Artigo – Continuemos usando o papel – Samuel Luiz Araújo

Continuemos usando o papel

Samuel Luiz Araújo

Notário em Minas Gerais, doutor em Direito

 

 

O ataque hacker ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) revela a fragilidade do sistema de informática no Brasil. A Lei do Progresso, inflexível que é, projeta-nos para o futuro e isso é certo. Aqueles que se prostram, ou então que se mostram resistentes a ela, são esmagados por acontecimentos que, tenham ou não relação flagrante, direta, a ela se aderem.

Por consequência, a digitalização de documentos e todos os avanços (cada vez mais rápidos) da informática parecem-me igualmente inflexíveis quanto a um possível retorno a eras pregressas. Dizendo de outro modo, parece-me improvável o retorno à “Idade das Pedras” e a desconsideração de todos os progressos obtidos até aqui.

No entanto, continuemos prudentemente usando o papel. Afinal, “duas amarras protegem melhor o navio”. Relata-nos Renzo Tosi (Dicionário de sentenças latinas e gregas) que as medalhas de Vespasiano e de Domiciano continham a expressão Festina lente (Apressa-te lentamente), cujo significado é fazer as coisas sem procrastinações, mas de modo ponderado e com cautela.

Há iniciativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Colégio Notarial do Brasil (CNB) para a digitalização de documentos. O Provimento 100, de 26 de maio de 2020, CNJ, prescreve em seu art. 1º o estabelecimento de normas gerais para a prática de atos notariais eletrônicos em todo o país e o seu art. 31 permite que o arquivamento dos documentos e papéis apresentados aos notários seja feito exclusivamente por meio digital. E o CNB tem obtido êxito na disciplina das escrituras eletrônicas, criando e mantendo um sistema cujo funcionamento tem se mostrado muito eficiente.

Todavia, a modernidade deve se conjuminar com a segurança. Hannibal ad portas. É momento de extrema prudência. Segurança é um vocábulo que desautoriza temperamentos, mitigações. Ou é seguro, ou é inseguro. Inexiste meia segurança. Segurança exige harmonia no início, meio e fim. E o território brasileiro tem de estar seguro. O assunto diz respeito à segurança da nação brasileira.

Diante do ataque cibernético, a instrumentalização dos atos notariais eletrônicos e o seu armazenamento “em nuvem” levantaram dúvidas quanto à segurança do sistema. Uma escritura lavrada para instrumentalizar uma aquisição imobiliária é armazenada (arquivada) em um local que se presume seguro.

Em que pese isso, algumas questões são levantadas. A primeira é: onde se localiza a “nuvem”? A segunda: quem é o proprietário da “nuvem”? Terceira: há participação de governos estrangeiros na administração, gerência da “nuvem”?

Observe que estamos tratando da propriedade, esta que integra o território brasileiro, elemento integrante do Estado. Ausente qualquer um dos quatro elementos previstos no art. 1º da Convenção de Montevideo de 1933 (população permanente, território, governo e capacidade de relacionamento com outros Estados), inexiste Estado.

Os cientistas políticos americanos, a partir de estudos do National War College, afirmavam que a segurança nacional visava à preservação da integridade física e territorial da nação, além de manter razoavelmente suas relações econômicas com outros Estados e proteção da sua maneira de ser, instituições e governo, ensina Hélio Bicudo, em Segurança nacional ou submissão.

O território é um dos elementos do Estado e onde ele exerce a sua soberania, interessando-nos sobremaneira aquilo que Amílcar de Castro (Direito internacional privado) definia como o território jurídico, abstraindo-se, se possível, do território entendido tão-só fisicamente.

Deixar todas as contratações, toda a instrumentalização de negócios jurídicos, todas as matrículas, enfim, todos os registros públicos “em nuvem” é um risco absurdo e atentatório à segurança nacional. A ameaça é factível. Todo o sistema de propriedade é colocado à mercê de empresas estrangeiras, talvez de governos estrangeiros. Todo o sistema de garantias é colocado “em nuvem”, cujos nomes, em tese, podem ser modificados, subtraídos, extintos; cujos perímetros também podem ser alterados. Todo o território brasileiro poderia ser alterado, tanto subjetiva quanto objetivamente. O ataque ao STJ demonstra ser possível.

Devemos acompanhar o progresso, mas desenvolvendo tecnologias eficazes para garantir a segurança da nação. E a propriedade, o nosso território, muito nos interessa. Arquivar tudo “em nuvem”, sem arquivamento físico, é um risco absurdo, uma ameaça à segurança nacional. O papel, queira ou não, deve continuar instrumentalizando os negócios. E, no confronto entre papel e arquivo eletrônico, prevalecerá aquele.

Por tudo que se expôs, sugere-se: 1) o assunto interessa à segurança nacional e em todas as circunstâncias deve participar o Governo Federal, especialmente os órgãos que cuidam da sua defesa; 2) arquivamento dúplice (papel/digital) com a materialização de todos os atos notariais e registrais realizados em ambiente eletrônico, com prevalência do papel sobre o digital em caso de conflito; 3) investimento maciço em tecnologia, tanto da parte do Estado como da parte dos interessados, a fim de garantir um ambiente seguro para o arquivamento dos atos eletrônicos, preferencialmente nacional e gerido pelo Poder Público.

Até aqui, pode-se afirmar, estamos vulneráveis. Afinal de contas, de quem é a “nuvem”?

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