A Convenção de Haia no limite “das atribuições dos Cartórios”

A Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, celebrada em Haia, em 05 de outubro de 1961, está em vigor no Brasil desde agosto de 2016.

Também conhecida como Convenção da Apostila ou Convenção de Haia, tornou mais simples e ágil a tramitação de documentos públicos entre o Brasil e os mais de cem países signatários do acordo, trazendo significativos benefícios para cidadãos e empresas que necessitam tramitar internacionalmente documentos como diplomas, certidões de nascimento, casamento ou óbito.

Nos termos do artigo 6º da Convenção da Apostila, é necessário que cada Estado Signatário designe uma ou mais Autoridades Competentes para emitir as Apostilas.

No Brasil, a Convenção de Haia foi aprovada pelo Congresso Nacional  através do Decreto Legislativo 148, de 6 de julho de 2015, ratificada no plano internacional por meio do depósito do instrumento de adesão perante o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino dos Países Baixos, em 2 de dezembro de 2015, e promulgada no plano interno conforme Decreto 8.660, de 29 de janeiro de 2016, regulamentado pela Resolução nº 228/2016-CNJ, e finalmente aprimorada pelo Provimento 58/2016-CNJ.

Até a edição da Resolução nº 228/2016-CNJ não era possível delimitar com clareza os métodos de trabalhos perquiridos pelo CNJ para que a Convenção da Apostila fosse introduzida no cenário jurídico nacional, mas a proposta era supostamente simples: informar se o documento é público, autêntico e se teria validade jurídica no território onde foi emitido. E como o Brasil, Estado signatário, iria responder aos anseios da Convenção da Apostila?

Dando cumprimento ao texto do artigo 6º da Convenção da Apostila, a Resolução nº 228/2016-CNJ, também em seu artigo 6º, replicado pelo artigo 5º do Provimento nº 58/2016-CNJ estabeleceu que as Serventias Extrajudiciais são autoridades competentes para a aposição de apostila NO LIMITE DAS SUAS ATRIBUIÇÕES.

Pela redação do artigo tem-se que o apostilamento estaria adstrito às especialidades de cada serventia extrajudicial. Neste passo, um Registro de Imóveis, só poderia apostilar os documentos do seu ofício típico. Um Registro de Título de Documentos só poderia apostilar os documentos do seu ofício típico. De igual forma, o Protesto de Títulos, os Registros Civis das Pessoas Naturais, Serventias de Notas, também só poderiam apostilar os documentos dos seus respectivos ofícios típicos.

Após muita análise teórica e empírica, data máxima vênia, temos entendido que a frase no limite de suas atribuições foi introduzida no texto da resolução e do provimento de forma equivocada.

Na cultura brasileira, reforçada pela Lei nº 8.935/94, somente os Cartórios de Notas têm competência (fé pública) para aferir autenticidade de fatos e/ou documentos.

As disposições dos artigos não deixam margem a qualquer outra interpretação. Vejamos:

Art. 6º Aos notários compete:

I – formalizar juridicamente a vontade das partes;

II – intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo;

III – autenticar fatos.

 

Art. 7º Aos tabeliães de notas compete com exclusividade:

I – lavrar escrituras e procurações, públicas;

II – lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados;

III – lavrar atas notariais;

IV – reconhecer firmas;

V – autenticar cópias.

A afirmação supra não quer dizer que as outras serventias não atuam sob o manto da fé pública – sim, atuam. Entretanto, legalmente falando, só o “notas” teria condições de atestar a veracidade de algum documento, ainda que não seja de sua própria produção.

E vamos além. Toda serventia extrajudicial de alguma forma trabalha com documentos cuja autenticidade é verificada e confirmada para fins de realização de procedimentos distintos (lavratura, registro, averbação). Mas a formalização, exteriorização do reconhecimento de autoria e procedência, mormente é exercida pelo Notário por meio do procedimento típico do reconhecimento de firma ou sinal público.

Ainda que outras serventias possam validar e reconhecer a legalidade de documentos, inclusive os seus próprios, somente o “Tabelião de Notas” tem em seu card de prerrogativas a possibilidade de transformar aquilo que é abstrato (fé pública) em algo palpável (fé pública externada em um selo de reconhecimento de firma ou de autenticação).

