Firma semelhança: ato notarial autêntico sucessivo

Recente reportagem veiculada no Jornal Nacional, da Rede Globo, exibiu as facilidades do registro de contratos particulares na Junta Comercial do Estado de São Paulo (JUCESP) com o uso de documentos achados por malfeitores.

Essas facilidades são ocasionadas por projetos desburocratizadores para tornar fácil os tramites documentais nos órgãos federais, estatais e municipais. Alguém já viu o Consulado da Espanha dispensar o nosso reconhecimento de firma ou cópia autenticada nos documentos que lá transitam?

Qual a razoabilidade de dispensar o reconhecimento de firma num instrumento particular, gerando invariavelmente no tráfico documental uma desestabilidade jurídica que culminará certamente em ações no Poder Judiciário, que já quase não têm processos para sentenciar?

Outro aspecto interessante é que o cotejo feito por funcionário público em documentos lhe apresentado não gera os mesmos efeitos probatórios que o ato notarial que em sua essência contém e oferece.

O ato do funcionário público milita presunção legal de existência ou de veracidade? Pelo teor do art. 364 do CPC parece-nos que não: o documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o tabelião, ou o funcionário declarar que ocorreram em sua presença. Vistes com todas as letras funcionário público municipal, estadual e federal?

Sabemos que o reconhecimento de firma remonta às Ordenações do Reino, cujo ato se encontra profundamente enraizado no sistema jurídico brasileiro. O reconhecimento de firma não surgiu simplesmente da imaginação fértil de algum homem médio, isto é, ato inútil. Nasceu da necessidade que se aprimorar a segurança dos atos jurídicos que trafegavam nessa época. Culturalmente algo mudou de lá para cá.

Como dissemos acima, atualmente, desburocratizadores obstinam atacar tal ato notarial com argumentos inseguros, muito das vezes descrepantes, em vão, pois sabemos que o cidadão sempre necessitará que tabelião confira garantia aos atos e documentos nos quais estão envolvidos, reconhecendo autenticidade originária ou sucessiva as assinaturas apostas, respondendo o tabelião civilmente por qualquer falha, conforme dispõe o artigo 22, da Lei 8.935/94.

Para os documentos em geral inexiste imposição legal de modalidade (autêntico, semi-autêntico, semelhança ou por abono), exceto em poucas portarias que determinam o reconhecimento autêntico (i.e., Detran). No Estado de São Paulo, pelas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça é permitido somente as modalidades autêntico e semelhança, exceto para presos, que se permite a modalidade abono.

Cumpre-nos ressaltar que a escolha da modalidade do reconhecimento de firma cabe tão-somente ao usuário ou terceiros que figurem ou que tenham interesse no ato, elegendo a forma que lhes aprouver. Porém, em determinados casos, cabe ao tabelião eleger a modalidade, assessorando as partes das questões de fundo que o leva a tal decisão. Geralmente são documentos como notas promissórias, títulos de crédito, dentre outros de grande monta e complexos.

Havendo convenção contratual quanto à modalidade, deverá ser praticada àquela pactuada na escritura pública ou no documento ajustado. No reconhecimento de firma por semelhança, o tabelião atesta em público que a assinatura constante em determinado documento assemelha-se com àquela previamente depositada no arquivo do Tabelionato, fazendo crer, até prova em contrário, que tal assinatura é verdadeira – ato notarial autêntico sucessivo decorrente da figura e da fé pública notarial.

Vale dizer que, aquele que contesta ato notarial tem o ônus de prová-lo, eis que a presunção de veracidade milita a seu favor. Nesse mesmo foco, a doutrina de João Mendes de Almeida Júnior1, in Orgams da Fé Pública, leciona que: “O vocábulo – acto, em sua significação legal, significa o escrito que prova o fato da convenção entre as partes, a que o oficial incumbido de lavrá-lo assiste propiis sensibus visus et auditus”.

Em outras palavras, é autêntico todo ato que realmente emana daquele a quem é atribuído, e, nesse sentido, até o escrito privado pode ser autêntico. É público todo ato feito coram populo (em público) e, nesse sentido, até o escrito feito por pessoas sem caráter oficial – pode ser público (evidente que sem os mesmos efeitos probatórios).

Mas, na técnica forense, se diz autêntico o escrito quando há a certeza legal de que é emanado da pessoa a quem é atribuído: e essa certeza legal só se adquire quando um órgão da fé pública, como o notário, incumbido de suprir o testemunho geral, assim o atesta ou no mesmo ato, em forma autêntica, ou, sem intervalo, ou com ato posterior: neste sentido se diz, na nossa técnica, ato público, escritura pública, o ato lavrado em forma autêntica por oficial público; e ato autêntico qualquer escrito reconhecido por oficial público, ainda que lavrado por pessoa privada.

Comenta João Mendes de Almeida Júnior2 que nas técnicas italianas e francesas, não há essa distinção, porque ali se chama ato autêntico, o ato lavrado por oficial público e com as formalidades legais: e, por isso, há ali necessidade de distinguir a autenticidade em autenticidade inicial (ou originária) e autenticidade sucessiva, sendo esta a dos escritos privados posteriormente reconhecidos por oficial público (i.e., reconhecimento de firma ou ata notarial que autentica a presentação de uma pessoa jurídica em contratos ou estatutos).

