Artigo – Conjur – O acesso à Justiça sem justiça – Por Antônio Aurélio de Souza Viana e Camilla Mattos Paolinelli

Não é novidade para ninguém que o acesso à Justiça no Brasil é problemático. Dada a notoriedade do problema, há décadas são discutidas estratégias para que se viabilize uma melhoria na referida atividade e são famosas as chamadas “ondas de acesso”. Recentemente, não se pode ignorar a tentativa de agilização dos procedimentos pela utilização de um sistema de precedentes, bem como o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas para servir de apoio de servidores e magistrados, cogitando-se até mesmo a criação de algoritmos de IA com finalidade decisória [1].

Além dessas iniciativas, uma das propostas de incremento do exercício da atividade jurisdicional é, paradoxalmente, o enxugamento da atividade jurisdicional. Explica-se: como o Judiciário não dá conta de decidir milhões de casos com a celeridade que se espera, intenta-se transferir para outras esferas, como os cartórios, a responsabilidade pelo desenvolvimento de atividades até então desempenhadas de forma exclusiva pelo sistema de Justiça estatal.

As técnicas já implantadas são numerosas: 1) divórcio, inventário e usucapião extrajudiciais; 2) procedimento de execução extrajudicial de retomada e leilão de imóveis, como previsto na Lei 9.514/97; 3) incentivo às técnicas alternativas de resolução de conflito, como a mediação privada ou arbitragem; e 4) procedimento de regularização fundiária, que permite a titulação coletiva de centenas e até milhares de imóveis de uma só vez, independentemente do ajuizamento de inúmeras ações de usucapião.

As iniciativas não param por aí e a tendência é fortalecida por propostas que consagram a tônica de desjudicialização, como os recentes projetos de lei envolvendo o “despejo extrajudicial” e a “execução extrajudicial”.

Perceba-se: nesse cenário, o acesso à Justiça se daria pela ausência de acesso à Justiça, na medida em que atos jurídicos que impactam na esfera de direitos passam a ser praticados não por um juiz, mas por um registrador ou tabelião. Para que tal proposta seja implementada, é necessário que haja o fortalecimento do papel das autoridades administrativas no que diz respeito ao desempenho de tarefas jurisdicionais e meramente executivas [2].

Pode-se elencar algumas justificativas para a desjudicialização:

— A atividade jurisdicional é demorada, cara e pouco efetiva, enquanto os serviços desenvolvidos pelos cartórios costumam ser rápidos, de custo acessível e podem ser considerados efetivos, na medida em que os atos praticados por registradores são dotados de fé pública;

— É alta a taxa de congestionamento no Judiciário;

— Pesquisas indicam que a população confia muito mais nos cartórios do que no Judiciário [3];

— Não haveria, na realidade, uma proibição de acesso à Justiça.

A tentação de desjudicialização é grande e qualquer um que se depare com as estatísticas do Judiciário tende a concordar com a repartição de funções.

Ocorre que a busca por máxima eficiência e celeridade pode, por vezes, representar prejuízos aos jurisdicionados, embora não se defenda, aqui, que o exercício das funções estatais deva ser demorado ou oneroso. Certamente que não!

Alguns exemplos dessa “tendência” podem ser elucidativos.

A Lei 9.514/97 dispõe sobre o Sistema Financeiro Imobiliário e institui a alienação fiduciária de imóvel, que é o tipo de garantia para o financiamento imobiliário mais praticado no Brasil, uma vez que a hipoteca caiu em desuso [4]. Quitado o financiamento, resolve-se a alienação fiduciária, com a consequente emissão de carta para baixa do gravame.

A complicação surge nos casos de inadimplemento. É que a referida lei traz a possibilidade de execução do contrato exclusivamente na esfera extrajudicial, junto ao Cartório de Registro de Imóveis. Uma vez verificada a dívida, após solicitação do agente fiduciário, o cartório encaminha uma notificação extrajudicial. Não quitada a dívida, a propriedade é consolidada em nome do banco, com ulterior realização de leilão, também extrajudicial.

O que mais chama a atenção na Lei 9.514/97 é ter criado uma espécie de escudo ao processo de execução e alienação do bem, pois de algum modo tenta neutralizar as ações judiciais em que se pretende discutir cláusulas contratuais.

Isso porque o parágrafo único do artigo 30 da mencionada lei prevê que uma vez averbada a consolidação da propriedade fiduciária, “as ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e leilão serão resolvidas em perdas e danos e não obstarão a reintegração de posse”.

No trecho destacado, a ideia é: ou há um vício grotesco de procedimento (ausência de notificação do devedor) ou o processo de execução extrajudicial é presumidamente válido e qualquer outra questão deve ser decidida em forma de perdas e danos, ainda que se invoque outros vícios.

Trata-se, em nossa visão, de um exemplo contundente dos possíveis efeitos envolvendo essa nova “onda da desjudicialização”.