O Provimento nº 58/2016-CNJ, editado em 09/12/2016, trouxe em seu bojo contornos mais específicos e nacionais (culturais) ao apostilamento – agora não a nível teórico lato senso, e sim a nível didático e prático direcionado ao modus operandi das Serventias Extrajudiciais. E corroborando com as disposições da Lei Federal nº 8.935/94, dito provimento trouxe em seu artigo 10, §§ 2º, 3º, 4º e 5º a figura típica do RECONHECIMENTO DE FIRMA. Ipsis litteris:

Art. 10. As autoridades competentes para a aposição de apostila deverão, por dever de ofício, prestar todos os esclarecimentos necessários antes do ato.

 

  • 2º Para a emissão da apostila, a autoridade competente deverá realizar a análise formal do documento apresentado, aferindo a autenticidade da assinatura aposta, do cargo ou função exercida pelo signatário e, quando cabível, a autenticidade do selo ou do carimbo aposto.

 

  • 3º Em caso de apostilamento de documento original, deve ser reconhecida, por semelhança, a assinatura do signatário ou o sinal público do notário caso o reconhecimento de firma já tenha sido realizado em cartório distinto daquele que irá apostilar o documento.

 

  • 4º No caso de apostilamento de cópia autenticada, a autoridade competente responsabiliza-se também pela autenticidade da assinatura aposta, do cargo ou função exercida pelo signatário e, quando cabível, pela autenticidade do selo ou do carimbo constantes do documento original.

 

  • 5º Em caso de apostilamento de cópia autenticada por autoridade apostilante, a autenticidade da assinatura, da função ou do cargo exercido a ser lançada na apostila é a do tabelião ou a do seu preposto que apôs a fé pública no documento, dispensado, nesse caso, o reconhecimento de firma do signatário do documento.

Com a edição do Provimento nº 58/2016-CNJ, o fato que exsurge é a interpretação de que o CNJ teria limitado/reservado o apostilamento aos Tabeliães de Notas (cartórios de notas). E nos parece bastante razoável, pois o Tabelionato de Notas, ainda que tenha essa única atribuição, na qualidade de autoridade apostilante, por meio da CENSEC (Reconhecimento de firma ou de Sinal público de outra Serventia) / MALOTE DIGITAL, uma vez aferida a autenticidade do documento exteriorizada pelo reconhecimento de firma ou sinal público do emitente, estaria apto a apostilar documentos advindos de qualquer Serviço Público.

Quando o CNJ trouxe o reconhecimento de firma como parte integrante do procedimento do apostilamento, penso que implicitamente pretendeu contemplar tão somente aqueles cartórios que têm em seu rol de atribuições as “notas”.  Chegamos a cogitar que dita construção tenha acontecido de forma involuntária. Isso porque somente o “notas” teria em seu rol a possibilidade jurídica de atestar a assinatura de alguém. Aliás, como vimos na redação do artigo 7º, IV da Lei Federal nº 8.935/94, o Tabelionato de Notas detém competência exclusiva para realização de reconhecimento de firma.

Logo, se só o Tabelião de Notas teria atribuição para verificar a assinatura do emitente do documento (regra do apostilamento), denota-se que as demais serventias extrajudiciais (RCPN, RI, RTD, PROTESTO) estariam genericamente arroladas na Resolução nº 228/2016-CNJ e Provimento nº 58/2016-CNJ por equívoco – é como pensamos.

A redação dos parágrafos do artigo 10 do Provimento nº 58/2016-CNJ, em regra, conduzem a uma percepção de que não é possível o apostilamento sem que antes as assinaturas sejam reconhecidas.

Excepcionalmente, o próprio provimento 58 possibilita a realização de apostilamento em “cópia autenticada por autoridade apostilante”. Porém, o ato preliminar para fins de apostilamento, preferencialmente, deve ser o de aferir a autenticidade da assinatura pelos meios supracitados, para certificar a origem do documento, promover segurança jurídica e consequentemente evitar burla ao sistema de controle interno.

Sem a verificação da autoria da assinatura, com aceitação tão somente da autenticação da cópia, o sistema ficaria muito fragilizado. Se admitirmos indiscriminadamente tal possibilidade qualquer documento estaria apto a ser apostilado, c. p. ex. cópia autenticada de uma certidão de casamento sem firma reconhecida; cópia autenticada de historio escolar sem reconhecimento de firma.

