Compra de imóvel por incapaz

 Samuel Luiz Araújo

 
O tema retoma o seu corpo, sobretudo pela publicação da decisão da Eg. CGJ/SP (processo CG 2013/96323)1, na qual se penaliza o tabelião que lavrou uma “escritura pública de compra de venda de imóvel adquirido por menores com recursos próprios conforme exigência da lei substantiva civil e das NSCGJ”. O colega Tarcisio Alves Ponceano Nunes, em texto publicado nesta coluna, expôs fundamentadamente o seu posicionamento, adotando-se o entendimento da Corregedoria paulista. Li também o texto do colega José Hildor Leal, que não vê óbice na aquisição. Outros colegas demonstraram o seu posicionamento por meio dos “comentários”.
 
Não posso opinar a respeito da decisão, sobretudo por desconhecê-la.2 Como lecionava Celso, É contrário ao Direito julgar e responder por uma disposição qualquer do texto, apenas considerando uma parte qualquer do seu conteúdo, sem havê-lo examinado no seu todo.3 Contudo, a respeito do tema, gostaria de passar o meu entendimento e de fomentar o debate.
 
A aquisição de imóvel por incapaz4 sem autorização judicial é possível, desde que devidamente representado ou assistido. Pode haver alguma norma administrativa que preveja a obrigatoriedade do alvará (autorização judicial), o que impõe a sua observância, mas lei em sentido estrito, eu desconheço.
 
O art. 1.691, CC, deve ser interpretado em conjunto com os arts. 1.740 e ss., CC. Em suma, o que a lei veda é a ocorrência de prejuízo para o incapaz.
Discordo do entendimento de que a exigência de autorização judicial é corolário do princípio (dever) de cautela do Direito Notarial. Fosse assim, numa enormidade de casos teríamos de recusar a prática de atos, hipoteticamente danosos. Nós não trabalhamos com hipóteses, não extrapolamos os interesses das partes (manifestação de vontade), não temos “bolas de cristal” e sim apenas formalizamos juridicamente as suas vontades, realizando a polícia jurídica. E ao realizarmos a polícia jurídica, atentamos liturgicamente para as normas. É o que fazemos.
 
Por outro lado (aqui reside a cautela e a prudência5 de Direito Notarial), é inadmissível a lavratura de escritura quando é sabido que o bem não vale aquilo que está sendo negociado e documentado. Exemplo: deve o tabelião recusar fundamentadamente a lavratura do ato sabendo que o imóvel adquirido tem um valor menor do que o negociado. Melhorando o exemplo, imóvel negociado por R$1.000.000,00 quando se sabe (é crível) que não vale mais do que R$200.000,00, o que seria danoso aos interesses do incapaz e fomentaria a insegurança jurídica.
 
Um equívoco maior seria apenas considerar a aquisição de imóveis, quando existem móveis que valem o décuplo desses. Exigir alvará para a compra de um imóvel que vale R$100.000,00 e dispensá-lo para a de uma Ferrari é ilógico.
 
Acerca dos “atos de administração” (expressão da lei), a jurisprudência nacional já se manifestou. Aplicação de dinheiro do incapaz e sua retirada, investimentos diversos, movimentação em caderneta de poupança, são considerados atos de administração, sendo desnecessária a autorização judicial.6 Deve o tutor (de um modo geral) investir o dinheiro do incapaz e a aquisição imobiliária no Brasil é um excelente investimento, respeitados os valores de mercado. Sempre o foi.
 
Somente o Poder Judiciário decidirá se a aquisição foi benéfica ou prejudicial e isso em sede própria, isto é, prestação de contas. Refoge às nossas atribuições perquirir da conveniência ou oportunidade da aquisição, observados os valores praticados pelo mercado.
 
A doutrina nacional trata do assunto com muito cuidado, manifestando-se expressamente Maria Helena Diniz e Eduardo Espínola7, para quem a aquisição sem alvará é possível. Observe em Carvalho Santos que a expressão “ato de administração” significa “sòmente aquêle que visa a conservação do patrimônio e aquêles que têm por finalidade retirar os produtos ou frutos, sem alterar a composição geral do patrimônio, vale dizer – a exploração de acôrdo com a destinação dos bens que compõem o mesmo patrimônio”.8 Entendo que a aplicação de numerário em sérias aquisições imobiliárias não altera a composição patrimonial do incapaz.
 
Fundados em despropositado receio, sustentam alguns que a aquisição poderia ser contestada em juízo, que decidiria pela sua inoportunidade e consequente prejuízo para o incapaz e cuja decisão viria a responsabilizar o tabelião pela lavratura da escritura aquisitiva. Creio ser impossível a responsabilização se o notário agiu de conformidade com a lei e os princípios inerentes à atividade.
 
