Artigo – A importância de constar na escritura a cláusula da sub-rogação – Por Isabela Franco Maculan Assumpção e Letícia Franco Maculan Assumpção

sub-rogação real é uma questão muito relevante para o Direito das Famílias e para o Direito Imobiliário. Ocorre quando uma coisa se sub-roga em outra, tomando-lhe o lugar e passando a ser considerada com a mesma qualidade da coisa substituída[1]. Ilustremos a situação para melhor esclarecer: Joaquim, antes de se casar no regime de comunhão parcial de bens com Mariana, possuía um apartamento. Esse apartamento é bem particular de Joaquim e, portanto, não se comunica com o patrimônio da sua esposa. Se Joaquim vendesse esse apartamento particular, com o objetivo de adquirir outro apartamento, esse novo apartamento continua sendo bem particular de Joaquim ou passa a ser bem comum do casal, porque comprado após casamento?

A resposta é: depende. Depende de prova de que os recursos do primeiro apartamento foram utilizados para a compra do segundo apartamento. Depende também de ser provado que o novo apartamento foi comprado apenas com recursos provenientes do anterior, porque, na hipótese de haver necessidade de aporte de novos recursos, a parte paga com valores adquiridos pelo casal após o casamento se comunica com o patrimônio do cônjuge.

Silvio de Salvo Venosa[2] ensina que os bens que substituem os bens particulares, denominados pela lei bens sub-rogados, excluem-se da comunhão. E o doutrinador ressalta que, para que se aplique o dispositivo, é necessário que o cônjuge faça constar essa sub-rogação no título aquisitivo e prove que de fato um bem substitui outro.

Não há dúvida de que a sub-rogação pode acontecer e está expressamente prevista no art. 1.659, inciso II, do Código Civil[3]. Mas, não estando sobejamente demonstrada a existência da aquisição com recursos provenientes de bens particulares, a discussão pode se prorrogar no tempo. Se a situação fosse simples, não haveria acórdãos no Superior Tribunal de Justiça tratando do tema, como aquele cuja ementa abaixo se reproduz, proferido em um AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL[4]:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.  FAMÍLIA. DIVÓRCIO. UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. SUB-ROGRAÇÃO. CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. REEXAME. SÚMULA Nº 7/STJ. 1. Inviável, em sede de recurso especial, modificar o acórdão recorrido que concluiu ser o imóvel fruto da sub-rogação de bem particular, não se comunicando pelo casamento, tendo em vista que a análise do tema demandaria o reexame de provas, o que é vedado, nos termos da Súmula nº 7/STJ. (2.  Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 536244/DF – Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA – 3ª TURMA – Data do Julgamento 23/06/2015. DJe 03/08/2015)

A sub-rogação de bens imóveis deve estar claramente comprovada por documentos. Apenas alegar que um imóvel, adquirido após o casamento, foi pago com recursos decorrentes de venda de bem particular não é suficiente para que o cônjuge[5], casado no regime da comunhão parcial de bens, deixe de ter direito àquele imóvel. Para evitar o longo debate judicial, que se agrava quando há uma cadeia de alienações, bem como para evitar litígios quando de eventual divórcio, deve constar a cláusula da sub-rogação na escritura de compra e venda do novo imóvel, que tiver sido adquirido com recursos provenientes da venda de bem particular. Ainda tendo em vista a prevenção de conflitos, a escritura na qual consta a cláusula de sub-rogação deve ser assinada pelo cônjuge.

Christiano Cassetari, em entrevista ao IBDFAM, assim afirmou[6]:

Sendo o regime da comunhão parcial de bens, por exemplo, o art. 1658 do CC vai estabelecer a comunicação de todos os que foram adquiridos na constância do casamento, com exceção das hipóteses previstas no artigo 1659 do CC. Neste artigo, os incisos I e II excluem da comunhão os bens sub-rogados. Assim sendo, para que não seja necessária a prova documental quando do divórcio ou do inventário, deve a sub-rogação constar do título aquisitivo do novo bem. Por exemplo, sendo ele imóvel, deve ser colocada na escritura a cláusula de sub-rogação, que indique ter sido o novo bem adquirido com o dinheiro do antigo, que era incomunicável. Essa escritura de compra deve ser assinada pelo cônjuge, para atestar a veracidade dos fatos.