Nesta hipótese, numa interpretação expansiva e desaconselhável o reconhecimento de firma poderia ser dispensado.

Em nossa cultura, o método juridicamente reconhecido para atestar a veracidade da assinatura de uma pessoa ainda é a emissão de selo de reconhecimento de firma por tabelião de notas. Logo, se a previsão do CNJ é pelo reconhecimento de firma, tem-se que o apostilamento deve ser conduzido tão somente aos cartórios que tenham em seu rol de atribuições as “notas”.

Vale ressaltar que antes mesmo da vigência da Resolução nº 228/2016-CNJ o procedimento de legalização de documentos realizado pelo Ministério das Relações Exteriores, agora parcialmente superado pela Convenção de Haia[1], já trazia em seu repertório a exigência pelo reconhecimento de firmas das autoridades emitentes dos documentos.

Sob a égide da Resolução nº 228/2016-CNJ e Provimento nº 58/2016-CNJ, mesmo que o documento público apresentado para fins de apostilamento já contenha o reconhecimento de firma realizado por outra serventia, a Serventia que pretender realizar o apostilamento deverá realizar o reconhecimento do sinal público daquele que, antes, havia reconhecido a assinatura do emitente do documento, tal como dispõe o artigo 10, § 3º do Prov. nº 58/2016-CNJ.

De modo geral, mesmo que o documento não contenha assinatura física (formal), os métodos de verificação de sua autenticidade ainda serão aqueles empregados e disponíveis ao alcance da atribuição do Tabelionatos de Notas, quais sejam: (i) Cópia Autenticada (RG,CNH, PASSAPORT, CTPS – verificação dos elementos de segurança do documento); ou (ii) Autenticação de Cópia por meio de materialização (CNN – CERTIDÃO NEGATIVA DE NATURALIZAÇÃO, CERTIDÃO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS, CPF, CERTIDÕES FISICAIS ELETRÔNICAS).

Ou seja, os textos normativos caminham para que o apostilamento seja realizado com características e análises internas da Serventia de “Notas”. Pelo que se extrai do Provimento nº 58, ressalvado exceção, não há viabilidade o apostilamento de um documento se a assinatura nele aposta não tiver a chancela do Tabelião de Notas, ora pelo reconhecimento de firma, ora pelo reconhecimento do sinal público, ora por autenticação de cópia de documento público.

  • 5º Em caso de apostilamento de cópia autenticada por autoridade apostilante, a autenticidade da assinatura, da função ou do cargo exercido a ser lançada na apostila é a do tabelião ou a do seu preposto que apôs a fé pública no documento, dispensado, nesse caso, o reconhecimento de firma do signatário do documento.

Na prática, quem lida diretamente com o serviço extrajudicial conhece que o Notário realizada (ou deveria realizar) os procedimentos do “reconhecimento do sinal público” através de verificação das assinaturas previamente depositadas na CENSEC (Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados)[2]. É na CENSEC que encontram-se todas as assinaturas dos Notários e seus prepostos para fins de reconhecimento de                                     sinal público (ou deveriam ser encontradas).

Os RCPNs que cumulem as Notas mantêm os sinais públicos do titular e seus prepostos nesta central, o que permite ao Tabelião de Notas puro (sem RCPN), acessar os sinais públicos daqueles escreventes responsáveis pela emissão de documentos de ambas as atribuições. Neste sentido, ao apostilar um documento advindo do RCPN c. p. ex. certidão de casamento, o Tabelião de Notas agiria no limite de sua atribuição, pois acessaria a autoridade emitente (assinatura da autoridade emitente do documento) pelos meios ao norte indicado de forma juridicamente segura.

Se este entendimento não prosperar, restaria prejudicado o serviço em face do tabelionato de notas com atribuição única e consequentemente em face do usuário do serviço. Isto porque, evidentemente, a maior parte dos documentos a serem apostilados tem origem no registro civil (certidão de nascimento, casamento, etc) e não poderiam ser acessados pelo “notas” para fins do reconhecimento do sinal público.

