do Código de Processo Civil se estiver grávida a cônjuge virago, bem como para que se abstenham de lavrar referidas escrituras se for declarado ou restar evidenciado o estado o estado gravídico, indi­cando a via judicial, sem, contudo, ser permitido investigar ou diligen­ciar para o esclarecimento de tal estado”. [4]

De observar-se, pelo exposto, que a proibição para tal ação nota­rial, não obstante carecedora, ainda, de residência positivada, encon­tra, agora, fundamento em sede de recomendação correicional, um fato que, nos termos do art. 30, inciso XIV, da LNR, reclama obser­vância e estrito cumprimento, sob pena de incidência das disposições insertas nos arts. 31 e 32, da mesma Lei. Uma proibição que, a nosso ver, contorna não só as separações e divórcios (como se dessume da letra da orientação correicional), mas também os casos de inventário e partilha extrajudicial. A razão de ser da recomendação se assenta na disposição do art. 2º, do Código Civil Brasileiro, bem como nas garantias constitucionais da vida e da dignidade humana; assenta-se, outrossim, nos fins interiores da moral e da deontologia jurídico-no­tarial. Sobre o assunto, assim se pronunciou a Egrégia Corregedoria Geral de Justiça, do Estado de São Paulo:

O apuro deontológico importa em vivenciar eticamente a profis­são. Se há profissões que encerram certa imoralidade intrínseca, a dos notários e registradores envolve uma intrínseca moralidade. Pois não é altamente moral, por acaso, a função de quem contribui à manutenção da segurança jurídica e da paz social, constituin­do-se no confidente de seus concidadãos e em regulador de suas relações de direito? Tem o delegado os mesmos deveres morais exigíveis aos outros cidadãos. Mas dele se exige mais, pois pas­sou por uma Universidade e, nela, dedicou-se ao estudo do Direito. Pretende, só por isso, traçar caminhos, indicar aos outros a corre­ta direção. E optou por carreira em que esse compromisso lhe é diuturnamente lembrado. Sua profissão está preordenada a conferir segurança jurídica, a aclarar situações, a garantir aos semelhantes a fruição dos direitos. […] Por sinal que um dos atributos do delegado das serventias extrajudiciais deve ser a serenidade. Deve revestir equilíbrio sereno para se responsabilizar pelos interesses alheios, esse verdadeiro juiz de magistratura voluntária que é o notário e o registrador. E não haverá serviço delegado firme – notariado firme, registrador firme – sem firme responsabilidade. [5] (g.n.)

Em outras palavras, não é lícito ao notário, descurando-se da mo­ralidade, dos princípios éticos e da euremática lavrar o ato notarial, em detrimento do nascituro, sob alegação de desconhecimento, ou pior, de que atuara sob o manto da omissão da regra. O princípio da moralidade (art. 37, CF), em especial, é princípio constitucional que orienta toda Administração Pública, dirigindo, igualmente, a função notarial. Também a registral. Até porque, “Cumprir simplesmente a lei na frieza de seu texto, não é o mesmo que atendê-la na sua letra, no seu espírito”. [6] Dito à maneira de Radbruch, “A injustiça é sempre injustiça, ainda que quando modelada sob a forma da lei”. [7]

 

 

 

* MILSON FERNANDES PAULIN

Tabelião de Notas e Oficial de Registro Civil no Município de Aracruz/ES

Vice-Presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Espírito Santo

Pós-Graduado em Direito Notarial e Registral pela PUC/MG

Autor de obras e artigos em sites e revistas especializadas

Membro da União Internacional do Notariado – UINL



[1] Por força do Provimento n° 40/2012, em seu artigo 129, o Estado de São Paulo passou a admitir a lavratura de escritura de inventário e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento.

[2] CRUZ PONCE, Lisandro. El nasciturus. Boletim Mexicano de Derecho Comparado, n. 67. México, 1990.

[3] VELOSO, Zeno. Aspectos práticos da separação, divórcio, inventário e par­tilha consensuais. Belo Horizonte: IBDFAM, 2009.

[4] 63º ENCOGE – ENCONTRO DO COLÉGIO PERMANENTE DE CORREGEDORES-GERAIS DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DO BRASIL. Manaus/AM, 2013.

[5] SÃO PAULO. CGJ/SP. Processo 2012/162132 – (Provimento CG n. 40/2012) – Altera a redação do Capítulo XIV das Normas de Serviço da Egrégia Correge­doria Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Data da Publicação: 13/12/2012. 

[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Pau­lo: Malheiros, 2003.

[7] RADBRUCH, Gustav. Introducción a la filosofia del derecho. México: Fondo de Cultura, 1955.

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  1. Igor Emanuel disse:

    Muito bacana seu artigo Dr. Milson.
    Ainda essa semana estávamos discutindo uma situação dessas.

    Igor

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