Outro exemplo que contribui para o reforço da cruzada de aceleração dos procedimentos para a recuperação de imóveis de inquilinos inadimplentes sem intervenção do judiciário, é o Projeto de Lei 3.999/2020. Referida proposta dispõe sobre a possibilidade de despejo e consignação extrajudicial de chaves.

Seguindo os passos da lei de alienação judiciária, acima citada, a proposta de lei pretende delegar para os cartórios o poder de promover o despejo compulsório, nos casos de rescisão motivada por falta de pagamento. O projeto prevê que o locador, constatando a inadimplência do locatário, deve acionar pelo tabelionato de notas e solicitar a lavratura de ata notarial, da qual constarão todas as etapas do procedimento.

O inquilino inadimplente será notificado para purgar a mora ou desocupar voluntariamente o imóvel, no prazo de 30 dias corridos, sob pena de desocupação compulsória. Encerrado o prazo, diante da inexistência daquelas condutas, está autorizado o despejo compulsório, a ser executado por oficial de justiça do tabelionato de notas, podendo o ato ser acompanhado de força policial.

Como visto, a proposta delega às serventias notariais o poder de realizar atos de desocupação forçada, transferindo aos locatários inadimplentes, o ônus de recorrer ao judiciário apenas nas situações de comprovada “irregularidade no procedimento ou erro na planilha apresentada pelo locador”.

A proposta argumenta que a desjudicialização representaria uma alternativa para a morosidade na tramitação das ações judiciais de despejo, que estariam trazendo graves consequências para o mercado, ao supostamente impossibilitarem a reassunção imediata da disponibilidade econômica dos imóveis [5].

O projeto bem como sua justificativa seguem a mesma esteira de raciocínio da Proposta de Lei 6.204/2019, que prevê a possibilidade de desjudicialização das execuções civis [6].

Ambas as propostas partem da mesma vertente: repartir as competências do judiciário para que se alcance maior celeridade na resolução dos problemas, em especial daqueles que têm grandes impactos no mercado. Todavia, é preciso indagar qual seria o custo dessa “transferência”.

Como último, e talvez mais atual exemplo dessa toada, estão os smart contracts, que alinham a desjudicialização às facilidades da tecnologia.

Os smart contracts são contratos digitais autoexecutáveis e inadulteráveis que se valem de códigos de programação para definir as regras da relação contratual, suas consequências e sanções [7].

São criados a partir de uma forma de programação computacional condicional do tipo “se a, então b”, ou seja, se realizada determinada condição, implementa-se, de forma automática, a consequência prevista. O conjunto de instruções digitais contendo regras, consequências e penalidades convencionadas é inserido em um programa, em linguagem computacional e as partes fecham o acordo por meio de um clique.

A validação das regras é realizada por blockchain, o que garante a segurança do processo, permite atualizações automáticas, viabiliza comunicação direta e criptografada, além de evitar fraudes [8]. Os smart contracts automatizam a execução das cláusulas contratadas, na medida em que as exigências são impostas logo que a avença é celebrada e, caso não cumpridas, a aplicação da sanção é automática.

As aplicações pensadas para os smart contracts são das mais variadas.

Em transações imobiliárias envolvendo locação, por exemplo, os smart contracts poderiam controlar a adimplência de locatários, impondo sanções automáticas no caso de inadimplemento. Ao invés da determinação de despejo, advinda de uma decisão judicial, o contrato inteligente poderia bloquear a entrada do inquilino do imóvel alugado, seguindo à risca as instruções inseridas em sua programação. Também é possível pensar na programação inteligente para o bloqueio de dinheiro do locatário.

Tudo isso sem intermediários. Sem a necessidade de se delegar ao Judiciário ou a qualquer pessoa o encargo de remediar as coisas, caso algo dê errado.

A execução das consequências acordadas é o que torna os contratos inteligentes poderosos e, a princípio, pode-se pensar que este fato traz apenas vantagens: redução de custos, precisão, eficiência, confiabilidade e ausência de conflitos.

Contudo, é justamente neste ponto em que os contratos inteligentes podem acentuar os perigos que a “onda de desjudicialização” traz consigo.

Explica-se: em todas as iniciativas citadas, percebe-se um nítido movimento em direção ao um suposto fortalecimento do “sistema multiportas” com a transferência da competência de uma série de atos — que estão intimamente ligados à preservação de direitos fundamentais — à esfera das serventias notariais. Tudo isso ao argumento de que o sistema de Justiça estatal se encontra mergulhado numa profunda crise.

Os dados referentes a milhões de demandas em tramitação são apresentados como um quadro patológico, cuja recuperação exige como remédio a eliminação do processo de garantias processuais.

