Títulos com estranha força de escritura pública

O notariado pátrio debruça-se, volta e meia, sobre o tormentoso problema das investidas dos instrumentos particulares detentores da tal "força de escritura pública", tais como os contratos bancários do Sistema Financeiro da Habitação – SFH (sucessor do antigo Banco Nacional da Habitação – BNH) e do crédito rural.

Precisamos esquadrinhar a legislação respectiva, a doutrina, os debates legislativos havidos em Brasília (há décadas), os projetos tendentes a revisar o sistema mencionado – enfim, investigar tudo acerca dos títulos com força de escritura pública  (financimento imobiliário, crédito rural, alienação fiduciária de bem imóvel, integralização ou ampliação de capital social com bem imóvel etc.), tendo em conta que parte do caudal normativo respectivo é anterior à CF de 88, que erigiu, definitivamente, o microssistema de notas e registros, a cargo de delegatários de relevante função pública, que a exercem em caráter privado (art. 236).

Nessa empreitada, necessário garimpar pareceres, ensaios e normas, tudo que há no âmbito da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança – Abecip, do Irib e da Anoreg, bem como em entidades estrangeiras, a respeito do tema. Entendo que a importância do notariado latino está a ensejar ampla revisão nesta seara, com urgência.

Já há vozes da Anoreg e do CNB estudando revisão de leis e decretos-leis que dão, estranhamente, em lesão ao microssistema constitucional do art. 236, "força de escritura pública" aos instrumentos entabulados no âmbito do SFH e do financiamento rural, em um movimento de retorno de tais instrumentos para as serventias extrajudiciais.
 
Por que Cartórios de Notas não podem lavrar os instrumentos, conduzidos por operadores do Direito (art. 3º da Lei dos Notários e dos Registradores)? Os emolumentos poderiam sofrer redução, nestes casos, e tal é mera sugestão inicial, em um cenário ainda fictício.

E mais ainda. Por que um grande banco precisa redigir as cláusulas de um instrumento particular, ao qual a lei concede força de escritura pública, quando negocia a compra e venda de bem imóvel com uma empreiteira? São duas empresas que têm setores jurídicos bem aquinhoados. Já o hipossuficiente adquirente, que compra o imóvel em prestações a perder de vista, precisaria do tabelião como ponto de apoio, vez que não tem recursos para contratar um advogado.

Creio que a Lei 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bem imóvel, iniciou uma perigosa sangria do instituto da escritura pública*, previsto desde as Ordenações Filipinas (conforme comentário que menciona mensagem de Felipe Leonardos Rodrigues, em ótimo post publicado por José Hildor Leal neste blog – leia aqui), rasgando dispositivos do Código Civil.

A kriptonita-instrumento-particular-com-força-de-escritura-pública (dizendo-o estranhamente, como o verbo liberal em Henry Maksoud) é-vem, por aí, senhores tabeliães e oficiais registradores. E apenas a união do NOTARIADO brasileiro poderá neutralizá-la.

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O tabelião e registrador carioca Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza participou do 18º Encontro Estadual de Notários e Registradores de Minas Gerais, realizado por Serjus-Anoreg/MG, de 20 a 22 de agosto de 2009, em Belo Horizonte, para discutir o tema dos títulos particulares no Registro de Imóveis. Em excelente trabalho, o colega Eduardo Pacheco questiona o duvidoso interesse do acesso do contrato particular ao Registro de Imóveis, uma vez que “os cidadãos não têm qualquer benefício com o instrumento particular, mais caro, menos técnico, parcial, sem a segurança da conservação, sem o amparo da fé pública, instrumento de evasão fiscal e lavagem de dinheiro, mais suscetível a demandas judiciais, enfim, desvantajoso em todos os sentidos com relação à escritura pública.”

Seguem trechos da brilhante preleção:

"Conclui-se, portanto, que na legislação brasileira o documento público é a regra e é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário mínimo vigente no País (art. 108).
 
