Omnia mutantur (tudo muda)

No fragmento 1389a de sua Retórica, Aristóteles fala: “A maior parte dos jovens vive da esperança, porque a esperança concerne ao futuro, ao passo que a lembrança diz respeito ao passado; para a juventude, o futuro é longo e o passado curto; na verdade, no começo da vida nada há para recordar, tudo há a esperar”.

O mesmo autor, ao tratar do caráter do idoso, fala no fragmento 1390a: “Os velhos são mais impudicos do que pudicos; e porque não têm na mesma consideração o belo e o conveniente, não fazem grande caso da opinião pública. São pessimistas, em razão da sua experiência (já que a maior parte das coisas que acontecem são más: com efeito, a maior parte das vezes as coisas tendem para pior), mas também devido à sua covardia. Vivem de recordações mais do que de esperanças, pois o que lhes resta da vida é curto em comparação com o passado; ora, a esperança reside no futuro e a recordação assenta no passado. Esta é também uma das razões pelas quais são tão faladores, já que passam a vida a falar de coisas passadas e sentem prazer em recordar”.

Na Ars Poetica de Horacio, aponta-nos Renzo Tosi os versículos 174 e seguintes, dos quais se extrai esta qualificação do velho rabugento: “rabugento, queixoso, sempre louvando o tempo passado, quando ele era novo, castigando e censurando os jovens”.

O mesmo Renzo Tosi nos traz ainda As Suplicantes, de Eurípedes, que faz um relato dramático dos horrores da Guerra do Peloponeso, em que Etra, mãe de Teseu, “lembra que a divindade submete tudo a profundas transformações”.

Temos lido relatos de colegas indignados com as mudanças operadas pela legislação. O exemplo mais recente é a Medida Provisória 876, de 13 mar. 2019, que derroga a Lei Federal 8.934/94, afetando mais diretamente a atividade notarial o art. 63 deste diploma, que doravante dispensa a autenticação de documentos quando o servidor puder confrontar as cópias com os originais (§ 2º); e confere autenticidade às cópias que os advogados e contadores declararem, sob as penas da lei, que são autênticas (§ 3º), o que é uma verdadeira equiparação à fé pública.

Em tempo recente, editou-se a Lei Federal 13.726, de 08 out. 2018, que no seu art. 3º, I e II, dispensa a exigência de reconhecimento de firmas e autenticações nos documentos dirigidos à Administração Pública.

Quanto mais sofremos “ataques legislativos”, mais nos recorremos à exaltação de nossas virtudes, cuja argumentação derradeira sempre se apoia no manto sagrado da fé pública notarial, o que me entristece e inexoravelmente me remete ao Tu Tu, de Alf Ross. Tudo se resolve com o “tu tu”; tudo se resolve com a fé pública notarial. Só isso já faz merecer uma reflexão profunda.

Dá-se o meu desalento pela ausência de discussão crítica no âmbito de nossa atividade. Nunca ouvi alguém questionar sobre a necessidade de um reconhecimento de firma por semelhança. Afinal, para que serve? Qual a sua utilidade? Ele dá um plus na validade do negócio jurídico? Ou ele atua no plano da existência? A eficácia do negócio jurídico depende do reconhecimento de firma? Qual a responsabilidade do notário nesse ato notarial? Diante de uma resposta implícita para as questões anteriores, por que ainda fazemos reconhecimento de firma por semelhança?

A humanidade desenvolveu-se sob o olhar crítico, relevando mencionar aquela que foi a mais criticada teoria/doutrina de nossa história e que, no entanto, mostra cada dia mais a sua consistência e profundidade: o cristianismo. Foi refutado desde a sua formação e mantém-se firme. Algumas transformações ocorreram, mas continua firme.

Parece-me que o mesmo acontece com o notariado. Desde o seu nascimento passa por transformações. Os pesquisadores nos indicam uma atuação notarial desde os direitos cuneiformes (direito mesopotâmico e adjacências), cerca de 2.500 a 500 antes de Cristo. De lá para cá muita coisa mudou.

Fiel ao espírito crítico, eu encerro este texto pedindo aos colegas que lancem um novo olhar sobre a nossa atividade. Sejamos críticos de nós mesmos; identifiquemos os nossos problemas; estabeleçamos objetivos para o nosso futuro (afinal, aonde queremos chegar e até quando assim o queremos?); refutemos nossas hipóteses (inclusive a fé pública); testemos nossas teorias exaustivamente.

A sociedade quer mudanças e nós somos a sociedade. É contraproducente tentar barrar a lei do progresso, que é inflexível, inderrogável, não pede licença, atropela tudo. Ela não nos pede nada, não nos rouba nada, mas tão somente vai transformando coisas velhas em coisas novas, tornando-as mais agradáveis.

 

Samuel Luiz Araújo
Notário em Minas Gerais
Doutor em Direito (PUC-SP)

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EXIBINDO 2 COMENTÁRIOS

  1. José Antonio Ortega Ruiz disse:

    Sensacional. Como “gostamos de sermos velhos né Dr. Samuel?”. Rabugentos, reclamões, resmungões, impiedosos. Mas tudo isso tem solução. E o senhor a apresentou. Vamos à Luta.
    Forte abraço deste admirador
    José Antonio Ortega Ruiz – Santa Isabel do Ivai-PR.

  2. Brilhante reflexão. Ainda que seja dolorido, é preciso mesmo “botar o dedo na ferida”, refletindo e buscando cada vez maior qualificação.
    Parabéns ao articulista pelo brilhantismo e pertinência do texto.

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