Superado isso, vamos aos argumentos: É de conhecimento público a investigação deflagrada pela Polícia Federal com apoio do Ministério Público Federal e Receita Federal, no intuito de descobrir se um imóvel denominado “Sítio Santa Bárbara”[1], situado em Atibaia, Estado de São Paulo, “pertence” ou não a “conhecida figura política de nosso País”[2].
Segundo a imprensa, conforme informações adquiridas, seguramente por força do princípio da publicidade que rege o Registro de Imóveis, na matrícula do imóvel situado na Comarca de Atibaia, consta como proprietários outras pessoas, que não o político investigado, muito embora, as notícias são de que há indícios de que o bem, de fato, pertence ao último.
É cediço que no Brasil, a transferência de propriedade de bens imóveis, entre vivos, ocorre mediante o registro do título no Registro de Imóveis competente. Nesse sentido dispõe expressamente o Código Civil: “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”.
Do dispositivo legal é possível extrair o entendimento de que ausente o registro imobiliário (no caso de transferência entre vivos), a ausência da propriedade será consequência lógica. Daí a expressão “quem não registra não é dono”.
É importante dizer que o registro do título translativo no Registro de Imóveis não é o único modo de aquisição da propriedade, posto que é possível citar, a título de exemplo, o direito hereditário, e ainda a (ou “o”) usucapião – cujo registro na serventia imobiliária é meramente declaratório da propriedade, uma vez que a mesma já está constituída pelo decurso do tempo, aliado a outros requisitos legais.
Característica fundamental dos Registros Públicos diz respeito à harmonia com a realidade, de modo o que os registros devem expressar “aquilo que realmente é”. Por assim ser, é que o Código Civil aponta que “Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule.” (art. 1.247).
No Registro de Imóveis, existe então uma presunção de que a propriedade pertence exatamente àquele, ou àqueles cujos nomes constam do registro.
No caso em tela, a informação é de que o imóvel (“Sítio Santa Bárbara”) encontra-se em nome de terceiros, de modo que não se pode atribuir a “propriedade” à figura política investigada. Ademais o registro produz todos os efeitos legais, enquanto não for cancelado.
A Lei de Registros Públicos[3] prega: “Art. 252 – O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido.”
Há que se notar, que a força probante decorrente do registro, trata-se de presunção “juris tantum”, admitindo-se evidentemente prova em contrário.
O proprietário, ainda nos termos do diploma privado, “tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (art. 1.228).
Prevê portanto o ordenamento jurídico uma série de direitos ao PROPRIETÁRIO, sendo que um deles trata-se do direito de dispor da coisa (jus disponendi), de modo que o proprietário pode alienar, a quem quiser, pelo preço e condições que convencionar, o imóvel, sem prejuízo de gravá-lo de ônus.
Considerando o “princípio da disponibilidade”, não é possível que uma pessoa transfira mais direitos do que tem, de modo que a figura pública investigada não poderia, caso quisesse, alienar o imóvel, exatamente pelo fato de que, do que se extrai da matrícula, não é proprietário do mesmo.
É notícia ainda, no caso em mote, a existência de uma minuta de escritura de venda e compra[4], em que os proprietários “vendem” o imóvel situado em Atibaia – SP, para o político investigado. Todavia tal documento não gera nenhum efeito jurídico, no que toca aos interesses deste artigo.
Outra situação atinente às investigações (figurando agora o MP do Estado de São Paulo), é a de se averiguar ainda, se um imóvel situado no Guarujá – SP (um apartamento “triplex”)[5], também pertence ao político investigado – ao que se aplica todo o raciocínio aqui exposto.
A questão tormentosa gira em torno da possibilidade ou não do “alcance” de bens imóveis, em situações como as aqui exemplificadas, mesmo que não registrados no nome das pessoas investigadas, condenadas, executadas etc. Há dúvida é: É possível a constrição de bens imóveis em decorrência de comportamento de terceiro?
A rigor, considerando os princípios da segurança jurídica, fé pública, especialidade, continuidade, disponibilidade, dentre outros princípios e elementos atinentes ao campo dos Registros Públicos, sobretudo no registro de imóveis, não é possível, em linhas gerais, a constrição de bens imóveis de uma pessoa, em razão de comportamento(s) realizado(s) por outra(s).
É claro todavia, que em algumas hipóteses, o bem, mesmo sendo de propriedade de “X”, poderá ser alcançado em decorrência de um comportamento de “Y”, como nos casos, por exemplo, de fiança em contrato de locação, em que é possível a penhora do bem fiador apontado, ainda que este alegue ser bem de família.
Não se ignora ainda a existência das chamadas obrigações “propter rem” ou ambulatórias, que, como ensina Murilo Sechieri Costa Neves, “São aquelas que recaem sobre uma pessoa por força da titularidade de um direito real. Por exemplo, a obrigação que os condôminos tem de contribuir com as despesas de conservação e divisão da coisa comum. O motivo pelo qual estas obrigações são consideradas diferentes das obrigações em geral, é o fato de que elas, já que surgem por força da titularidade de um direito real, acompanham a coisa titularizada em poder de quem quer que ela esteja, ou seja, há transferência automática da obrigação em desfavor do novo titular do direito real sobre a coisa”[6]. Da mesma forma não se pode esquecer do tratamento dispensado à evicção, quando o adquirente acaba por perder a coisa em virtude do reconhecimento judicial do direito anterior de outrem.
