O precedente

 

Quod alicui gratiose conceditur, trahi non debet ab aliis in exemplum.[1]

 

Samuel Luiz Araújo

 

O tabelião acompanhou um parente[2] na compra de um veículo. Negociado o bem, viu-o assinando o documento de transferência, o qual lhe foi enviado posteriormente, via Correios. Trouxeram-lhe o referido documento para que se realizasse o reconhecimento de firma, arrimado no art. 271, § 1º, do Provimento 260/CGJ/2013 da CGJ/MG, mais especificamente declarando o autor que aquela assinatura era sua, lançada em momento anterior[3].

Considerando que o reconhecimento de firma deve ser feito por autenticidade; considerando que o tabelião viu o seu parente assinando o documento; considerando que o tabelião se encontra impedido de praticar por si o ato (art. 27, Lei 8.935/94); pergunta-se: poderia ele, valendo-se da posição de tabelião, exigir do seu preposto a prática do reconhecimento de firma? Pode parecer exagero, ou até mesmo preciosismo, mas eu entendo que ele não pode exigir isso.

Othon Sidou conceitua o vocábulo “precedente” como aquilo que vem anteriormente. “Fato, ato ou circunstância que antecede a outros semelhantes”.[4]

De Plácido e Silva afirma que o vocábulo “é empregado na forma substantiva e plural para designar os fatos anteriores ocorridos na vida de uma pessoa, referentes ao procedimento dela”. Continua, dizendo que “Os precedentes, assim, mostram-se bons ou maus, conforme boa ou má foi a atuação da pessoa na sociedade, até o momento em que se pesquisa sua vida anterior”. E arremata que “A vida pregressa, precisamente, é composta pelo registro ou conhecimento de todos os precedentes da pessoa. Constitui a exposição ou o relato de atos de sua vida”.[5]

Nós nos acostumamos a ouvir a expressão “precedente judicial”, que é uma decisão tomada a partir de um caso concreto, que serve de parâmetro para a solução de casos similares àquele. Como exemplo de precedente judicial, temos o positivado no art. 102, § 2º, Constituição Federal de 1988.

De Plácido e Silva também conceitua “precedência”, que, segundo ele e em sentido vulgar, significa a “posição de anterioridade ou a antecedência a respeito das coisas, que assim se mostram colocadas antes ou na frente de outras, que lhes são posteriores ou lhes seguem”; em sentido jurídico, “fundada no fato material da anterioridade, a precedência quer significar prioridade, primazia ou preferência asseguradas a quem antes fêz qualquer coisa”.[6]

Aqui nos interessa a ideia de um bom precedente e de um mau precedente. Se o tabelião exige do seu preposto a prática do ato, estará criando um mau precedente, pois se o tabelião pode, os demais também poderão. Assim, o amigo dos prepostos gozarão do mesmo procedimento e também os seus parentes. A deontologia notarial trata do tabelião honrado, sacro e não se mescla com o desprestígio e aviltamento das suas normas, mesmo morais[7].

O procedimento do tabelião que exige do preposto a prática de um ato essencialmente presencial que ele, preposto, não presenciou, fazendo com que incida (em tese) em comportamento ilícito é censurável e configura abuso de direito. Jamais poderá exigir dos seus prepostos um comportamento que sabe ser ilícito, valendo-se do seu poder hierárquico. Valer do seu poder hierárquico e exigir comportamentos ilícitos dos seus prepostos é instalar um “Estado de Terror” dentro do cartório. Lembremos que passamos a maior parte do dia no trabalho, de modo que temos um relacionamento às vezes maior com os funcionários do que com a própria família.

Isso cria uma insatisfação geral e propicia a difusão do mau precedente. Justificar o procedimento arbitrário baseado no brocardo “o que se concede graciosamente a um, não deve ser alegado por outros como exemplo” é uma fraude. Nunca consegui me acostumar com a outra fraude “para os amigos a lei; para os inimigos, as penas da lei”. Não consigo vislumbrar um direito dúbio[8], favorável a uns e desfavorável a outros, ainda mais se baseado em poder hierárquico. A norma é válida para todos, indistintamente.

O bom tabelião difunde bons exemplos e cria bons precedentes. Desse modo, deverá exigir a presença do seu parente em cartório para o reconhecimento da sua assinatura.

 
 


[1] “O que se concede graciosamente a um, não deve ser alegado por outros como exemplo”. GONZAGA, Maria Cristina de Brito. Frases de latim forense. Leme: LED, 1994. p. 213.

[2] Civilmente falando, conforme disciplina do Código Civil.

[3] Mesmo antes da edição do mencionado provimento eu já orientava acerca da possibilidade de se reconhecer firmas (assinaturas) de documentos assinados em momento anterior. O que me assombrava era a notícia de que o colega, por exemplo, colhia a assinatura no dia 30 jan. 2014 e praticava o ato de reconhecimento no dia 15 fev. 2014. Conforme me diziam os alunos de pós-graduação e colegas, isso acontecia – e talvez ainda aconteça com maior frequência do que se imagina – principalmente em documentos de transferência de veículo. O usuário, por não saber a data precisa da venda, assinava o documento em um dia e o cartório realizava o reconhecimento em outro (no da efetiva venda). O problema, a meu ver, é certificar que a assinatura foi lançada no dia 15 fev. 2014, o que é uma inverdade (Exemplo: “Reconheço autêntica a firma de Fulano de Tal. Dou fé. Cidade, 15 fev. 2014”). Mas nada obstava que se dissesse: “Reconheço autêntica a firma de Fulano de Tal, lançada em minha presença no dia 30 jan. 2014. Dou fé. Cidade, 15 fev. 2014.” Repetindo, o que é inadmissível é certificar que o fato se deu em tal dia, o que, em realidade, não ocorreu. Entendo ainda que essa prática equivocada é passível de sanção penal, fácil de se comprovar quando o autor da assinatura está hospitalizado, participando de audiência em outro estado, morto etc. Todavia, a minha orientação somente seria possível diante do silêncio normativo, recomendando aos colegas o cumprimento das normas/decisões das corregedorias de seus estados.

[4] OTHON SIDOU, J. M. Dicionário jurídico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 434.

[5] DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 1.197.

[6] Id. ibid.

[7] Não confundir regra moral com obrigações morais, estas juridicamente inexigíveis (embora possível a retenção do pagamento). A regra moral é exigível e seu descumprimento justifica aplicação de penalidades.

[8] Do mesmo modo que o sistema jurídico é uno. Se considerarmos um comportamento correto, o outro será automaticamente incorreto. O sistema jurídico não comporta contradições.

 

 

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    Caro Dr. Samuel, parabéns pelo texto. De fato, não cabe aplicar no direito (ou na vida quotidiana; pouco importa) o velho e temeroso costume de “dois pesos, duas medidas” – visto, por vezes, a exemplo, no âmbito penal, onde pseudo defensores dos direitos humanos defendem o marginal até que ele se volte contra alguém de sua proximidade; a partir daí, pena capital, para o mesmo indivíduo, é pouco. O tabelião, tanto quanto o juiz, o promotor de justiça e até mesmo o advogado, devem zelar pelos bons precedentes, pela correta aplicação das leis emanadas da esfera legiferante estatal. Interessante visão na nota 03. Acerca dela concordo, inclusive, no que toca ao cabimento de sanções penais.

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