Contudo, o documento particular vem sendo utilizado nas hipóteses em que a lei o admite, excepcionalmente, convivendo com o documento público.
 
O art. 108 admite a utilização do documento particular para transações de valor igual ou inferior a 30 salários mínimos, e outras exceções, aos estabelecer a regra do instrumento público ‘não dispondo a lei em contrário’.
 
O que ocorre é que as disposições especiais referentes aos documentos particulares se baseiam em razões diversas das que conduziram o legislador de 2.002 a exigir o documento público como regra. São outros o objeto, o espírito e fim das disposições especiais.
 
Para exemplificar podemos citar a legislação relativa aos parcelamentos do solo (Decreto-lei 58/37 e Lei 6.766), que exige o depósito de um memorial no Registro de Imóveis, do qual consta o contrato-tipo (Dec.-lei 58) ou o exemplar do contrato-padrão de promessa de venda (Lei 6.766), tendo esta enumerado no art. 26 indicações obrigatórias do contrato, visando a proteção do comprador. Qualquer pessoa pode examinar o processo de loteamento e os contratos depositados, livre de emolumentos (art. 24). O contrato-padrão rege as relações entre as partes quando o devedor não cumpre a obrigação (art. 27). Como se vê, há uma proteção à parte teoricamente mais fraca na relação, que se sujeita a um contrato-padrão que passou pela qualificação do registrador, consta de acervo público e que, como contrato de adesão que é, merece interpretação mais favorável ao aderente, nos termos da Lei 8.078 (Código do Consumidor) e dos arts. 423 e 424 do Código Civil.
 
Por seu turno, a Lei 4.380/64 está impregnada pelo interesse social, visando estimular a construção de habitações de interesse social e o financiamento de aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da população de menor renda (art. 1º). As entidades autorizadas a contratar nos termos da lei operam sob fiscalização do Poder Público e aplicam-se, assim como nos parcelamentos, as normas que protegem o consumidor nos contratos de adesão. Ressalte-se, contudo, que na hipótese, em muitos casos, não se tem atingidos os fins de economia de tempo e despesas para o adquirente (previstos no texto legal), em razão dos procedimentos adotados e dos valores cobrados pelas entidades do S.F.H.
 
Quanto à Lei 9.514/97, que tem por finalidade promover o financiamento imobiliário em geral, aplica-se o que foi dito sobre a Lei 4.380/64.
 
As exceções contempladas são, portanto e como afirmado, especialíssimas”.

Leia íntegra do artigo de Eduardo Pacheco aqui (clicar).

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Lembrando que podemos também, nesta caminhada rumo à proteção do notariado brasileiro, rever, futuramente, as tabelas de emolumentos, em itens como: 
 
a) possiblidadade de entabular escrituras de até trinta salários mínimos com emolumentos reduzidos, tal como ocorre em São Paulo;
 
b) modificação da Lei 11.977/2009 (Programa Minha Casa, Minha Vida) quanto ao procedimento da regularização fundiária de interesse social, alterando o prazo para registro da conversão da legitimação de posse em propriedade de cinco para dois anos, mas estabelecendo, a partir mesmo do registro da legitimação de posse na matrícula do imóvel, o requisito de escritura pública que conterá todo o trâmite do projeto, documentação e pareceres dos órgãos pertinentes, bem como os termos do auto de demarcação urbanística. Deste modo o notário auxiliára as Prefeituras na sadia condução do processo de regularização fundiária, valendo-se até mesmo de atas notariais, quando estas se fizerem necessárias. Tal escritura já valerá como título hábil a registro, no momento do advento da prescrição administrativa aquisitiva (usucapião administrativa).

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* NOTA:  "Los notarios hacen todo tipo de documentos públicos, entre los que destacan las escrituras públicas y las actas notariales, que no son documentos iguales.
 
