ANALFABETOS E PROCURAÇÃO PÚBLICA

Dona Philinha entrou em pânico no cartório, ladeada por dois filhos barbudos, aos brados de “não boto, não boto e não boto”.

O nome da pobre era para ser Sophia, mas foi registrada como Sophilia. Diz que quando o pai dela foi ao cartório registrá-la, perguntou para a mulher: “Ôo, véia, como é mesmo o nome da fia?” e a mulher respondeu “eu já disse, véio, que não se diz fia, se diz filha. E o nome dela é Sophia”. Vai daí que o velho fez confusão, na sua lógica de analfabeto, pois se é filha, e não fia, então é Sophilia, e não Sophia (não se pode esquecer que Dona Philinha nasceu no tempo em que se escrevia pharmacia, assim mesmo, com ph).

– Vai botar, sim, senhora! Vociferaram os filhos.

As pessoas que aguardavam atendimento olharam de cara feia para os brutamontes. Lá isso era jeito de tratar uma velha mãe?

Dado o silêncio que se fez, Dona Philinha, assim mesmo, com ph (era para ser filhinha, diminutivo de filha) olhou-me com cara de súplica, enquanto dizia como se fizesse um pedido de socorro, que não ia botar o dedo.

Daí que se manifestou um dos filhos. O INSS exigia um procurador para sua mãe, que não sabia assinar. E o benefício ficaria depositado no banco enquanto um procurador não fosse receber o dinheiro. Talvez até fosse suspenso.

E explicou o pânico da velha senhora, noveleira convicta. Disse que nas novelas, em especial na novela das 7, inclusive na atual, basta alguém assinar uma procuração para ser jogado no olho da rua. Por isso a velha tinha urticária só de ouvir a palavra procuração. Para ela, assinar uma procuração – ou botar o dedo numa, significaria perder tudo que tem, que é pouco, mas é dela.

Dona Philinha, sendo analfabeta, tinha que fazer uma procuração pública. E por isso estavam ali.

De fato, aos analfabetos não é dado outorgar procuração particular, porque não sabendo ler e escrever não têm discernimento do teor dos poderes concedidos, podendo ser presa fácil para os malandros de plantão. A exigência da forma pública é para dar proteção, porque afinal o tabelião fará a leitura do ato, aferindo a real vontade e ainda a capacidade jurídica da pessoa.

Tudo explicado, e Dona Philinha irredutível: não, não e não. Nem que a vaca tussa. Procuração, nem a pau, Juvenau. Disse que podia botar o dedo em qualquer coisa, até numa tomada com o fio desencapado, mas numa procuração nunca, jamais.

A solução veio depois de mais de hora de conversa reservada com o tabelião, que lhe explanou sobre os cartórios, a segurança jurídica, para o que servem, enfim. Mas o que mais impressinou Dona Philinha foi que os tabelionatos são instituições muito antigas, com mais de 700 anos de bons serviços prestados. Isso a convenceu a botar o dedo.

Feito o instrumento, lido e achado conforme, indo assinado a rogo por um dos filhos, que o outro ficou como procurador, Dona Philinha desculpou-se por tudo, agradeceu muito, e ao despedir-se, com um misto de dúvida e admiração nos seus olhos ingênuos e bondosos (poxa… mais de 700 anos!) gentilmente disse ao tabelião:

– Mas o senhor nem parece tão velho, viu?

Todos ficamos sorrindo, de certo comovidos, até.

 

 

 

 

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  1. JOSÉ ANTONIO ORTEGA RUIZ disse:

    Especial Dr. Hildor, muito especial, e isso é uma CONSTANTE aqui na nossa querida Amaporã-PR, onde acontece de tudo, e eles (as) só assinam depois que o “Seu Ortega” dizer que pode. (Pode???) Mas realmente, essa segurança e essa certeza de que lerei para ela (e) o que “botou o dedo”, é que faz com que saibam que não vai ter problema. Pena que ainda tem quem passe esses pobres para trás. Mas é uma satisfação a leitura pormenorizada de todos os detalhes, pois é tal e qual ocorre diariamente nessas paragens onde o analfabetismo ainda predomina. E muitos que sabem assinar, assinam sem saber o que assinam, MAS AQUI NO CARTÓRIO “O SEU ORTEGA” lê e explica para a gente. E assim é a tônica de todas as Serventias Notariais, com sua velhice sempre ao dispor. Um abraço do amigo JOSÉ ANTONIO – Amaporã-PR.

  2. JOSÉ ANTONIO ORTEGA RUIZ disse:

    Especial Dr. Hildor, muito especial, e isso é uma CONSTANTE aqui na nossa querida Amaporã-PR, onde acontece de tudo, e eles (as) só assinam depois que o “Seu Ortega” dizer que pode. (Pode???) Mas realmente, essa segurança e essa certeza de que lerei para ela (e) o que “botou o dedo”, é que faz com que saibam que não vai ter problema. Pena que ainda tem quem passe esses pobres para trás. Mas é uma satisfação a leitura pormenorizada de todos os detalhes, pois é tal e qual ocorre diariamente nessas paragens onde o analfabetismo ainda predomina. E muitos que sabem assinar, assinam sem saber o que assinam, MAS AQUI NO CARTÓRIO “O SEU ORTEGA” lê e explica para a gente. E assim é a tônica de todas as Serventias Notariais, com sua velhice sempre ao dispor. Um abraço do amigo JOSÉ ANTONIO – Amaporã-PR.

  3. Fabrício Miguel Nogueira disse:

    Ainda não aconteceu algo do gênero aqui (São Miguel Arcanjo-SP) mas dá pra perceber a que nível de licença poética é levado o Direito nas obras teledramatúrgicas.

    Sorte a todos e abraço a todos

    Fabrício

  4. Fabrício Miguel Nogueira disse:

    Ainda não aconteceu algo do gênero aqui (São Miguel Arcanjo-SP) mas dá pra perceber a que nível de licença poética é levado o Direito nas obras teledramatúrgicas.

    Sorte a todos e abraço a todos

    Fabrício

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