Portanto, muito embora a situação concreta não abarca as hipóteses mencionadas nos dois últimos parágrafos, é adequado o entendimento de que bens imóveis podem ser alcançados e sofrer constrição ainda que em decorrência de situações que não envolvam o proprietário tabular, mas devendo haver sempre a observação do princípio da continuidade, no sentido de que haja na matrícula uma ordem encadeada dos fatos, de modo que se identifique, através de um “histórico”, qual a situação do bem.
A análise de toda a questão não é tão simples, e envolve ainda outros ramos do direito, tudo a depender, evidentemente, do dispositivo legal no qual está inserido o comportamento do agente – proprietário tabular ou não.
Tendo em vista as várias vertentes que envolvem a matéria, é de se constar que o presente texto não reveste-se da pretensão de esgotar o tema.
No processo penal é possível a constrição do bem imóvel por força das chamadas “medidas assecuratórias”, portanto com necessário ingresso no Registro de Imóveis para fim de publicidade.
Guilherme de Souza Nucci ensina que tais medidas “São as providências tomadas, no processo criminal, para garantir a futura indenização ou reparação à vítima da infração penal, o pagamento das despesas processuais ou das penas pecuniárias ao Estado ou mesmo para evitar que o acusado obtenha lucro com a prática criminosa”.[7]
Dentre as medidas, destaco o sequestro, trazendo para tanto a redação do artigo 125 do Código de Processo Penal, que preceitua: “Caberá o sequestro dos bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro” (art. 125). E ainda: “Art. 126 – Para a decretação do sequestro, bastará a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens”.
A medida poderá ser decretada pelo juiz até mesmo na fase investigatória, de modo que não há que se falar, sequer, em trânsito em julgado, para fim da inscrição no Registro de Imóveis, uma vez que pode nem haver processo quando da ordem.
Realizado o sequestro, o juiz ordenará a sua inscrição no Registro de Imóveis – é o que 128 do Código de Processo Penal. Tal medida se impõe para fins de publicidade, considerando ainda que “registro da penhora faz prova quanto à fraude de qualquer transação posterior” (art. 240 – LRP).
Sobre o tema, a Lei de Registros Públicos prevê: “Art. 239 – As penhoras, arrestos e sequestros de imóveis serão registrados depois de pagas as custas do registro pela parte interessada, em cumprimento de mandado ou à vista de certidão do escrivão, de que constem, além dos requisitos exigidos para o registro, os nomes do juiz, do depositário, das partes e a natureza do processo. Parágrafo único – A certidão será lavrada pelo escrivão do feito, com a declaração do fim especial a que se destina, após a entrega, em cartório, do mandado devidamente cumprido”.
Em geral a inscrição é feita com base no mandado judicial, podendo ser inclusive de forma eletrônica.
O sequestro por ser uma medida assecuratória, trata-se de situação transitória, de modo que o seu levantamento depende também de ordem expressa.
Transitada em julgado a sentença condenatória, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado, determinará a avaliação e a venda dos bens em leilão público (art. 133 CPP), ocasião em que o “novo adquirente”, em decorrência do registro, será tido como proprietário.
Não se olvida ainda que é efeito da condenação, dentre outros, a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso (Código Penal – artigo 91, inciso II, letra “b”).
O sequestro de bens imóveis, com a devida inscrição pelo Oficial de Registro de Imóveis, poderá ser efetuado ainda nos casos de sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional, a rigor do que se pode compreender do estudo da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica.
A constrição pode ainda chegar à Serventia Imobiliária em razão das previsões da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que trata dos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, cujo artigo 1º, traz como preceito secundário, a pena de reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa, para quem oculta ou dissimula a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
A citada lei (nº 9.613/98) preceitua ainda, em seu artigo 4º, com redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012, que “O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo indícios suficientes de infração penal, poderá decretar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos nesta Lei ou das infrações penais antecedentes” (grifei).
Por último, e não menos importante, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, promulgada nos termos do Decreto nº 5.687 de 31 de janeiro de 2006, prevê (artigos 53 e 54), medidas para recuperação direta de bens adquiridos mediante a prática dos delitos qualificados na dita convenção. Assim, a ordem para a restrição pode ser advinda até mesmo de delitos cujo processo tramita no exterior, devendo o Oficial, quando da recepção do documento, qualificá-lo, observando as prescrições legais e normativas.
A qualificação registral é indispensável, obviamente porque, como ensina o ilustríssimo Desembargador Presidente da Seção de Direito Público do TJ-SP, Ricardo Henry Marques Dip, ela é “o juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração”[8].
Portanto, configurada qualquer uma das situações acima expostas, ou ainda outras esparsas, notadamente é possível a constrição de bem imóvel em decorrência de comportamento de terceiro, sendo imprescindível a ordem nesse sentido, e a qualificação por parte do Oficial de R
*Frank Wendel Chossani é títular da delegação de Registro Civil e Notas de Populina. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral, Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, e Direito Processual Civil.
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