Una escritura pública es un documento público notarial en el que se recogen los negocios jurídicos que han sido perfeccionados y suponen desplazamiento patrimonial entre los sujetos que intervienen (por ejemplo una compra-venta de vivienda, una hipoteca, la adjudicación de una herencia, etc.) es irrevocable y tiene tanta fuerza jurídica que sólo puede impugnarse por la vía judicial.
 
Por su parte, las actas notariales recogen meros hechos, o actos jurídicos que supongan negocios revocables que nunca se inscriben en un registro público. Por tanto, las escrituras públicas recogen negocios jurídicos irrevocables y muchas se inscriben en Registros públicos, mientras que las actas notariales se emplean para la constatación de hechos o de manifestaciones de los sujetos interesados.
 
Las dos formas de escritura pública que más abundantemente otorgan los Notarios en España son las de compra-venta de vivienda y la de constitución de hipoteca inmobiliaria sobre una vivienda, al objeto de garantizar el préstamo para financiar su compra, y ambas formas de escritura se inscriben en el Registro de la Propiedad." (Wikipedia; leia íntegra aqui.)

 

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  1. Andre Penedo disse:

    Muito bem-escrito o post. Por isso gosto de acompanhar este blogo do Colegio Notarial do Brasil. A classe precisa unir-se em torno de ideias boas como as contidas neste texto! Parabéns, Sr. Lafaiete Luiz!

  2. Andre Penedo disse:

    Sem querer desmerecer o trecho da palestra do colega Eduardo Pacheco, penso que o art. 26 da Lei 6766 contém orientação que interessa a um contexto de assentamentos de interesse social. Esta é a interpretação que se deve fazer do dispositivo.

  3. Marcelo Rodrigues disse:

    O art. 108 do Código Civil é um desatino. Ora, como é que instrumentos particulares podem dar alguma segurança juridica para pessoas humildes, quando adquirem imóveis? O cartório no Brasil concede a certeza da propriedade. Meu avô era notário e dizia que um dia os notários haveriam de se unir e criar uma grande força nacional, a fim de evitar o avanço de empresas como Serasa e outras como Cartório Postal. Espero que um dia a afirmação ganha ares de verdade concreta!

  4. Jose Barbosa Machado Figueira disse:

    Muito feliz a colocação do colega Pacheco. Tudo teve inicio no regime tacão , firmado pelos famigerados Atos Institucionais . Os tempos mudaram , as instituições financeiras devem se limitar a transação mercantil ; o Notarial dar a parte jurídica , legal ; sem contar que cobram valores altos por tais contratos , as vezes até maior que Escrituras públicas . Posso garantir , a evasão de Escrituras é para mais de 30% no interior de MG. Vamos cobrar de nossos orgãos de classe.

  5. Marcos Vieira disse:

    Sim, senhor! Os tempos mudaram. Estudo para o concurso de cartório e percebo que a extrema importância da atividade tabelioa. Precisamos de mais concursos!

  6. Carla disse:

    Ola, a classe dos oficiais e de tabeliões do Estado de Sp é muito fraca, não se junta e meu caro Marcos Vieira não precisamos de mais concursos não, eu trabalho em cartorio ha 8 anos e sei como esses concursados tem acabado tanto fisicamente como moralmente os cartorios nas cidades pequenas, nos precisamos nos juntar assim como a Anoreg vem fazendo nesses ultimos anos e levantar a voz, pois, ainda precisamos mudar muita coisa.

  7. Ricardo disse:

    O que vocês querem é dinheiro.
    Raros são os bancos que cobram pelo instrumento particular.
    Acatem a lei, é o mínimo que vocês tabeliães devem fazer.

  8. Marcos André disse:

    Meu pai já dizia: um dia a população perceberá que o sistema dos cartórios é o mais eficaz contra a corrupção. A Bahia, dizia ele, sempre demonstrou que tabelião do Estado não faz coisa boa. A segurança jurídica proporcionada pelos registros públicos não tem preço. E com os atuais concursos públicos é muito bom perceber como somos bem atendidos nestes novos cartórios! Os novos tabeliães conhecem o direito e se aplicam com esmero na prestação do serviço!

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