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ARTIGO: Carlos Luiz Poisl

No universo a tônica é a renovação. Nada é permanente. Tudo sofre modificações. Também o comportamento humano. Em conseqüência, também se modificam as normas que regulam esse comportamento. Essas normas integram a ciência do Direito, ramo da Sociologia.

Mas é da natureza humana oferecer, em grau maior ou menor, resistência às modificações, porque isso implica em mudança de hábitos. Certos costumes se vão enraizando de tal modo que somente a custa de muito esforço mental as pessoas conseguem aceitar a mudança.

Está na ordem do dia a modificação da Constituição que autoriza o divorcio direto, sem a intermediação da separação. Esta, a separação previa, enraizou-se de tal maneira que há relutância em dispensá-la, ou em considerá-la extinta.

Esta situação me fez lembrar de outras duas, com alguma semelhança, que passo a relatar, não só por se constituírem em precedentes, mas por seu valor histórico, justificativo da relutância em pauta.

1946, a Lei do Selo

Antes da grande reforma tributaria de 1964 – e foi necessária uma revolução para que ela pudesse ser feita – existiam dois tributos a atormentar os contribuintes, suas vítimas. Um, federal, a Lei do Selo, que obrigava a selar uma serie infindável de atos. Como, por exemplo, todas as espécies de contratos, todos os recibos, e, além de muitos outros, o reconhecimento de firma. Este era tributado com um selo de Cr$1,00. E o outro tributo, estadual, o Selo por Folha. No Rio Grande do Sul este imposto era recolhido mediante a colagem de um selo (de Cr$3,20, se não me falha a memória) em cada folha de documento encaminhado a alguma repartição pública estadual, inclusive quaisquer requerimentos, além de petições judiciais e documentos juntados a processos. Também no reconhecimento notarial de firma tinha de ser colado o mesmo selo.

Com o tempo, os selos, tanto o federal, como o estadual, ganharam filhotes, isto é, outros selos. O federal, o de Educação e Saúde, na forma de selo a ser colado ao lado do principal. Começou com Cr$0,40, e foi aumentando até Cr$0,80. O estadual, as chamadas taxas, de Eletrificação, de Saúde e não sei mais o quê. Começou com Cr$0,20 e foi aumentando até Cr$1,00.

Em 1937 havia sido implantado o Estado Novo, com o país governado por um ditador, Getulio Dornelles Vargas, que encarnava na sua pessoa dois dos três Poderes da República, o Executivo e o Legislativo. Ele, obviamente, não ostentava o título de ditador, mas o de Presidente, porém era designado muitas vezes, inclusive por órgãos oficiais, como “Chefe da Nação”. Como o país havia participado de uma guerra (a Segunda Grande Guerra, 1939-1945) lutando ao lado das democracias ocidentais contra as ditaduras fascista e nazista, tornou-se muito incômoda a manutenção da ditadura getuliana. Resultou a volta da democracia, corporificada na Constituição de 1946.

Uma das benesses dessa Constituição foi acabar com a bi-tributação. Ela regulou as competências tributarias, da União, dos Estados e dos Municípios, de modo que cada fato gerador somente poderia ser onerado com um único tributo.

E então ocorreu o que se constitui em um dos precedentes a que se alude inicialmente.

No dia seguinte ao da promulgação da nova constituição, o tabelião Moura, do 2º Tabelionato de Porto Alegre, deixou de colar o selo federal e seu filhote nos seus reconhecimentos de firma. Para tomar essa drástica atitude, raciocinou da seguinte maneira: a autenticação de assinatura é ato executado por uma pessoa, o tabelião, que exerce uma função pública estadual, visto ser estadual a autoridade competente que o nomeia, o governador do Estado; terminada a bi-tributação, o ato comporta apenas um único tributo, que, logicamente, será o estadual.

O interessante é que somente o Tabelionato Moura, em todo o Estado do Rio Grande do Sul, fazia autenticações de assinaturas sem o selo federal, com o que ele passou a atrair maior clientela, por ser aí mais barato reconhecer firma. Custava Cr$1,40 menos do que nos demais tabelionatos do Estado, visto que o valor dos impostos era adicionado ao das custas. Estava tão arraigada a prática da cobrança do imposto federal, que os demais tabeliães, com receio de terem de arcar com as pesadas multas por infração da legislação tributaria, relutavam em sobrepor a lei maior, a Constituição, à lei menor, a ordinária Lei do Selo. Não lhes entrava na cabeça que já não valiam as disposições legais que tinham sido contrariadas pela nova Constituição. Somente com o decorrer do tempo, aos poucos, à vista da falta de reação do fisco ante o novo comportamento, foram aposentados os selos federais nos reconhecimentos de firma, muito embora tenha sido oficialmente derrogada a famigerada Lei do Selo, juntamente com as suas disposições inconstitucionais, somente com a referida Reforma Tributaria de 1964.

Quando fui admitido, em 1951, como substituto do 1º Tabelionato de Novo Hamburgo, de que era titular Emilia Muller, ainda nele vigia a prática superada. E não me foi fácil convencer minha chefe a acabar com ela.
 
