Por Débora Fayad Misquiati
O artigo 504 do Código Civil brasileiro prevê:
Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência. (grifo nosso)
Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendida os comproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.
O tema não nos é novo, em outra oportunidade já tecemos nossa singela opinião sobre a venda de coisa comum indivisível[1] e defendemos o posicionamento de que se o imóvel estiver em estado de indivisão porém passível de divisão, dentro dos contornos legais, o artigo 504 do Código Civil não seria aplicável, uma vez que não estaríamos diante de “coisa indivisível”.
Contudo, recentemente a 4ª Turma do STJ, no Recurso Especial 1.207.129 – MG, do relator – Ministro Luis Felipe Salomão – em análise ao artigo 504 do Código Civil de 2002, entendeu por manter o precedente da Segunda Seção do STJ exarado sob a égide do Código Civil de 1916, no sentido de que o condômino que desejar alhear a fração ideal de bem em estado de indivisão, seja ele divisível ou não, deverá dar preferência ao outro condômino.[2]
Um dos fundamentos para a decisão foi a função social, que “recomenda ser mais cômodo manter a propriedade entre os titulares originários, evitando desentendimento com a entrada de um estranho no grupo”.
Destacou-se, ainda, a necessidade de levarmos em conta o sistema jurídico como um todo, em especial a análise do artigo 504 em consonância com o parágrafo único do artigo 1.314 do Código Civil vigente.
Diante dos inúmeros contornos do que se entende por função social e seus diversos campos de atuação, questionamo-nos a que função social a decisão nos remete? Seria a função social da justiça, como pacificadora social?
Dessa feita, “tal entendimento se justifica pelo fato de que, estando o imóvel em estado de indivisão, mesmo sendo de natureza divisível, é prudente que o direito previna futuros litígios decorrentes do ingresso de terceiro estranho ao condomínio, preferindo a aquisição àquele que ostenta a condição de condômino”[3].
Ademais, o artigo 504 do Código Civil visa “velar pelo direito do condômino de não ter como lindeiro pessoa estranha”[4] ou permitir, através do direito de preferência do outro condômino, que com a venda de partes ideais, o condomínio sobre a coisa indivisível seja terminado ou reduzido?
Não podemos nos esquecer, que o uso de frações ideais com áreas certas e determinadas para cada condômino – o conhecido condomínio pro diviso – em que pese não ser regulado pelo direito, é uma realidade.
Nesses casos, existe uma “extinção fática do condomínio comum, mas que ainda não ocorreu de direito no plano jurídico”[5].
A decisão da 4ª Turma do STJ, seria fiel aos fins do ordenamento naqueles casos em que os condôminos exercem de forma simultânea seus direitos e deveres sobre um bem, sem localização certa das frações ideais.
Parece-nos que, nesta situação, a boa-fé e a eticidade requerem que o condômino interessado em vender sua parte ideal a ofereça ao outro condômino, ainda que não exista previsão legal nesse sentido.
O que, por fim, estimularia a extinção do condomínio e evitaria os litígios tão comuns nesses casos.
Sabemos, que ninguém está obrigado a ficar em condomínio, e quem assim permanecer poderá fazer uso de ação de divisão ou de escritura pública de divisão amigável (artigo 1320 do Código Civil).
Dessa forma, não estaríamos andando na contramão do desenvolvimento econômico, se tivermos que pensar em uma prévia divisão do imóvel para concretização de uma venda sem que se cogite da aplicação do artigo 504 do Código Civil, diante de imóveis indivisos, porém passíveis de divisão?
A indagação acima nos direciona para a função social do contrato de venda de coisa indivisa porém passível de divisão.
Pois bem, é fato que deve haver uma harmonização entre a autonomia da vontade (liberdade contratual) e a função social do contrato (limites a liberdade de contratar).
