Tabelião e Arlequim

 

Desce a avenida o Arlequim, fantasiado no Carnaval tupiniquim. Deixou o macacão xadrez dourado e vermelho em Veneza e segue cantando e dançando nas ruas em busca da Colombina.

Todo ano é assim na folia. Arlequim se diverte e esquece os problemas da vida, problemões melhor já lembrar.

É hora de esquecer seus dois senhores, fruto da feliz idéia de servir a dois para comer duas vezes com infelizes resultados, já que seu tempo é um só e as ordens dos patrões são sempre para ontem e, pior, algumas vezes contraditórias.

Tal escolha lhe reservara um triste destino, somente esquecido durante a folia.  É possível servir a dois senhores?

Sim!, pensara entusiasmado, imaginando os dois almoços por dia.

– Não, claro que não!, já gritava a sua mãezinha, já ida mas sempre lembrada por sábia e amorosa, muito mais de amor, pois nem estudara. Desde a infância, Arlequim ouvira a mãe citar trechos da bíblia e não é que havia um a ensinar que ninguém pode servir a dois senhores porque vai se devotar muito a um e esquecerá do outro senhor?

Lembrar da bíblia em plena avenida buscando a Colombina prometida? Não será melhor ingerir mais bebida e um pouco também dessas novas pílulas coloridas?

– Cruéis patrões, afastem-se de mim por ao menos quatro dias! Este período é feito para vestir e projetar as fantasias que moverão este trabalhador até a próxima folia!

– Valha-me São Mateus!, perdoa mãezinha. Fui logo eu, mero tabelião, decidir-me a servir a dois senhores. Trabalho em dobro e não vejo o precioso tempo de meus dois almoços. De gula e ganância fui ser, como o homem que no carnaval se veste de mulher, escravo da ambiguidade.

O Carnaval do Arlequim, de Joan Miro, 1924

Neste instante, a Colombina desce a ladeira, cercada por Pierrôs. A purpurina brilha-lhe o corpo lindo e a luz dela projeta estrelas. Arlequim se revigora.

– Vou deixar-te agora Estado-Pantaleão! Pouco me importam também os desejos do outro senhor, este cidadão, mais de mil palhaços metendo-se sempre a comprar e vender e a doar e a tantos ares e também verbos que terminam em eres e ires. Ora, quem vai me fazer feliz é Colombina!

Ela leva seu bloco rua abaixo, lançando olhares para o folião atormentado. Arlequim admira enquanto pode a sua imagem já de costas, gravando a dança sensual, apesar dos Pierrôs que lhe bloqueiam mais e mais a visão de seu destino.

Deixa-se cair sentado na calçada. Um dentre tantos foliões, a alegria sempre vencida pelo cansaço.

Mas não neste caso. Arlequim, largara o corpo desalentado, mas a mente, tomada de lucidez, deixa o balanço do samba e decide purificar sua vida antes da carne.

– Fico com um almoço e um senhor. É tudo de comida e trabalho. O resto é o amor de Colombina.

Há um problema, porém. Qual senhor escolher?

Rapidinho pensa nas pessoas que buscam seus esforços, nos dramas que lhes correm nas veias e como ele, Arlequim, os traduz em conselhos, escritos e até lágrimas sensíveis aos fatos.

Vê a lógica de prover-lhes as formas aos atos e a de manter-lhes a dignidade da intimidade e vida privada. O que interessa aos outros foliões, e também a Estado-Pantaleão, o que constrói cada uma destas pessoas que a mim vem pedir meus serviços? Devo-lhes a fidelidade de um servidor, não cumplicidade a um outro senhor, conclui.

As pessoas são seu senhor. Pelos meus serviços, dedicação e fidelidade, esta gente me pagará meus almoços seguidos de belas sobremesas, pensa Arlequim. Para elas, a utilidade de seus serviços decorre da lógica de prover-lhes a solução para os negócios que praticam. Ainda que muitos busquem sempre pagar-lhe o menor dos salários, a maioria sente a troca justa do ato autêntico pelo almoço que precisa.

Seu outro senhor é o Estado-Pantaleão. Este, trata-o como um cachorro sarnento, dando todos os mimos para outros servos e amigos. As escrituras, seu principal serviço, são feitas há muito tempo por bancários e agora até por qualquer um. A mesma fé que Estado-Pantaleão lhe dera, dá hoje a quem quiser.

Mas não é só. Estado-Pantaleão não lhe dá qualquer valor, despreza-o e exige que Arlequim conte, tintim por tintim, cada centavo do imposto ainda nem devido. Este senhor iníquo obriga que Arlequim exija tantos papéis e proíba de fazerem negócios entre si os que imagina dever-lhe dívidas. Qualquer erro ou falha, desconta-se lhe o salário.

Por tudo isso, os ganhos do folião alucinado só minguaram. E não é que mesmo assim, o Estado-Pantaleão decidiu cobrar do servidor pela Ingestão de Sal no Serviço cobrando tal quantia por um percentual fixo!

– Este ISS é a gota d´água, conclui Arlequim.

– Minha decisão está feita. Nasci para servir às pessoas. É delas que me vem o sal da vida, o anima da alma, a alegria do Carnaval. Das pessoas tiro o bem. A elas dedico o carinho de meu trabalho para deixá-las seguras.

– Ao Estado-Pantaleão, ao contrário, devo pouco, somente o que a lei me obriga. Por isso, nada mais devo querer com tal dessenhor.

Volta a sentir o carnaval e vê que o bloco de Colombina se aproxima de novo. Sentado, é gozado pelos sambantes Pierrôs, como ele apaixonados pela musa.

Ela olha-o e chama. Dá um salto e já dança. Fecha a janela do balanço de senhores. Já pode brincar o carnaval sem medo. Sabe que o pior servo é aquele que não quer ver.

Arlequim e Colombina, off-tropics

 

 

Últimos posts

EXIBINDO 0 COMENTÁRIOS

  1. Flávio disse:

    Caro Paulo: simplesmente emocionante. Melhor: encantador. Perspicácia aliada a emoção e poesia!
    Feliz Carnaval, Pierrô… que a Colombina, sim , só ela, além dos usuários, pode fazer valer à pena…

  2. Eduardo disse:

    Paulo, o notavel notário!
    Apesar de toda sua emoção ao descrever o dilema do Arlequim lembro que, o Estado – Pantaleão, só dá ao cidadão quatro dias de animação por ser ele o dono da razão…
    Parabéns, mais um belo texto!!
    PS: Este ano vou fantasiar de indignado!!..

  3. José Oliveira Costa disse:

    Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
    Desce mais … inda mais… não pode olhar humano
    Como o teu mergulhar no brigue voador!
    Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras!
    É canto funeral! … Que tétricas figuras! …
    Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
    Navio Negreiro – Castro Alves

    O que acabei de ler escrito por você, Paulo, me levou a lembrar
    nada mais nada menos que o veiculado acima. Nem sei porque?!
    Retratas, realmente, muito bem, a vida do Tab (ops!) Arlequim!

  4. lenira santos disse:

    Parabéns Dr. Paulo
    Lindo texto…..humor inteligentíssimo!!!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *