Artigo – COMPETÊNCIA TERRITORIAL PARA A PRÁTICA DE ATOS NOTARIAIS ELETRÔNICOS – Por José Flávio Bueno Fischer e Carolina Edith Mosmam dos Santos

Artigo – Competência Territorial para a Prática de Atos Notariais Eletrônicos – Por José Flávio Bueno Fischer e Carolina Edith Mosmam dos Santos

 

O Provimento 100, publicado em 26 de maio de 2020, pelo Conselho Nacional de Justiça, autorizou a prática de atos notariais eletrônicos em todos os Tabelionatos de Notas do Brasil.

Através da plataforma do e-Notariado, que foi implementada e é mantida pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, se tornou possível lavrar os mais variados tipos de escrituras públicas, como compra e venda, divórcio, inventário, e até testamento, de forma eletrônica, com a mesma segurança jurídica dos atos realizados presencialmente. Se tornou possível, também, fazer autenticações de forma eletrônica, pela Central Notarial de Autenticação Digital – CENAD. Apenas o reconhecimento de firma eletrônico ainda não está disponível na plataforma.

Os atos notariais feitos de forma eletrônica não possuem barreiras geográficas. Em razão disto, o Provimento 100 estabeleceu competência territorial para a prática destes atos, mitigando o princípio da livre escolha do tabelião de notas pelas partes, previsto no artigo 8º, da Lei 8.935/1994. Nos seus “considerandos”, o Provimento salientou “a necessidade de evitar a concorrência predatória por serviços prestados remotamente que podem ofender a fé pública notarial”, já que os emolumentos têm valores diferentes de Estado para Estado.

Assim, nos artigos 19, 20 e 21, o Provimento determinou as regras de competência a serem observadas pelos notários quando da lavratura dos atos notariais eletrônicos. Tais regras têm gerado interpretações diversas na comunidade notarial e, por isto, decidimos nos debruçar sobre elas no presente artigo.

O artigo 19 estabeleceu qual é o tabelião competente quando a escritura eletrônica envolver imóvel. De acordo com o “caput”, “ao tabelião de notas da circunscrição do imóvel ou do domicílio do adquirente compete, de forma remota e com exclusividade, lavrar as escrituras eletronicamente, por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes”. Ou seja, o artigo

estabeleceu que é competente para a prática do ato notarial eletrônico, de forma alternativa, o notário do local (município ou circunscrição) de situação do imóvel ou do domicílio do adquirente; ou um, ou outro, à escolha das partes.

O § 1º, do artigo 19, complementando o “caput”, determinou que “quando houver um ou mais imóveis de diferentes circunscrições no mesmo ato notarial, será competente para a prática de atos remotos o tabelião de quaisquer delas”. Isto significa dizer que quando o ato envolver imóveis situados em diferentes circunscrições, será competente o notário de qualquer uma delas.

O § 2º, por sua vez, mencionou que “estando o imóvel localizado no mesmo estado da federação do domicílio do adquirente, este poderá escolher qualquer tabelionato de notas da unidade federativa para a lavratura do ato”. Este parágrafo causou diferentes interpretações tão logo o Provimento foi publicado. Respeitados posicionamentos em sentido diverso, entendemos que a melhor interpretação é a que se o domicílio do comprador for no mesmo Estado de localização do imóvel, o ato eletrônico poderá ser lavrado em qualquer Tabelionato de Notas daquele Estado. Este entendimento vai ao encontro do objetivo do Provimento de se evitar a concorrência predatória entre notários, já que dentro do mesmo Estado, os emolumentos são idênticos, não havendo prejuízo na livre escolha do tabelião dentro da mesma Unidade Federativa.

Por fim, ainda em relação ao artigo 19, o §3º conceituou o que se entende por adquirente, para fins do Provimento: “entende-se por adquirente, nesta ordem, o comprador, a parte que está adquirindo direito real ou a parte em relação à qual é reconhecido crédito”.

A redação do parágrafo §3º é bastante importante para o estabelecimento da competência não só para atos de compra e venda, quando o termo “adquirente” não deixa maiores dúvidas, mas, para outros atos que envolvam a aquisição de um direito real, como doação ou partilha de bens imóveis por inventário, separação, divórcio ou dissolução de união estável. Nestes atos, entendemos que o donatário, os herdeiros, os separandos, os divorciandos e os companheiros podem ser classificados como adquirentes, por estarem adquirindo direito real através da doação ou da partilha, aplicando-se a regra do artigo 19, de que é competente o notário de situação do imóvel ou do domicílio das partes.

A competência para a prática dos atos eletrônicos que envolvam imóveis, abrangida majoritariamente no artigo 19, parece repousar em águas mansas, excetuados alguns poucos detalhes que causam discussão. A competência para os atos eletrônicos que não têm imóveis, contudo, tem navegado em mares bem mais turbulentos.

Em relação à competência para a prática dos atos notariais eletrônicos que não envolvam imóveis, há duas correntes: a primeira, defende que a regra geral do Provimento é de que é competente o notário do domicílio das partes; a segunda, afirma que o Provimento 100 somente estabeleceu competência para as escrituras e atos notariais eletrônicos imobiliários, deixando livre a escolha do notário para os demais atos, de acordo com a Lei 8.935/1994.