Tem-se, ainda, que uma das vertentes da função social do contrato encontra-se nos efeitos externos da contratação, isto é, “daqueles que podem repercutir na esfera de terceiros.”[6]
Salomão Filho leciona que “não basta o simples envolvimento da esfera de terceiro para definir ou delimitar a função social. A constatação da verdadeira função social envolve a presença de interesses difusos, de par com os interesses individuais manejados pelos contratantes. Conjugam-se, assim, em razão do contrato, o interesse institucional e o interesse individual, não pelo número de pessoas envolvidas, mas em razão do objeto. São as garantias institucionais em jogo que, estando presentes, delineiam a função social atribuída ao contrato.”[7]
Assim, nos atendo a função primária e natural do contrato, que é proporcionar com agilidade a circulação de riquezas de forma eficiente e com segurança jurídica, surgem os seguintes questionamentos:
Como melhor se concretiza a função social do contrato?
Com o respeito a autonomia da vontade, exercida dentro do limites legais? Ou mediante a insegurança gerada por decisões que relativizam a autonomia, em uma interpretação da função social limitada ao caso concreto?
Nas lições de Humberto Theodoro Júnior, “sendo o contrato um instituto antes de tudo econômico, a limitação de seu emprego a uma função social não pode ser feita de maneira a inutilizar ou reduzir o papel que cumpre desempenhar no mercado. A análise da função social, in casu, só será legítima se procedida de maneira interdisciplinar, nunca de forma puramente jurídica, sob pena de, a pretexto de tutelar interesses de partes supostamente frágeis, chegar-se a resultados coletivos muito mais nocivos e intensos, no âmbito econômico, do que os benefícios individualmente proporcionais a quem se endereçou, de forma inadequada, a apelidada tutela social do contrato.”[8]
Já, no que tange a análise do artigo 504 em consonância com o parágrafo único do artigo 1.314 do Código Civil vigente, outro dos fundamentos insertos na decisão do STJ supracitada, temos primeiramente que destacar o “caput” do artigo 1.314 do Código Civil:
Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la.
Referido artigo disciplina como direito de todo condômino “alhear a respectiva parte indivisa ou gravá-la", não se cogitando de eventual necessidade de consentimento dos demais.
O artigo 504 do mesmo Código, por sua vez, prescreve o direito de preferência na venda no caso de bem imóvel indivisível.
Sobre o tema, Hamid Charaf Bdine Jr. ensina que “qualquer condômino pode alienar a sua parte ideal da propriedade, tendo em vista a sua condição de exclusiva titularidade de uma fração ideal da coisa, que lhe permite agir soberanamente. Mesmo nos bens indivisíveis, essa faculdade de disposição é preservada, eis que a propriedade sobre uma parte abstrata concede ao titular o poder de exercer todas as prerrogativas compatíveis com a indivisão, apenas com a inerente limitação quanto à posse, uso e gozo da coisa (art. 1.314, parágrafo único, do CC).”[9]
Observemos agora o parágrafo único do artigo 1.314 do Código Civil que cuida dos direitos e deveres dos condôminos:
Parágrafo único. Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros.
Em uma leitura do parágrafo único consoante com o seu “caput”, que expressamente prevê o direito alhear, isto é, passar para outrem o domínio ou o direito de ceder, alienar, parece-nos que aquele exige o consentimento dos demais condôminos no caso, por exemplo, de desmembramento da posse, em que o atual condômino permanecerá com a posse indireta, transferindo a outrem a posse direta.
Dessa forma, quando o condômino exerce o direito previsto no “caput” do artigo 1314 do Código Civil de alienar sua parte ideal, o novo proprietário, que ingressa no condomínio, deverá respeitar o parágrafo único do referido artigo.
O Código Civil de 1916 cuidava do atual parágrafo único do 1.314, no “caput” do artigo 633.
Art. 633. Nenhum condômino pode, sem prévio consenso dos outros, dar posse, uso, ou gozo da propriedade a estranhos.
Onde está previsto no artigo 633 do Código Civil de 1916 ou, ainda, no parágrafo único do 1.314 do Código Civil de 2002 a necessidade de consenso dos demais condôminos para que o proprietário de parte ideal utilize-se da faculdade de dispor da coisa?
Os referidos diplomas foram omissos em relação a esta faculdade?
O Código Civil de 1916 tratou do assunto no artigo 623, inciso III, assim como o Código Civil de 2002 o fez no “caput” do artigo 1.314. Em ambos os casos não se cogita de restrição ao complexo direito de propriedade, isto é, prevê a possibilidade do condômino alienar sua fração ideal sem necessidade de aquiescência dos demais. Vejamos a previsão no Código Civil de 1916:
Art. 623. Na propriedade em comum, com propriedade, ou condomínio, cada condômino ou consorte pode:
III. Alhear a respectiva parte indivisa, ou gravá-la.
É verdade que confirmando a sentença, o acórdão que acarretou o recurso especial acima citado, entendeu que não haveria direito de preferência na venda de parte ideal de bem imóvel indiviso, porém passível de divisão.
Contudo, referida sentença e acórdão foram cassados, diante do posicionamento da 4ª Turma do STJ que estabeleceu como possível a preferência dos condôminos de bem imóvel em estado de indivisão, seja ele divisível ou não.
Marcelo Figueiredo observa que “não existe pureza ou neutralidade no conhecimento ou na aplicação do fenômeno jurídico. Por isso é natural que, quase sempre, estudiosos e juízes, quando apegados ao velho, interpretem o novo com os olhos amparados por visões que possuíam do antigo. Como também é natural que, de hábito, a manutenção do velho seja interpretada como uma grande transformação por aqueles que, desejosos da mudança, se forçam a ver realidade substantivamente idêntica com olhos voltados para o futuro”.[10]
O presente estudo tem por fim apenas realçar a polêmica sobre o artigo 504 do Código Civil vigente, em continuidade a primeira análise sobre o tema, publicada em vinte e seis de junho de dois mil quinze e acima citada.
Ao que nos parece, impõe ao notário uma análise criteriosa de cada caso concreto até ele levado, em exercício de sua magistratura cautelar, orientando as partes sobre as consequências do ato que pretendem firmar.
REFERÊNCIAS
CÓDIGO CIVIL COMENTADO: doutrina e jurisprudência – Lei nº 10.406, de 10.01.2002 – contém o Código Civil de 1916. Cezar Peluzo (coord.). 6ª ed. Barueri: Manole, 2012.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
REGISTRO DE IMÓVEIS III: procedimentos especiais. Christiano Cassettari (coord.). São Paulo: Saraiva, 2013.
REVISTA DE DIREITO NOTARIAL, Ano 2 – n.° 2. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
Art. 504. Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência. (grifo nosso)
Parágrafo único. Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendida os comproprietários, que a quiserem, depositando previamente o preço.
O tema não nos é novo, em outra oportunidade já tecemos nossa singela opinião sobre a venda de coisa comum indivisível[1] e defendemos o posicionamento de que se o imóvel estiver em estado de indivisão porém passível de divisão, dentro dos contornos legais, o artigo 504 do Código Civil não seria aplicável, uma vez que não estaríamos diante de “coisa indivisível”.
Contudo, recentemente a 4ª Turma do STJ, no Recurso Especial 1.207.129 – MG, do relator – Ministro Luis Felipe Salomão – em análise ao artigo 504 do Código Civil de 2002, entendeu por manter o precedente da Segunda Seção do STJ exarado sob a égide do Código Civil de 1916, no sentido de que o condômino que desejar alhear a fração ideal de bem em estado de indivisão, seja ele divisível ou não, deverá dar preferência ao outro condômino.[2]
Um dos fundamentos para a decisão foi a função social, que “recomenda ser mais cômodo manter a propriedade entre os titulares originários, evitando desentendimento com a entrada de um estranho no grupo”.
Destacou-se, ainda, a necessidade de levarmos em conta o sistema jurídico como um todo, em especial a análise do artigo 504 em consonância com o parágrafo único do artigo 1.314 do Código Civil vigente.
Diante dos inúmeros contornos do que se entende por função social e seus diversos campos de atuação, questionamo-nos a que função social a decisão nos remete? Seria a função social da justiça, como pacificadora social?
Dessa feita, “tal entendimento se justifica pelo fato de que, estando o imóvel em estado de indivisão, mesmo sendo de natureza divisível, é prudente que o direito previna futuros litígios decorrentes do ingresso de terceiro estranho ao condomínio, preferindo a aquisição àquele que ostenta a condição de condômino”[3].
Ademais, o artigo 504 do Código Civil visa “velar pelo direito do condômino de não ter como lindeiro pessoa estranha”[4] ou permitir, através do direito de preferência do outro condômino, que com a venda de partes ideais, o condomínio sobre a coisa indivisível seja terminado ou reduzido?
Não podemos nos esquecer, que o uso de frações ideais com áreas certas e determinadas para cada condômino – o conhecido condomínio pro diviso – em que pese não ser regulado pelo direito, é uma realidade.
Nesses casos, existe uma “extinção fática do condomínio comum, mas que ainda não ocorreu de direito no plano jurídico”[5].
A decisão da 4ª Turma do STJ, seria fiel aos fins do ordenamento naqueles casos em que os condôminos exercem de forma simultânea seus direitos e deveres sobre um bem, sem localização certa das frações ideais.
Parece-nos que, nesta situação, a boa-fé e a eticidade requerem que o condômino interessado em vender sua parte ideal a ofereça ao outro condômino, ainda que não exista previsão legal nesse sentido.
O que, por fim, estimularia a extinção do condomínio e evitaria os litígios tão comuns nesses casos.
Sabemos, que ninguém está obrigado a ficar em condomínio, e quem assim permanecer poderá fazer uso de ação de divisão ou de escritura pública de divisão amigável (artigo 1320 do Código Civil).
Dessa forma, não estaríamos andando na contramão do desenvolvimento econômico, se tivermos que pensar em uma prévia divisão do imóvel para concretização de uma venda sem que se cogite da aplicação do artigo 504 do Código Civil, diante de imóveis indivisos, porém passíveis de divisão?
A indagação acima nos direciona para a função social do contrato de venda de coisa indivisa porém passível de divisão.
Pois bem, é fato que deve haver uma harmonização entre a autonomia da vontade (liberdade contratual) e a função social do contrato (limites a liberdade de contratar).
Tem-se, ainda, que uma das vertentes da função social do contrato encontra-se nos efeitos externos da contratação, isto é, “daqueles que podem repercutir na esfera de terceiros.”[6]
Salomão Filho leciona que “não basta o simples envolvimento da esfera de terceiro para definir ou delimitar a função social. A constatação da verdadeira função social envolve a presença de interesses difusos, de par com os interesses individuais manejados pelos contratantes. Conjugam-se, assim, em razão do contrato, o interesse institucional e o interesse individual, não pelo número de pessoas envolvidas, mas em razão do objeto. São as garantias institucionais em jogo que, estando presentes, delineiam a função social atribuída ao contrato.”[7]
Assim, nos atendo a função primária e natural do contrato, que é proporcionar com agilidade a circulação de riquezas de forma eficiente e com segurança jurídica, surgem os seguintes questionamentos:
Como melhor se concretiza a função social do contrato?
Com o respeito a autonomia da vontade, exercida dentro do limites legais? Ou mediante a insegurança gerada por decisões que relativizam a autonomia, em uma interpretação da função social limitada ao caso concreto?
Nas lições de Humberto Theodoro Júnior, “sendo o contrato um instituto antes de tudo econômico, a limitação de seu emprego a uma função social não pode ser feita de maneira a inutilizar ou reduzir o papel que cumpre desempenhar no mercado. A análise da função social, in casu, só será legítima se procedida de maneira interdisciplinar, nunca de forma puramente jurídica, sob pena de, a pretexto de tutelar interesses de partes supostamente frágeis, chegar-se a resultados coletivos muito mais nocivos e intensos, no âmbito econômico, do que os benefícios individualmente proporcionais a quem se endereçou, de forma inadequada, a apelidada tutela social do contrato.”[8]
Já, no que tange a análise do artigo 504 em consonância com o parágrafo único do artigo 1.314 do Código Civil vigente, outro dos fundamentos insertos na decisão do STJ supracitada, temos primeiramente que destacar o “caput” do artigo 1.314 do Código Civil:
Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la.
Referido artigo disciplina como direito de todo condômino “alhear a respectiva parte indivisa ou gravá-la", não se cogitando de eventual necessidade de consentimento dos demais.
O artigo 504 do mesmo Código, por sua vez, prescreve o direito de preferência na venda no caso de bem imóvel indivisível.