Já o instrumento público ou ato lavrado por notário é, por motivos de ordem pública ou por considerações de ordem prática, exigida ad substantiam ou ad solemnitatem para certos atos jurídicos, de sorte que, sem escritura pública, tais atos não produzem ação em juízo; mas, para outros atos, o instrumento público, ou ato lavrado por notário, é exigido ad probationem tantum, isto é, somente para prova, de sorte que, mesmo sem essa escritura, estes atos produzem ação em juízo, por isso que pode haver outros meios de prova que supram a escritura, tais como a confissão judicial, etc.

A autenticação sucessiva das letras (em desuso por falta de conhecimento da população) e firmas de um escrito particular, em regra, não é requerida nem ad substantiam actus, nem ad probationem, porém simplesmente para efeitos em relação a terceiros, quando se quer tornar certa a respectiva data, com isso, a sua existência naqueles exatos termos.

A jurisprudência se encarrega de ventilar seus efeitos:

Tribuna de Justiça de São Paulo:
Ementa: Data – Impugnação – Prevalência daquela em que houve reconhecimento de firma pelo Tabelião – CPC, Art. 370, Inciso V – Ação Improcedente – Cerceamento de defesa não caracterizado – Apelação Improvida. (vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação n° 7.091.956-5, da comarca de Auriflama, partes). Grifo nosso.

Tribuna de Justiça do Rio Grande do Sul:
Ementa: Apelação Cível. Ação declaratória. Precatório. Cessão de crédito. Pedido de compensação com débitos de IPVA. Instrumento particular. Ausência de reconhecimento de firma. Inviabilidade da compensação. Segundo regra incerta no art. 288, do CC, é ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrada mediante instrumento público, ou, então, instrumento particular revestido das solenidades do § 1º, do art. 654, do mesmo diploma legal, situação não verificada no caso concreto. Ademais, na espécie, o referido Termo de Cessão de Crédito não tem o necessário reconhecimento de firma, não podendo ser ele considerado como documento hábil a comprovar a cessão do crédito. Por fim, tratando-se de cessão de crédito por instrumento particular, indispensável a transcrição do respectivo termo no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, nos termos dos arts. 127, I, e 129, item 9º, da lei nº 6.015/73. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70021498969, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Henrique Osvaldo Poeta Roenick, Julgado em 31/10/2007).

Ementa: Agravo de instrumento. Responsabilidade civil. Documentos originais. Procuração. Hipótese em que a fotocópia do instrumento de mandato, adunada ao processo, demonstra que houve reconhecimento de firma devidamente datado, entendendo-se suprida a falta do dia e mês, que não foram anotados pela outorgante. Suficiência de cópia autenticada. INFORMATIVO DO REQUERIDO. A fotocópia do extrato emitido pelo órgão de restrição de crédito mostra-se legível. Portanto, aos efeitos do art. 283 do CPC, prescindível apresentação de via original. RECURSO PROVIDO EM DECISÃO MONOCRÁTICA. (Agravo de Instrumento Nº 70018891390, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ubirajara Mach de Oliveira, Julgado em 27/03/2007). Grifo nosso.

Ementa: Apelação Cível. Ação de adjudicação. Contrato de compra e venda. Instrumento particular não reconhecido. Ônus da prova que o autor não se desincumbiu. Improcedência da ação. Compete ao autor o ônus de demonstrar a existência do direito alegado, no caso, a adjudicação de bem imóvel, consoante disposto no art. 333, I do CPC. A cópia de contrato, impugnada pelo réu, ausente autenticação e reconhecimento de firma, não se presta a demonstrar o direito alegado, ausentes outras provas que o corroborem. Ausência de prova do pagamento. Por outro lado, a alegação do autor de vício de consentimento possui verossimilhança apta a amparar a improcedência da demanda, especialmente considerando-se a relação de amizade existente entre as partes e a pouca instrução do réu. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70011007069, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 31/05/2007). Grifo nosso.

Concluímos que, com as breves lições do mestre João Mendes de Almeida Júnior, na jurisprudência e na prática notarial, o reconhecimento de firma por semelhança é um ato notarial autêntico sucessivo que decorre naturalmente do poder geral de autenticação do notário.

Assim, se a parte deseja atribuir autenticidade à existência do documento (nos exatos termos) e a data, lhe basta o reconhecimento por semelhança. Se a parte desejar atribuir além das autenticidades acima, eleger a autenticação na modalidade autentica (ao conteúdo e assinaturas). Diga-se de passagem, que a data do reconhecimento de firma não se atrela a data aposta no documento. A primeira autentica a apresentação do documento ao notário, e a segunda é de ordem contratual, que as partes envolvidas ajustaram entre si.

O intuito desse trabalho não é dizer qual a melhor ou mais importante modalidade de reconhecimento de firmas, mas expor os atributos e finalidades de cada uma delas, a semelhança, para documentos com trânsito intenso e a autêntica para documentos que importam maiores considerações. Ademais, culturalmente não estamos preparados para a dispensa de qualquer ato que delimita a opção de estabilidade jurídica, tão perseguida nos atos jurídicos.

E, imaginar que num futuro bem próximo, essas peculiaridades não farão a menor diferença – o reconhecimento de firma digital está aí – viva os bits.

Saiba mais sobre reconhecimento de firmas, acesse: O RECONHECIMENTO DE FIRMA, LETRA, CHANCELA E DA AUTENTICAÇÃO DE CÓPIAS

Referência:
1ALMEIDA JR. João Mendes de. Orgams da Fé Pública. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. São Paulo: Espindola, Siqueira & Campos, 1897. http://arisp.wordpress.com . Acesso 31/12/2007, às 14h44min.
2Idem.

 

 

 

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