A primeira corrente baseia seu posicionamento no artigo 20:

Art. 20. Ao tabelião de notas da circunscrição do fato constatado ou, quando inaplicável este critério, ao tabelião do domicílio do requerente compete lavrar as atas notariais eletrônicas, de forma remota e com exclusividade por meio do e-Notariado, com a realização de videoconferência e assinaturas digitais das partes.

Parágrafo único. A lavratura de procuração pública eletrônica caberá ao tabelião do domicílio do outorgante ou do local do imóvel, se for o caso.

 De acordo com os defensores desta tese, o artigo 20, ao prever que quando a ata ou a procuração não tratar de imóvel, é competente o tabelião do domicílio do requerente ou do outorgante, deixa clara a regra geral trazida pelo Provimento 100, de que não havendo imóvel, é competente o notário do domicílio das partes. Tal assertiva, segundo esta corrente, é corroborada, ainda, pelo artigo 19, que adota também o critério de domicílio das partes, ao lado do local de situação do imóvel.

Levando em conta esta interpretação, todos os atos notariais que não envolvam imóveis, mesmo que não previstos expressamente no Provimento, são de competência do tabelião do local de domicílio das partes. Assim deve ser, por exemplo, a prática do testamento eletrônico, para a qual é competente o notário de domicílio do testador. Da mesma forma, no inventário, no divórcio, na separação e na dissolução de união estável em que não é realizada partilha de bens imóveis, a competência é do tabelião de domicílio de qualquer um dos herdeiros, dos divorciandos, dos separandos ou dos companheiros.

A segunda corrente, por sua vez, entende que o Provimento 100 somente estabeleceu competência para os atos eletrônicos que têm imóveis, deixando livre a escolha do notário para os demais atos, de acordo com Lei 8.935/1994. A base para esta interpretação é a redação do parágrafo único, do artigo 21: “na falta de comprovação do domicílio da pessoa física, será observado apenas o local do imóvel, podendo ser estabelecidos convênios com órgãos fiscais para que os notários identifiquem, de forma

mais célere e segura, o domicílio das partes”. De acordo com esta tese, quando o artigo fala que será observado apenas o local do imóvel na falta de comprovação do domicílio da pessoa física, ele deixa claro que a fixação de competência é restrita aos atos imobiliários, já que ele não traz alternativa para o caso de não ser possível comprovar o domicílio da pessoa física e o ato não abranger imóvel.

Além disto, segundo esta corrente, não é possível ampliar o alcance de uma norma restritiva. Se o Provimento 100 não estabeleceu expressamente competência para atos como testamento, divórcio, separação, dissolução de união estável e outras escrituras que não têm imóveis, é porque não quis fazê-lo, aplicando-se, de consequência, o princípio da livre escolha previsto na Lei 8.935/1994.

Esta última tese, da livre escolha do tabelião para os atos eletrônicos que não se refiram a imóveis, nos parece a mais justa e a mais coerente. Considerando que as escrituras que têm imóveis representam as de valor mais expressivo de emolumentos, esta tese atenderia o objetivo de evitar a concorrência predatória entre tabeliães. Ao mesmo tempo, esta interpretação viabilizaria o acesso de mais pessoas aos atos notariais eletrônicos. Muitos Tabelionatos de Notas do país ainda não oferecem o serviço. Não porque não querem, mas, porque não podem. Há muitas Serventias deficitárias no Brasil e não podemos fechar os olhos para isto. Estabelecer competência somente para os atos eletrônicos que envolvem imóveis cuidaria da justiça, de evitar que alguns notários fossem beneficiados em razão da diferença do valor de emolumentos entre Estados, mas, também, cuidaria de um princípio basilar do Notariado Latino, norte da atividade notarial, o da confiança das partes no notário, que é garantido, especialmente, pela livre escolha do tabelião.

É só pensar no testamento. Muitas pessoas preferem fazer seus testamentos em cidades distintas de sua residência para evitar especulações sobre o documento. Se a interpretação for de que a competência é restrita ao notário do domicílio do testador, este não poderá realizá-lo de forma eletrônica se optar por notário de outra cidade, o que é muito prejudicial, ainda mais em tempos de pandemia.

Entretanto, apesar de reputarmos ideal a tese da livre escolha do notário quando o ato eletrônico não envolver imóvel, limitando a fixação de competência para escrituras e atos notariais imobiliários, pensamos que a redação atual dos artigos do Provimento 100 não levam à conclusão automática e imediata desta tese, tanto que existe interpretação em sentido distinto, conforme demonstramos acima.

Desta forma, entendemos que seria importante um estudo sobre o assunto, com esclarecimentos aos notários sobre qual corrente prevalece, ou até mesmo edição de norma complementar que defina tais diretrizes, para que todos lavrem com tranquilidade os atos notariais eletrônicos, sem risco de eventual responsabilização por descumprimento da competência territorial.

 

*José Flávio Bueno Fischer, 1º Tabelião de Notas e de Protesto de Novo Hamburgo/RS, Presidente do CNB/RS, Ex-Presidente do CNB/CF, Membro do Conselho Geral da UINL

 *Carolina Edith Mosmann dos Santos, Advogada e Pesquisadora, Ex-escrevente do 1º Tabelionato de Novo Hamburgo/RS, Aderente Individual da UINL, Pós-graduanda em Direito Notarial e Registral pela UFMA.

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