Sobre o tema, Hamid Charaf Bdine Jr. ensina que “qualquer condômino pode alienar a sua parte ideal da propriedade, tendo em vista a sua condição de exclusiva titularidade de uma fração ideal da coisa, que lhe permite agir soberanamente. Mesmo nos bens indivisíveis, essa faculdade de disposição é preservada, eis que a propriedade sobre uma parte abstrata concede ao titular o poder de exercer todas as prerrogativas compatíveis com a indivisão, apenas com a inerente limitação quanto à posse, uso e gozo da coisa (art. 1.314, parágrafo único, do CC).”[9]
Observemos agora o parágrafo único do artigo 1.314 do Código Civil que cuida dos direitos e deveres dos condôminos:
Parágrafo único. Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros.
Em uma leitura do parágrafo único consoante com o seu “caput”, que expressamente prevê o direito alhear, isto é, passar para outrem o domínio ou o direito de ceder, alienar, parece-nos que aquele exige o consentimento dos demais condôminos no caso, por exemplo, de desmembramento da posse, em que o atual condômino permanecerá com a posse indireta, transferindo a outrem a posse direta.
Dessa forma, quando o condômino exerce o direito previsto no “caput” do artigo 1314 do Código Civil de alienar sua parte ideal, o novo proprietário, que ingressa no condomínio, deverá respeitar o parágrafo único do referido artigo.
O Código Civil de 1916 cuidava do atual parágrafo único do 1.314, no “caput” do artigo 633.
Art. 633. Nenhum condômino pode, sem prévio consenso dos outros, dar posse, uso, ou gozo da propriedade a estranhos.
Onde está previsto no artigo 633 do Código Civil de 1916 ou, ainda, no parágrafo único do 1.314 do Código Civil de 2002 a necessidade de consenso dos demais condôminos para que o proprietário de parte ideal utilize-se da faculdade de dispor da coisa?
Os referidos diplomas foram omissos em relação a esta faculdade?
O Código Civil de 1916 tratou do assunto no artigo 623, inciso III, assim como o Código Civil de 2002 o fez no “caput” do artigo 1.314. Em ambos os casos não se cogita de restrição ao complexo direito de propriedade, isto é, prevê a possibilidade do condômino alienar sua fração ideal sem necessidade de aquiescência dos demais. Vejamos a previsão no Código Civil de 1916:
Art. 623. Na propriedade em comum, com propriedade, ou condomínio, cada condômino ou consorte pode:
III. Alhear a respectiva parte indivisa, ou gravá-la.
É verdade que confirmando a sentença, o acórdão que acarretou o recurso especial acima citado, entendeu que não haveria direito de preferência na venda de parte ideal de bem imóvel indiviso, porém passível de divisão.
Contudo, referida sentença e acórdão foram cassados, diante do posicionamento da 4ª Turma do STJ que estabeleceu como possível a preferência dos condôminos de bem imóvel em estado de indivisão, seja ele divisível ou não.
Marcelo Figueiredo observa que “não existe pureza ou neutralidade no conhecimento ou na aplicação do fenômeno jurídico. Por isso é natural que, quase sempre, estudiosos e juízes, quando apegados ao velho, interpretem o novo com os olhos amparados por visões que possuíam do antigo. Como também é natural que, de hábito, a manutenção do velho seja interpretada como uma grande transformação por aqueles que, desejosos da mudança, se forçam a ver realidade substantivamente idêntica com olhos voltados para o futuro”.[10]
O presente estudo tem por fim apenas realçar a polêmica sobre o artigo 504 do Código Civil vigente, em continuidade a primeira análise sobre o tema, publicada em vinte e seis de junho de dois mil quinze e acima citada.
Ao que nos parece, impõe ao notário uma análise criteriosa de cada caso concreto até ele levado, em exercício de sua magistratura cautelar, orientando as partes sobre as consequências do ato que pretendem firmar.
REFERÊNCIAS
CÓDIGO CIVIL COMENTADO: doutrina e jurisprudência – Lei nº 10.406, de 10.01.2002 – contém o Código Civil de 1916. Cezar Peluzo (coord.). 6ª ed. Barueri: Manole, 2012.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
REGISTRO DE IMÓVEIS III: procedimentos especiais. Christiano Cassettari (coord.). São Paulo: Saraiva, 2013.
