Uma armadilha da escrita

Quando tomei conhecimento do texto achei engraçado. Mas é fato que existe um lado trágico na história: trata-se de dinheiro público que poderia ser melhor aproveitado.

Adiante segue a transcrição do Projeto de Lei nº 4302/2016, de autoria do Deputado Vinicius Carvalho, em tramitação na Câmara dos Deputados (o inteiro teor do projeto apresentado pode ser acessado diretamente  do site da Câmara dos Deputados –

( http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2076754 )

A Justificativa de tal proposta legislativa:   Este projeto de lei tem o objetivo de impedir que seja reconhecido pelos cartórios no Brasil a chamada “União Poliafetiva” formada por mais de dois conviventes. Registros dessa natureza vem sendo feitos ao arrepio da legislação brasileira, embora algumas opiniões entendam que com a decisão do Supremo Tribunal Federal de reconhecer “outras formas de convivência familiar fundadas no afeto”. Entendemos que reconhecer a Poligamia no Brasil é um atentado que fere de morte a família tradicional em total contradição com a nossa cultura e valores sociais.

Seu inteiro teor:   Proíbe o reconhecimento da “União Poliafetiva” formada por mais de um convivente.

O Congresso Nacional decreta: Art. 1º Acrescente-se o seguinte parágrafo único ao Art. 1º da Lei nº 9278 de 1996 – (Lei da União Estável) 

Art. 1º………………………………………….. Parágrafo Único 

É vedado o reconhecimento de União Estável conhecida como “União Poliafetiva” formada por mais de um convivente  ……………………………..”(NR) 

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação

Concluído então que, se aprovado o texto sem alteração, a união estável somente poderá ocorrer com um convivente

Não mais será possível conceber união estável de um policasal, em que quatro ou mais pessoas convivam unidos por algum laço afetivo; tampouco será permitida a existência de um tri-casal, com três pessoas vivendo pacificamente um triangulo amoroso.

Mas igualmente vedada estará a convivência entre um casal. Em tal situação haveriam dois conviventes. Mais de um convivente e, portanto, situação igualmente vedada pela nova redação da lei.

Então, somente será permitida união estável com um único convivente, ou seja, eu comigo mesmo e mais ninguém. 

Isso lembra musica da década de 80 do século passado. O grupo musical Ultraje A Rigor, fez sucesso com um rock denominado Eu Me Amo  (faixa 9, do Álbum Nós Vamos Invadir Sua Praia de 1985). O refrão, colante como chiclete,  assim dizia:

Eu me amo, eu me amo. Não posso mais viver sem mim (1)

Evidente, entretanto, que a intenção do autor do projeto de lei não era esta. Certamente o nobre Deputado e sua eficente assessoria foram vítimas de uma das armadilhas da escrita (Ah! Todos nós que nos aventuramos nesta selva de letras, já caímos em alguma deste tipo. Quem nunca errou ao escrever um texto, que faça a primeira crítica!).

O raciocínio feito para a construção da frase não é todo absurdo. Provavelmente imaginou-se que para ser um convivente, na forma indicada pela lei – união pública, duradoura e contínua, com o objetivo de constituição de família – sempre seria necessária a existência de outro indivíduo em um processo de vida comum.

Entretanto, a redação apresentada, certamente dá margem para uma interpretação absurda como aquela acima referida (convivência de uma só pessoa).

Para a adequada compreensão pelo leitor, no texto a ser eventualmente convertido em lei, se não estiver indicado expressamente que a proibição se refere a mais de um casal de conviventes, o uso do plural seria obrigatório.

O texto seria compreensível se assim fosse construído:   É vedado o reconhecimento de União Estável …  formada por mais de um casal convivente.

Opção melhor, na medida em que a inteligência da lei se mostraria com toda sua clareza, seria:  É vedado o reconhecimento de União Estável …  formada por mais de dois conviventes.

Na realidade o autor do projeto, evidentemente um moralista conservador e aparentemente bem intencionado, não percebeu o risco que está correndo.  Embora o projeto não busque a modificação do caput do artigo, quase que certamente ele irá sofrer modificações quando de análise pelo Congresso Nacional e, dentre as modificações que serão propostas, muito provavelmente poderá surgir alguma de alteração daquele texto para, em uma atualização necessária (conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal), modificar a redação da cabeça daquele artigo. (2)

Uma nova redação da Lei, a ser objeto de discussão e aprovação formal, poderá então simplesmente modificar a expressão integrante daquele artigo, substituindo os termos “um homem e uma mulher”,  por “duas pessoas”.

Muito melhor ficaria o texto legal se assim fosse modificado. A redação simples e objetiva seria:   Art. 1º  É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de duas pessoas, estabelecida com objetivo de constituição de família.

Com tal redação, além de se adaptar à interpretação feita pelo STF sobre a correta aplicação de princípios constitucionais e agradar parcela significativa da sociedade (o segmento social conhecido pela sigla “GLBT” e seus simpatizantes), seria dispensável o acréscimo deste parágrafo único proposto e qualquer menção a possibilidade de eventual “união poliafetiva”.

Uma possível convivência entre tres ou mais pessoas não poderia, obviamente, pretender o reconhecimento dado pela lei para as uniões estáveis por ela regulada, na medida em que tal reconhecimento somente poderia ocorrer entre duas pessoas (e não entre tres, quatro ou mais pessoas).

Notas 

(1) A letra da canção, bem humorada e de fina ironia, bem retratando alguma faceta do inconsciente profundo do indivíduo (Freud explica! dirão alguns), contém o trecho a seguir:  Como foi bom eu ter aparecido /  Nessa minha vida já um tanto sofrida / Já não sabia mais o que fazer /   Prá eu gostar de mim, me aceitar assim  / Eu que queria tanto ter alguém / Agora eu sei sem mim eu não sou ninguém / Longe de mim nada mais faz sentido / Prá toda vida eu quero estar comigo …..    (fonte: http://www.vagalume.com.br/ultraje-a-rigor/eu-me-amo.html )

(2) No site do Congresso Nacional, na página de informações sobre a tramitação do referido Projeto de Lei, consta que em data de 24 de fevereiro de 2016, foi requerido o Apensamento deste Projeto a outro, de autoria do Deputado Jeam Wyllys. O teor do requerido é o seguinte: Requeiro a Vossa Excelência, nos termos do artigo 142 do Regimento Interno, a apensação do Projeto de Lei nº 4.302, de 2016, que “Proíbe o reconhecimento da ‘União Poliafetiva’ formada por mais de um convivente” com o Projeto de Lei nº 3.369, de 2015, que “Institui o Estatuto das Famílias do Século XXI”. O Projeto de Lei nº 4.302, de 2016 pretende proibir o reconhecimento de união poliafetiva por meio de alteração na Lei nº 9.278, de 1996, a “Lei da União Estável”. O Projeto de Lei nº 3.369, de 2015, por sua vez, pretende estabelecer o reconhecimento de todas as formas de união entre duas ou mais pessoas. 2 Portanto, não há dúvidas de que os projetos de lei acima mencionados tratam – ainda que haja posições antagônicas – de matéria correlata, qual seja, a união formada por mais de duas pessoas. Diante todo o exposto, requeiro seja revisto o despacho anteriormente exarado no Projeto de Lei nº 4.302, de 2016, determinando-se a apensação dessa proposição ao Projeto de Lei nº 3.369, de 2015.

 

 

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