TANTO CÁ QUANTO LÁ – NOSSAS ORIGENS

Cluny é um apelido francês?

Sim. O meu bisavô paterno era engenheiro dos caminhos de ferro franceses e veio para Portugal trabalhar na mesma área. Casou primeiro em Espanha, onde deixou parte da família, e depois casou cá pela segunda vez e teve filhos. Um deles, o meu avô, fez variadíssimas coisas: teve empresas de metalurgia, depois cerâmica, etc.. Era muito bem-disposto e dado às artes, mas, apesar de ser essa a sua actividade, nunca teve muito jeito para os negócios. Chegou a produzir granadas para o exército português durante a Primeira Guerra Mundial e faliu. O meu pai nasceu em Alcântara (Lisboa), onde conviveu muito com os estrangeiros das embaixadas. Como o meu avô tinha dupla nacionalidade, sempre que havia problemas em Lisboa, punham a bandeira francesa no carro e iam refugiar-se na embaixada. Do lado materno, a minha avó era proprietária de várias quintas, sendo a mais importante a Amiosa (em Monção), e o meu avô era advogado e um homem de oposição republicana ao regime. Nunca conheci nenhum dos meus avós, apenas ouvi contar as suas histórias. Sei que esse meu avô era uma pessoa bastante liberal e despreocupada com o dinheiro. Quando morreu, a minha mãe e as irmãs herdaram um baú cheio de letras por protestar (ele emprestava dinheiro aos clientes e depois esquecia-se de cobrar).

Tinha, então, uma vida bastante desafogada?

Para a época, era relativamente desafogada. Ele morreu poucos anos depois de sair da prisão. O ‘crime’ dele foi ter participado numa daquelas múltiplas intentonas republicanas. Segundo conta a minha mãe, dessa vez foi uma acção que uniu republicanos e monárquicos e introduziu o Paiva Couceiro em Portugal. Quando saiu da prisão, ainda lhe ofereceram um lugar de notário em Viana do Castelo, se aderisse à União Nacional, mas ele não quis. Tinha perdido a clientela e vinha muito diminuído de saúde. Nunca lhe bateram na prisão, mas faziam coisas como irem buscar ferroviários a quem batiam para que ele confessasse. A ele nunca lhe bateram, penso que em parte porque uma prima da minha avó era casada com o Trigo de Negreiros, figura do Regime.

Como é que o seu pai, Pedro Cluny, se tornou juiz?

Ele costumava contar que sempre quis ser juiz, desde que se lembrava. Começou como delegado em Paredes de Coura – onde conheceu e começou a namorar a minha mãe –, depois foi para Tavira e a seguir foi assessor do então ministro da Justiça, o professor Cavaleiro Ferreira. Depois foi colocado como juiz de menores no Porto e nessa altura voltou a namorar com a minha mãe e casaram-se. Por isso nasci no Porto. Durante o meu primeiro ano de vida, vivemos numa residencial na Foz e depois alugámos uma casa na mesma zona, até aos meus seis anos. Sei hoje que era uma daquelas primeiras casas desenhadas pelo Fernando Távora, com vista panorâmica. O meu pai adorava o mar e quando havia tempestades fazia questão de me ir mostrar. Eu tinha medo, mas ele, em vez de me meter na cama, pegava em mim e ia-me mostrar a tempestade à janela. Isso marcou-me muito e levou-me também a procurar viver sempre junto ao mar (como hoje vivo, em Cascais). No Porto, ainda andei um ano no Colégio Alemão, até que o meu pai foi transferido para Lisboa e fomos viver para uma casa no Algueirão (Sintra). Aqui frequentei o externato S. José e ainda comecei o primeiro período na secção de Sintra do antigo Liceu Passos Manuel. Vivemos aí quatro anos e depois fomos para Faro.

Foi muito complicada essa vida de saltimbanco?

Não, comparativamente com outros filhos de magistrados, não tive uma vida muito saltitante. Quando vim para Lisboa, tinha era uma pronúncia acentuada do Norte que causava a risota geral dos meus primos… É que, no Porto, como o meu pai trabalhava no tribunal de menores, convivíamos muito com os miúdos da tutoria. Nesse externato do Algueirão, tive talvez daqueles primeiros contactos com a injustiça da vida: assisti à saída de um miúdo cujos pais não pagavam a mensalidade. A professora chorava, mas tinha que pôr o miúdo na rua porque já não pagavam há seis meses e ela vivia daquilo. Ainda por cima era bom aluno e meu colega. Foi uma coisa que me chocou muito e de certa forma orientou a minha maneira de estar na vida.

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