REVISTA DE DIREITO NOTARIAL, Ano 2 – n.° 2. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
[1]Disponível em: <https://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw%3D%3D&in=N TkwNQ%3D%3D>. Acesso em: 24 de setembro 2015.
[2]Ementa. DIREITO CIVIL. CONDOMÍNIO. ART. 504 DO CÓDIGO CIVIL. DIREITO DE PREFERÊNCIA DOS DEMAIS CONDÔMINOS NA VENDA DE COISA INDIVISÍVEL. IMÓVEL EM ESTADO DE INDIVISÃO, MAS PASSÍVEL DE DIVISÃO. MANUTENÇÃO DO ENTENDIMENTO EXARADO PELA SEGUNDA SEÇÃO TOMADO À LUZ DO ART. 1.139 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. 1. O condômino que desejar alhear a fração ideal de bem em estado de indivisão, seja ele divisível ou indivisível, deverá dar preferência ao comunheiro da sua aquisição. Interpretação do art. 504 do CC/2002 em consonância com o precedente da Segunda Seção do STJ (REsp n. 489.860/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi), exarado ainda sob a égide do CC/1916. 2. De fato, a comparação do art. 504 do CC/2002 com o antigo art. 1.139 do CC/1916 permite esclarecer que a única alteração substancial foi a relativa ao prazo decadencial, que – de seis meses – passou a ser de cento e oitenta dias e, como sabido, a contagem em meses e em dias ocorre de forma diversa; sendo que o STJ, como Corte responsável pela uniformização da interpretação da lei federal, um vez definida tese sobre determinada matéria, deve prestigiá-la, mantendo sua coesão. 3. Ademais, ao conceder o direito de preferência aos demais condôminos, pretendeu o legislador conciliar os objetivos particulares do vendedor com o intuito da comunidade de coproprietários. Certamente, a função social recomenda ser mais cômodo manter a propriedade entre os titulares originários, evitando desentendimento com a entrada de um estranho no grupo. 4. Deve-se levar em conta, ainda, o sistema jurídico como um todo, notadamente o parágrafo único do art. 1.314 do CC/2002, que veda ao condômino, sem prévia aquiescência dos outros, dar posse, uso ou gozo da propriedade a estranhos (que são um minus em relação à transferência de propriedade), somado ao art. 504 do mesmo diploma, que proíbe que o condômino em coisa indivisível venda a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. 5. Não se pode olvidar que, muitas vezes, na prática, mostra-se extremamente difícil a prova da indivisibilidade. Precedente: REsp 9.934/SP, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma. 6. Na hipótese, como o próprio acórdão reconhece que o imóvel sub judice se encontra em estado de indivisão, apesar de ser ele divisível, há de se reconhecer o direito de preferência do condômino que pretenda adquirir o quinhão do comunheiro, uma vez preenchidos os demais requisitos legais. 7. Recurso especial provido. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2& aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201001464099>. Acesso em: 24 de setembro 2015.
[3] Recurso Especial nº 199.609 – SP. Disponível em: <http://www.solucoesparacondominios.com.br/164 93-condominio-%E2%80%93-alienacao-de-meacao-%E2%80%93-direito-de-preferencia-art-1139-do-cci vil-1916.html>. Acesso em: 24 de setembro 2015.
[4]Disponível em: <http://www.solucoesparacondominios.com.br/16493-condominio-%E2%80%93-alienacao-de-meacao-%E2%80%93-direito-de-preferencia-art-1139-do-c-civil-1916.html>. Acesso em: 24 de setembro 2015.
[5] SERRA, Márcio Guerra; SERRA, Monete Hipólito, cf. Registro de imóveis III: procedimentos especiais, p.149.
[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto, cf. O contrato e sua função social, p. 43.
[7]Ibidem, p. 51.
[8]Ibidem, p. 123.
[9] BDINE JR., Hamid, cf. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência – Lei nº 10.406 de 10.01.2002, p. 564.
[10] FIGUEIREDO, Marcelo, cf. Parecer – Análise da importância da atividade notarial na prevenção dos litígios e dos conflitos sociais -. Revista de Direito Notarial, Ano 2- n.º2, p. 72.
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O presente artigo é uma reflexão pessoal do colunista e não a opinião institucional do CNB-CF.