Não importa se as questões são de grande importância como alienação fiduciária, despejos ou expropriação de bens, ou se tocam direitos fundamentais como o direito à moradia e à garantia de dignidade. Não importa se o conteúdo de um contrato inteligente se apresenta contrário ao sentido normativo da função social. O que importa é criar mecanismos procedimentais amigáveis ao mercado.

A tônica de pacificação ofertada pela desjudicialização vende a promessa de que, com a delegação de tarefas aos cartórios e a impossibilidade de que fatores externos alterem a lógica de contratos digitais estabelecidos em plataformas inteligentes, haverá um ambiente favorável a investimentos e à circulação do capital. Mas a que preço?

A lógica mercadológica que se orienta pela redução dos custos e métricas de eficiência não se preocupa com o desequilíbrio contratual, onerosidade excessiva, desigualdade material ou jurídica ou com fatores de ordem social que podem estar por detrás da inadimplência.

Tampouco se preocupa em assegurar um espaço discursivo para que os litigantes em contraditório, exerçam ampla defesa, em condições de igualdade, buscando influenciar a construção de uma decisão que seja argumentativamente justa para o caso. Afinal, para o mercado, conflito é sinônimo de custo e mais custos importam em redução dos lucros, num cenário refratário a novos investimentos.

O que interessa às iniciativas de desjudicialização é que conflitos sejam eliminados: as soluções devem ser econômicas e eficientes. O acesso à justiça substancial passa a ser sinônimo de resultados rápidos alcançados às custas da supressão da intervenção estatal.

Nesse cenário, afinal, onde fica o processo?

Há muito, a percepção de processo-garantia vem cedendo lugar às exigências impostas pelo neoliberalismo. O modelo de processo democrático compreendido como instituição viabilizadora da participação e controle incessantes do povo (destinatário e construtor normativo) nos atos de poder estatal em todas as esferas, tem sido relegado a segundo plano.

As garantias processuais do contraditório na acepção dinâmica, isonomia, ampla defesa como ampla argumentação e dever de fundamentação racional e legítima das decisões, essenciais à implementação de direitos, na “onda de desjudicialização”, estão deixando de ditar as regras do jogo. Promete-se eficiência e economia em troca da renúncia ao processo como espaço de implementação técnica de direitos fundamentais.

Anuncia-se o fim de acesso à Justiça enquanto garantia fundamental de um procedimento jurisdicional constitucionalmente adequado.

Todo esse movimento, ovacionado por muitos, tem de ser percebido com reservas. Em consideração, sobretudo, da necessidade de preservação da função social dos contratos — em especial, aqueles que tenham relação estreita com o direito fundamental à moradia — como os de locação e de alienação fiduciária. Deve-se também observar a advertência constitucional de que a privação da garantia fundamental de “gozar do que é seu” ainda está reservada à necessária observância do devido processo.

Isso porque o que se notabiliza nas propostas apresentadas, não é a disposição de que sejam criadas novas ferramentas procedimentais que possam, de fato, resolver problemas ligados à litigiosidade multifacetada; ou o excesso de tempo na tramitação dos processos.

As alternativas cogitadas apenas transferem o problema de lugar. Reduz-se o número de procedimentos, limita-se o acesso ao Judiciário, privando indivíduos do exercício de garantias processuais, com a transferência dos mesmíssimos atos para os cartórios.

A alternativa pode até, a princípio, parecer um grande negócio… Mas a conta de quem? De milhares pessoas necessitadas, pequenos litigantes que, diante da inadimplência em contratos de locação ou de alienação fiduciária em garantia serão arrancados de suas moradias, sem direito adequado à ampla defesa, ao contraditório ou a um processo constitucionalmente justo. Tudo isso em nome da eficiência.

A ver. Observemos até onde a “onda de desjudicialização” presta-se a fornecer “acesso à Justiça”.

 

[1] A propósito: https://www.conjur.com.br/2018-jan-22/opiniao-deslocar-funcao-decisoria-maquinas-perigoso. Conferir a recente Resolução 332 do CNJ. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429.

[2] STUSSI, Jurema Schwind Pedroso; PEREIRA, Adriana de Souza. Tutela jurisdicional efetiva, desjudicialização e novos desafios do direito de família. Revista dos Tribunais | vol. 986/2017 | p. 243 – 262 | Dez / 2017 DTR\2017\6949.

[3] https://www.anoreg.org.br/site/salas-tematicas/pesquisa-datafolha/.

[4] https://www.colegiorisc.org.br/noticias/informativos/alienacao-fiduciaria-imobiliaria-por-rubens-sampaio-carnelos/.

[5] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=B4F512E4DA115D7418D4BE8EB593E249.proposicoesWebExterno2?codteor=1917803&filename=PL+3999/202.

[6] Para mais, ver: https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=8049470&ts=1594037651957&disposition=inline.

[7] https://blog.bitcointrade.com.br/smart-contract/.

[8] https://blog.bitcointrade.com.br/smart-contract/.

Fonte: Conjur

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