Mas os problemas que se referem à sub-rogação não se limitam a questionamentos feitos por ex-cônjuge. O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – CSM/SP, em julgamento de dúvida publicado no DJe de 07.08.2018 – SP, manteve a recusa do registro do título. No caso, tinha sido lavrada uma escritura de compra e venda em favor da mulher, casada pelo regime da comunhão parcial de bens, com declaração do marido de que se tratava de imóvel de propriedade reservada da esposa porque adquirido mediante sub-rogação de valores recebidos por ela, referentes a uma herança. Como a escritura pública de aquisição do imóvel foi lavrada em 13 de março de 2017 e a herança objeto de partilha tinha sido homologada em 25 de abril de 2002, o Conselho Superior da Magistratura entendeu que inexistia prova inequívoca de que o imóvel foi adquirido em sub-rogação de bem que era de propriedade exclusiva da compradora. O aspecto que levantou o questionamento para o CSM/SP foi que o marido tinha os bens declarados indisponíveis por ser administrador de entidade financeira em regime de liquidação. O CSM/SP manteve a recusa do registro do título, tendo determinado que deverão os interessados solicitar autorização do Juízo do inquérito civil, ou da ação de falência para que o registro seja feito:

CSM/SP: Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura de compra e venda outorgada em favor da cônjuge, casada pelo regime da comunhão parcial de bens, com declaração do marido de que se trata de imóvel de propriedade reservada da mulher porque adquirido mediante sub-rogação de valores recebidos por herança – Escritura pública lavrada em 13 de março de 2017 – Herança objeto de partilha homologada em 25 de abril de 2002 – Inexistência de prova inequívoca de que o imóvel foi adquirido em sub-rogação de bem que era de propriedade exclusiva da compradora – Marido que teve os bens declarados indisponíveis por ser administrador de entidade financeira em regime de liquidação – Necessidade de autorização pelo Juízo do inquérito civil público, ou da eventual ação de falência, para atos que possam implicar em disposição de bens – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos do(a) Apelação nº 1038270-77.2017.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são partes é apelante CELIA AUN GREGORIN, é apelado 4º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DE SÃO PAULO.

ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso. V. U. Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PEREIRA CALÇAS (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), ARTUR MARQUES (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), EVARISTO DOS SANTOS (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E FERNANDO TORRES GARCIA(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 21 de junho de 2018.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Apelação nº 1038270-77.2017.8.26.0100

VOTO Nº 37.485

Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura de compra e venda outorgada em favor da cônjuge, casada pelo regime da comunhão parcial de bens, com declaração do marido de que se trata de imóvel de propriedade reservada da mulher porque adquirido mediante sub-rogação de valores recebidos por herança – Escritura pública lavrada em 13 de março de 2017 – Herança objeto de partilha homologada em 25 de abril de 2002 – Inexistência de prova inequívoca de que o imóvel foi adquirido em sub-rogação de bem que era de propriedade exclusiva da compradora – Marido que teve os bens declarados indisponíveis por ser administrador de entidade financeira em regime de liquidação – Necessidade de autorização pelo Juízo do inquérito civil público, ou da eventual ação de falência, para atos que possam implicar em disposição de bens – Recurso não provido.

Trata-se de apelação interposta contra r. sentença que julgou procedente dúvida suscitada pela Sra. 4ª Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Paulo e manteve a negativa de registro, na matrícula nº 47.150, de escritura pública de compra e venda em que a apelante, casada pelo regime da comunhão parcial de bens, figurou como única adquirente do imóvel, contendo a escritura, declaração de seu cônjuge no sentido de que se cuida de bem reservado porque teve o preço integralmente pago com valores recebidos pela adquirente por herança de seu genitor.

A apelante alegou, em suma, que no regime da comunhão parcial de bens são excluídos os adquiridos por um dos cônjuges mediante sub-rogação a outros bens particulares (art. 1.659 do CC). Disse que adquiriu o imóvel com recursos oriundos da herança de seu genitor que teve os bens partilhados em ação judicial em que a partilha foi homologada em 22 de maio de 2002. Asseverou que os bens que recebeu na partilha ficaram gravados com cláusula de incomunicabilidade. Aduziu que a herança recebida de seu genitor teve valor de R$ 3.097.120,49 e que o imóvel que comprou tem valor inferior, de R$ 960.000,00. Afirmou que seus bens reservados não são atingidos pela indisponibilidade que incide sobre os de propriedade de seu cônjuge, pois constituem patrimônios distintos. Requereu a reforma da r. sentença para que seja promovido o registro da escritura de compra e venda (fls. 62/74).

