Passando em revista algumas teses jurisprudenciais, sobre o tema da união estável, firmadas pelo Superior Tribunal de Justiça e recém divulgadas,1 uma delas causa impressão. Refiro-me à seguinte conclusão pretoriana: “Na união estável de pessoa maior de setenta anos (art. 1.641, II, do CC/02), impõe-se o regime da separação obrigatória, sendo possível a partilha de bens adquiridos na constância da relação, desde que comprovado o esforço comum”. Fixa-se, nessas breves linhas, na parte primeira da assertiva, até porque a questão da presunção – ou não – do esforço comum demanda estudo pormenorizado. A estranheza sobressalta não pela novidade – que de fato não o é – ,2 mas pela subsistência da profecia engendrada em tão equivocada hermenêutica.
Diz o Código Civil: “Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: (…) II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos”.
Desde logo, advirta-se que a redação atual do dispositivo foi dada pela Lei nº 12.344, de 2010, porque – pasmem – na redação congênita da Lei Civil a imposição do regime da separação obrigatória operava-se ao maior de 60 (sessenta) anos.
Seja como for, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que tal regra impositiva de regime de bens deve ser aplicada também para a união estável.
Como face da mesma moeda, por coerência, discordamos da imposição do regime legal obrigatório tanto para o casamento, quanto à união estável. Entretanto, e a bem da verdade, quanto ao matrimônio, pode-se até discordar da ratio legis – como, de fato, dissentimos e fundamentamos a seguir –, agora, para a família convivencial, aplicar a norma desenha interpretação desastrosa do Direito, ante a inexistência de lei.
Há espaço, sejamos francos, para trabalho de fôlego com combativos fundamentos para a não aplicação desta regra restritiva à união estável – que não é nosso objetivo nessas breves nótulas. Restringe-se, por enquanto, a apenas um obstáculo, intransponível: diante da inexistência de previsão legal, tal regra, restritiva por essência, não pode ser aplicada por analogia. Em termos ainda mais claros, normas que limitam direitos devem ser interpretadas restritivamente. Cuida-se de regra comezinha de interpretação do Direito, vincada em lições centenárias do direito romano. Pensar diferente é andar na contramão da história.
Em acréscimo, não se pode esquecer que o trato jurídico igualitário de institutos distintos – neste caso, o casamento e a união estável – não prestigia, ipso facto, a Constituição. Por vezes, a distorce. É da natureza dessas instituições distinguir-se entre si, sob pena de perder, uma e outra, a razão de ser. Igualar, em tudo, essas formas de constituição de família implica verdadeiro retrocesso social. Nesse viés, acompanhamos as autorizadas considerações de Rodrigo da Cunha Pereira divulgadas em escólio que traz título sugestivo – aliás, serviria tranquilamente como nota conclusiva para nossos pensamentos aqui tratados: “Em nome da liberdade, união estável tem de se manter diferente do casamento”.
Disserta o ilustre autor, que “(…) outro grande problema, também está em demarcar os limites e diferenças entre união estável e casamento. A regulamentação de união estável é necessária e eliminou injustiças históricas ao proteger a parte economicamente mais fraca. Mas trouxe consigo um paradoxo: quanto mais regulamenta, mais a aproxima do casamento; quanto mais próxima do casamento for, eliminando as diferenças entre um instituto e outro, mais distancia a união estável de sua ideia original. Se em tudo ela for igual ao casamento, ela deixa de existir e acaba com a liberdade das pessoas de escolherem entre um instituto e outro. Se escolho constituir minha família conjugal pela união estável é porque optei por esta via e não a outra. Se em tudo forem iguais, não terei mais duas vias de escolha, pois estarei praticamente casado, mesmo não querendo. E isto é excesso de intervenção do Estado na vida privada do cidadão. (…) Casamento e união estável são duas formas de constituir famílias. Uma não é superior ou inferior à outra, nem melhor nem pior. Apenas diferentes. E ainda bem que há diferenças. (…)Equiparar em tudo estas duas formas de família significa acabar com a união estável, interferir drasticamente no desejo e autonomia de escolher uma forma de constituir família que não seja o casamento”. 3
Como já afirmado en passant, sequer concordamos – com o perdão do leitor pela recalcitrância – com a imposição do regime da separação obrigatória para o casamento.
Não soa razoável sustentar a imposição do regime obrigatório de bens em virtude da natureza jurídica das normas do Direito de Família, que estariam lastreadas no binômio tensivo público-privado.