Concluindo, pode o incapaz adquirir imóvel sem autorização judicial, desde que devidamente representado ou assistido, respeitados os valores de mercado do bem. Inexiste lei em sentido estrito que torne obrigatório (ou imprescindível) o alvará e estamos caminhando num terreno onde a liberdade nos está assegurada e temos o direito de caminhar livres de surpresas. Todavia, diante da existência de norma infralegal (Código de Normas, instruções etc.) que exige a autorização do juiz, devemos a ela severa observância.
 
Como dito, gostaria de ouvir os colegas e, consequentemente, estimular o debate.
 
1 Aprovada pelo Corregedor-Geral de Justiça, Des. José Renato Nalini, em 21 ago. (meu aniversário). O Des. José Renato Nalini é uma das mentes lúcidas deste país.
 
2 O colega José Hildor Leal pensa do mesmo modo (comentário de 1º ago. 2013).
 
3 Celso, Digesto, 1, 3, 24. Incivile est, nisi tola lege perspecta, uma aliqua partícula eius proposita iudicare vel respondere.
 
4 Trataremos do “incapaz” gênero, no qual se inclui a espécie menor, absoluta ou relativamente incapaz.
 
5 Quidquid agis, prudenter agas et respice finem (Seja lá o que fizeres, faze com prudência e considera bem o fim).
 
6 Por todos e não exaustivamente, v. TJDF, APC 0025673-40.2011.8.07.0001. Publicado em: 04 jul. 2013; TJSP. APL 0001666-47.2005.8.26.0168. Publicado em: 27 fev. 2013; TJPR, AC 0106670-8. Publicado em: 28 nov. 2011.
 
7 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 545 e ss. ESPÍNOLA, Eduardo. A família no direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Gazeta Judiciária, 1954. p. 457 (nota 19).
 
8 CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código civil brasileiro interpretado. 7. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1961. v. VI. p. 72. Vide ainda a definição em BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. t. I. p. 843. Para este, “Por poderes de simples administração, entendem-se os actos concernentes á bôa conservação e exploração dos bens, como as benfeitorias, o pagamentos dos impostos, a defesa judicial, e a alienação dos moveis destinados a esse fim”.
 
 

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  1. J. Hildor disse:

    O articulista deu continuidade a um debate que iniciamos no blog notarial. Está de parabéns o colega Samuel pelo modo como se expressou, lançando luzes sobre o tema, fomentando uma discussão necessária para o bem do direito notarial e registral.
    Concordo em gênero,número e grau com a exposição feita.

  2. Samuel Luiz Araújo disse:

    Agradeço a manifestação do colega José Hildor. Penso ser um assunto de interesse geral, tema que poderia ser explorado em eventos/congressos, trazendo para o diálogo opiniões divergentes.

  3. Cicero Antonio Segatto Mazzutti disse:

    Trago ilações para o debate.
    Conheço o texto do Dr. Hildor, e sempre coadunei com este entendimento, principalmente quando estava no Rio Grande do Sul, onde esta espécie de negócio ocorre com certa constância. Ultimamente tenho tomado conhecimentos de casos como o narrado pelo Dr. Samuel , logo passei a analisar com mais cuidado os negócios envolvidos, vejamos:
    A administração do bem do incapaz abarca a substituição de numerário por bem de outra espécie(?), no caso imóvel. Entendia como possível, pois o patrimônio do incapaz não sofria qualquer redução, inclusive há valorização do patrimônio, mas ao adquirir um imóvel o incapaz passa a enquadrar-se na situação de contribuinte de tributo, por exemplo: IPTU, bem como devedor de outras obrigações que possam ter origem na coisa.
    Por vezes a aquisição está baseada, em verdade, por uma doação de pecúnia dos pais, neste caso, quem recebe o bem é o incapaz mas quem paga é o pai/mãe. Aqui não vejo problema, no mais das vezes, penso que a problematização está no caso de os pais não comparecerem no ato e ficar oculto a verdadeira origem do valor. Ainda temos as implicações sucessórias desta ocultação.
    Espero não ter divergido do tema. São pequenas considerações que podem trazer mais elementos para o debate

  4. Samuel Luiz Araújo disse:

    Agradeço a manifestação do colega, que enriquece e tonifica o debate. Entendo que a incidência tributária não modifica o posicionamento, visto que o numerário aplicado paga IOF e o proprietário, IPTU.

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