Todavia, tal como está redigido, o Provimento nº 58/2016-CNJ causa desalinhamento com a estrutura dos cartórios e implementa considerável vantagem aos registros civis que cumularem o “notas”.

“Uma luz no fundo do túnel?” – Restaria aos tabelionatos de notas com atribuição única, o apostilamento das traduções? NÃO, o RCPN canalizaria estes documentos de maneira sutil ao fazer com que o usuário retorne a mesma serventia para apostilá-los.

Como se não bastasse, se o registro civil (puro) pode apostilar seus documentos típicos sem o reconhecimento de firma, quem optaria pelo cartório de notas?

Noutro giro, se o tabelião de notas que acessar a assinatura direta ou indiretamente da autoridade que emitiu o documento (reconhecimento de sinal público aposto por tabelião ou preposto de Serventia diversa) não puder apostilar documentos nos quais realizou o reconhecimento de firmas ou sinais públicos, qual seria o objetivo da convenção?

Entendemos que a interpretação mais acertada para “II) os titulares dos cartórios extrajudiciais, no limite de sua atribuição – art. 6º da Resolução 228-CNJ” seja a de que qualquer Delegatário Extrajudicial, que por meio legal e seguro (CENSEC/MALOTE DIGITAL), aferir a autenticidade da assinatura da autoridade emitente do documento apresentado para fins de apostilamento, comprovada por meio do reconhecimento de firma ou sinal público, seja considerado autoridade emitente independentemente da especialidade de sua atribuição.

Esta interpretação condiz com o espírito da Convenção que é “certificar a origem do documento” e do provimento 58 do CNJ que, através dos “reconhecimentos de firmas” da autoridade emitente e do signatário do documento, realiza o controle interno da atividade.

Quem ganha? A SOCIEDADE, pois terá a possibilidade de escolher o cartório mais próximo ou que ofereça atendimento acessível e adequado. Neste sentido, o tabelionato de notas com atribuição única que tenha capacidade para aferir a autenticidade do documento, atua no limite da sua atribuição, e promove a capilaridade do serviço público e seu devido aperfeiçoamento com a constante demanda pelo mesmo.

Interpretação equivocada – O que se deve evitar? A interpretação restrita do termo “no limite da sua atribuição” comparada à especialidade da atribuição, pois promoveria a canalização do serviço a “poucos Registros Civis”, contanto que: 1) o leque de documentos a serem apostilados advém deste serviço, c. p. ex. certidão de nascimento, certidão de casamento, certidão de óbito, etc. – canalização do serviço; 2) os documentos emitidos pelos Registros Civis apostilados e enviados para serem traduzidos, retornariam aos respectivos Registros Civis para serem apostilados. – canalização do serviço; 3) a localização concentrada dos descendentes de estrangeiros em determinados pontos do Estado, próximo às autoridades apostilantes. – canalização do serviço; 4) os Registros civis agregados a tabelionatos de notas, retiram dos tabelionados com atribuição única, a possibilidade de apostilar atos que emitem pelo fato dos usuários encontrarem em uma única Serventia, serviços concentrados. Esta realidade, comum em todo o país, retiraria o interesse dos tabeliães com atribuição única de realizar apostilamentos, pois a procura seria tão insignificante que deixariam de prestar o serviço devido ao trabalho e responsabilidade em face do Conselho Nacional de Justiça, Corregedoria de Justiça do Estado, Casa da Moeda do Brasil, Usuário da Serventia, Imagem do País, etc;

São nossas considerações.

Igor Emanuel da Silva Gomes, Advogado, Oggioni & Gomes Advogados Associados.

Márcio Henrique M. de Almeida, Tabelião, 2º Ofício de Notas de Vitória/ES.

Murilo de Avellar Detori, Escrevente Substituto, 2º Ofício de Notas de Vitória/ES.

Gabrielly Scalser Malini, Assessora Jurídica, 2º Ofício de Notas de Vitória/ES.

 

[1] Diz-se parcialmente, pois Legalização ainda é realizada pelo Ministério das Relações Exteriores, porém, direcionados àqueles Estados ainda não signatários da Convenção da Apostila.

[2] Infelizmente, é muito comum cartório de notas que sequer conhecem a CENSEC e sua obrigatoriedade. Para estes, recomenda-se a leitura e observância do Provimento nº 12/2012-CNJ.

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