Nada justifica, como neste caso, tolher a autonomia privada. Não nos esqueçamos que a eleição do regime de bens pelo casal, ainda que em razão da constituição de família, tem forte espírito patrimonial e, com os ventos da modernidade, a imposição legal de estatuto patrimonial é desmedida.
Com efeito, uma das arestas do fenômeno da “repersonalização” do direito civil – e, antes ainda, do Estado Democrático de Direito – é a garantia aos cidadãos da liberdade de escolha de seus múltiplos projetos pessoais para a busca de sua felicidade. E o Direito Privado, como sói acontecer, com seu sistema de regras e princípios, é o amparo e a base do exercício desta autonomia. Como fio da meada, a liberdade deve ser tida como valor jurídico e sua escolha, espontânea, é instrumento de efetivação do Direito. Afinal, na liberdade de escolha do diferente, está a responsabilidade do sujeito por esta escolha e, aqui sim, tem terreno fértil a atuação interventiva do Estado.
Somente esta exegese é válida.
Ressalvadas algumas vozes solteiras, boa parte da doutrina filia-se pela inconstitucionalidade da norma em debate, especialmente porque sua mens legis não se legitima. A senilidade não implica em automática incapacidade. Não há, assim, justificativa para o discrímen. Colhe-se, por oportuno, anotações do sempre didático Pablo Stolze: “A alegação de que a separação patrimonial entre pessoas que convolarem núpcias acima de determinado patamar etário teria o intuito de proteger o idoso das investidas de quem pretenda aplicar o “golpe do baú” não convence. E, se assim o fosse, essa risível justificativa resguardaria, em uma elitista perspectiva legal, uma pequena parcela de pessoas abastadas, apenando, em contrapartida, um número muito maior de brasileiro. Não podemos extrair dessa norma nenhuma interpretação conforme a Constituição. Muito pelo contrário. O que notamos é uma violência escancarada ao princípio da isonomia, por conta do estabelecimento de uma velada forma de interdição parcial do idoso. Avançada a idade, por si só, não é causa de incapacidade!”.
Demonstrando que o dispositivo se põe em rota direta de colisão com o Texto Maior, em inegável quebra da coerência teleológica, propõe o supracitado autor: “Aliás, com 60 anos (como era o limite original do dispositivo), 70 anos (na atual redação) ou mais idade ainda, a pessoa pode presidir a República. Pode integrar a Câmara dos Deputados. O Senado Federal. (…) E não poderia escolher livremente o seu regime de bens? Não podemos tentar encontrar razão onde ela simplesmente não existe. Nessa linha, concluímos pela inconstitucionalidade do dispositivo sob comento (art. 1.641, II), ainda não pronunciada, em controle abstrato, infelizmente, pelo Supremo Tribunal Federal”. 4
Isto posto, reitera-se, aqui, o Enunciado nº 125 da Primeira Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que arrola dentre as propostas de modificação da legislação, a revogação do art. 1.641, inciso II, do Código Civil, sob a seguinte justificativa: “A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”.
Para encerrar, sem qualquer menoscabo, conclui-se enfatizando o pleno respeito à força da jurisprudência – catalisada que será pela entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), com intensa valorização dos precedentes e fincada na função nomofilácica dos tribunais –, mas, com todas as vênias, discordamos da tese fixada pelo Superior Tribunal de Justiça.
Referências
1. Teses jurisprudenciais divulgadas no sítio oficial do Superior Tribunal de Justiça, as quais recomendamos firmemente a leitura.
2. Já é de algum tempo que o Superior Tribunal de Justiça vem se posicionando nesse sentido. Vejam-se alguns precedentes: EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, Julgado em 26/08/2015,DJE 21/09/2015; AgRg no AREsp 675912/SC,Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA,Julgado em 02/06/2015,DJE 11/06/2015; REsp 1403419/MG,Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA,Julgado em 11/11/2014,DJE 14/11/2014; REsp 1369860/PR,Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA,TERCEIRA TURMA,Julgado em 19/08/2014,DJE 04/09/2014; REsp 646259/RS,Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, Julgado em 22/06/2010,DJE 24/08/2010.
3. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Em nome da liberdade, união estável tem de se manter diferente do casamento. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-out-04/processo-familiar-liberdade-uniao-estavel-diferente-casamento
4. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 6: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 369-370.