A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 124/127).

É o relatório.

Foi apresentada para registro escritura de compra e venda em que constou que a apelante, casada pelo regime da comunhão parcial de bens, comprou o imóvel com exclusividade porque promoveu o pagamento do preço com dinheiro recebido por herança de seu genitor, fato ratificado mediante declaração de anuência manifestada por seu marido na escritura pública.

Ocorre que a escritura pública foi lavrada em 13 de março de 2017, às fls. 193 do Livro 4448 do 1º Tabelião de Notas de São Paulo (fls. 16/18), ao passo que a partilha dos bens deixados pelo falecimento do genitor da apelante foi homologada por r. sentença de 25 de abril de 2002 (fls. 32).

Embora na partilha a apelante tenha recebido imóvel (fls. 29/34) e bens que segundo alegou tiveram valor total de R$ 3.097.120,49, não há prova inequívoca de que o preço do imóvel objeto da compra e venda a que se refere a escritura pública apresentada para registro foi integralmente pago com recursos oriundos da herança de seu genitor.

Isso porque entre a homologação da partilha e a compra do imóvel decorreram quinze anos, período que não permite presumir a existência da sub-rogação que não foi corroborada, neste procedimento, por meio de provas no sentido de que o patrimônio reservado da apelante se conservou de forma suficiente para a compra agora realizada e de que foi utilizado com essa finalidade.

Por outro lado, a declaração do marido da apelante no sentido de que determinado imóvel não ingressa no regime de comunhão decorrente do casamento constitui ato de disposição patrimonial que em razão da indisponibilidade que incide sobre seus bens (fls. 27/28) somente pode ser praticado mediante autorização do Juízo competente que é o do inquérito civil, ou da ação de falência caso ajuizada.

Em razão disso, deverão os interessados solicitar autorização do Juízo do inquérito civil, ou da ação de falência, para que o cônjuge declare que o imóvel objeto da escritura de compra e venda teve o preço integralmente pago mediante sub-rogação de bens que a apelante recebeu por herança de seu genitor e, portanto, é de propriedade reservada.

Ante o exposto, nego provimento ao recurso e mantenho a recusa do registro do título.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

Em conclusão, a prova, nos casos de sub-rogação, é essencial. Tanto para evitar futuros conflitos com o ex-cônjuge quanto para evitar outros problemas, com credores, por exemplo. É medida muito recomendável que conste na escritura a cláusula da sub-rogação, bem como a demonstração da utilização dos recursos dos bens particulares para a aquisição de novo bem, sendo ideal que o cônjuge manifeste na escritura sua concordância com a declaração de que se trata de bem sub-rogado. Tal cautela está de acordo com os princípios que regem o notariado latino, pois proporciona segurança jurídica para o negócio e prevenção de conflitos.

 

* Isabela Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestre em Direito pela London School of Economics – LSE. É Oficial Substituta no Cartório de Registro Civil e de Notas do Distrito do Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Autora de diversos artigos na área do Direito Civil e Direito Notarial

 

** Letícia Franco Maculan Assumpção – Graduada em Direito pela UFMG, pós-graduada, mestre e doutoranda em Direito. Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Professora e co-coordenadora da Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral do CEDIN – Centro de Direito e Negócios. Diretora do INDIC – INSTITUTO NACIONAL DE DIREITO E CULTURA.

 

[1]  CASSETTARI, Christiano. Entrevista sobre a sub-rogação. Disponível em:  http://www.ibdfam.org.br/noticias/5254/Entrevista:++Christiano+Cassettari%20+fala+%20sobre+sub-roga%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 13 fev. 2020.

[2] VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010, p. 1522.

[3] CÓDIGO Civil. Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: […] II – os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares.

[4] Explicando melhor, o caso teve que ser apreciado pelo juiz de primeiro grau, pelo Tribunal de Justiça – TJ, em apelação; pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, em Recurso Especial; em seguida ainda pelo STJ, em Agravo; novamente pelo STJ em Agravo Regimental.

[5] O mesmo se aplica à união estável.

[6]  CASSETTARI, Christiano. Entrevista sobre a sub-rogação. Disponível em:  http://www.ibdfam.org.br/noticias/5254/Entrevista:++Christiano+Cassettari%20+fala+%20sobre+sub-roga%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 13 fev. 2020.

 

 

 

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