1978, as Testemunhas Instrumentarias

As Ordenações do Reino foram a lei vigente no Brasil, inclusive após a Independência. Aos poucos elas foram sendo revogadas, à medida em que passavam a surgir leis modernas. Primeiro, o Regulamento 737, na órbita civil, e o Código Comercial, ambos de 1850. Depois o Código Civil de 1916. Mas nenhuma das novas leis contemplava a escritura pública notarial. Assim, ela continuou a ser regulada pelas Ordenações. Estas exigiam a presença de duas testemunhas no ato da assinatura.

Assim, em pleno Século XX todas as escrituras eram assinadas por duas testemunhas porque uma lei editada no Século XV assim o exigia. Note-se que eram testemunhas só no nome, porque se tratava de pessoas que nada viam e nada ouviam da feitura do ato notarial. Eram as chamadas “testemunhas de porta de cartório”. Em geral sempre as mesmas duas pessoas, que passavam por lá uma ou duas vezes por semana, e assinavam, sem ler, as escrituras, inclusive de procuração, anteriormente lavradas e nas quais estavam nomeadas e qualificadas como se tivessem estado presentes e ouvido a leitura da escritura “que acharam conforme”. Constituíam-se em uma aberrante fraude à fé pública notarial, que, por principio, deve atestar a veracidade de tudo o que ocorre na elaboração da escritura. E, no entanto, atestava uma mentira.

Em 1981 foram incluídos no Código Civil os requisitos da escritura pública, transplantados para o Código atual (art. 215).

No dia imediato ao da publicação da lei que procedeu a essa inclusão, os tabeliães gaúchos associados ao Colégio Notarial passaram a lavrar suas escrituras sem menção às duas testemunhas. Eles haviam sido informados pela direção do Colegio de que a presença de testemunhas não era mais requisito de validade do ato notarial. A nova disposição tinha, afinal, revogado tacitamente a vetusta Ordenação Manuelina nessa parte.

Nos demais Estados essa salutar modificação demorou algum tempo a ser adotada. Em alguns, isso ocorreu somente depois da dispensa de testemunhas ser autorizada por algum provimento, circular ou instrução de Corregedor. É bem possível que até hoje, ainda, sejam lavradas escrituras com a declaração de terem sido dispensadas testemunhas a teor do Provimento X. A cega obediência às normas correcionais está tão arraigada em expressivo número de tabeliães, que, para eles, elas se sobrepõem à lei e, até, à própria Constituição. Para estes, uma lei nova ou uma mudança na Constituição somente entra em vigor depois de um juiz-corregedor dar um despacho de “cumpra-se” ou de “nihil obstat”.
 
Conclusão

Daí a relutância em aceitar mudanças, como esta da extinção do estado civil de “separado”, por efeito da nova redação dada ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal. Quem acompanhou a evolução (ou involução?) do instituto jurídico do casamento, de começo indissoluvel, com a única possibilidade do desquite, e, bem mais tarde, com a instituição do divorcio, somente possível depois de determinado prazo de separação (novo nome dado para o desquite), bem sabia que a chegada do divorcio direto era só uma questão de tempo. O fim da separação haveria de vir mais cedo ou mais tarde, como efetivamente chegou com a recente emenda constitucional. São as mudanças no comportamento humano às quais se vai adequando o arcabouço do Direito. Sempre haverá alguma relutância em aceitar essas mudanças.
 
Adendos Históricos

1º – O caso da “Lei do Selo” era narrado pelo tabelião Miguel Ivo Cassal, que veio a suceder ao tabelião Moura no 2º Tabelionato de Porto Alegre, de quem era substituto por ocasião da promulgação da Constituição de 1946.

2º – Em 1977 fui designado pela Diretoria do Colégio Notarial do Brasil, que então tinha como Presidente o mencionado tabelião Miguel Ivo Cassal, para elaborar um ante-projeto de Lei Notarial. Redigi então o que se poderia nomear de Código Notarial, porque especificava, inclusive, com minúcias, a elaboração de todos os atos notariais, além de conferir nova organização ao notariado. Era muito extenso, e teve, talvez por isso, sua tramitação frustrada nos altos escalões do Governo Militar. Mas serviu, ao menos, para uma coisa muito importante: acabar com as testemunhas instrumentarias na escritura pública. É que o tabelião José Luiz Duarte Marques, do 7º Tabelionato de Porto Alegre, era muito amigo do então senador Paulo Brossard de Souza Pinto, o qual, por solicitação dele, encaminhou no Senado um Projeto de Lei instituindo os requisitos da escritura pública, com o respectivo texto extraído do mencionado ante-projeto, de minha redação.

Esse projeto veio a se constituir na Lei nº 6.952, de 6-11-1981, que incluiu no Código Civil de então, os parágrafos 1º a 5º do art. 134. Estes eram copia do que, a respeito, constava do aludido ante-projeto de lei notarial. Foram depois transplantados para o Código Civil de 2.002, onde figuram como art. 215.

Desde o advento da mencionada Lei de 1981 venho cometendo um grave pecado capital: o do orgulho, por ser de minha autoria um fragmento do Código Civil. No contexto geral do Código, esse fragmento não tem maior importância. Mas, para os tabeliães, ele é o guia para a prática do ato notarial por excelência, a escritura pública.