Recentemente, um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foi amplamente divulgado pelo fato de ter validado a aquisição, por empresa brasileira de capital predominantemente estrangeiro, de terras rurais que pertenciam a outra empresa nacional, por ela incorporada. O acórdão, registrado sob o número 03842436 e relatado pelo desembargador Guerrieri Rezende, delineou alguns aspectos bastante importantes para o exame do tema em geral, posto que não se ateve apenas ao caso em si e enfrentou todas as questões levantadas pelo parecer 01/2008-RVJ da Advocacia-Geral da União, que defende a vigência plena da Lei 5.709/71.
De praxe, sabe-se que os estrangeiros, por esta lei e também pelo que dispõem o artigo 190 da Constituição Federal de 1988 e os artigos 2°, V, e 3° da Lei 6.634/70, detêm as seguintes restrições quando se trata de aquisição de terras rurais: a propriedade deve ter sua extensão até 50 módulos, sendo que acima de 20 módulos há necessidade de autorização do Incra para a transferência e registro da propriedade, e estar a mais de 150 km da faixa de fronteira. Dentro desta faixa, considerada de Segurança Nacional, a Lei 6.634/79 determina que as empresas exploradoras de atividade rural detentoras de participação predominantemente estrangeira também não podem ter qualquer propriedade imóvel.
Em síntese, as discussões apreciadas pelo Órgão Especial do TJ-SP neste acórdão foram as seguintes: a) inexistência de diferenciação de regimes jurídicos aplicáveis a empresas nacionais de capital interno e empresas nacionais de capital predominantemente estrangeiro; b) recepção, repristinação ou revogação do artigo 1, parágrafo 1º da Lei 5.709/71 após a Emenda Constitucional 06/95, e c) risco à segurança nacional.
Do que se depreende do acórdão, não se pode mais conceber, diante da sistemática atual de nosso ordenamento jurídico, que haja diferenciação de regimes jurídicos aplicáveis entre empresas nacionais de capital nacional e empresas nacionais de capital estrangeiro. Isto porque, com a atual redação do artigo 171 da Constituição Federal de 1988 e, com o disposto no artigo 1.126 do Código Civil, para que uma empresa seja considerada nacional, basta que seja sediada no Brasil e esteja em conformidade com a legislação brasileira a ela aplicável. Diante disso, não persistiria mais, em nossa legislação, qualquer menção que diferenciasse tratamentos às empresas de capital nacional ou de capital estrangeiro.
Quanto ao segundo ponto levantado, a discussão sobre a vigência ou não da Lei 5.709/71 pareceu um pouco imprecisa, sobretudo quando se discorreu sobre o tema da repristinação. Segundo o texto do acórdão, o artigo 1°, parágrafo1º da Lei 5.709/71 não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, mas, de fato, a redação do antigo artigo 171 vinha ao encontro do que pretendia o artigo 1°, parágrafo1º da Lei 5.709/71 e, por isso, recepcionava este dispositivo de lei.
Contudo, com a revogação deste artigo (EC 05/1996), não havia mais em nossa legislação algo que diferenciasse, de forma geral, uma empresa nacional de capital nacional ou estrangeiro, posto que o Código Civil de 1916 silenciava sobre isso, assim como o Código Comercial. Com a revogação do artigo 171 da CF/88, portanto, a Lei 5.709/71 passou a ser incompatível com o texto constitucional e, por isso, inaplicável. Portanto, não há que se falar em repristinação ou não, mas, sim, em inconstitucionalidade.
Por fim, o TJ-SP também abordou uma questão primordial e de ordem pública, levantado principalmente pelo desembargador Ribeiro da Silva, que atentou-se quanto a um eventual risco à segurança nacional caso o entendimento de que empresas com capital estrangeiro podem adquirir áreas rurais prosperasse nos julgados de nossas Cortes Superiores. Não se poderia esperar uma solução pacífica para um debate tão delicado como este.
De fato, alguns dos problemas enfrentados pelo TJ-SP neste acórdão refletem as dificuldades encontradas até mesmo no âmbito internacional e que, inclusive, inviabilizam a negociação de tratados internacionais que regulem a matéria. E é claro que tal polêmica se alimenta de fatos bastante intrigantes, como ocorre, a título de exemplo, em alguns países da África em que estrangeiros adquirem terras agrícolas a preços muito baixos, prejudicando a produção para atendimento do mercado interno, justamente por terem como fim único a exportação dos bens produzidos/extraídos.
No caso do Brasil, devemos nos atentar para alguns dados bastante relevantes. Primeiramente, a utilização de terras rurais para o desenvolvimento da agricultura ou pecuária por estrangeiros pode causar muito mais danos do que benefícios ao país em determinados casos. Por exemplo, se uma empresa nacional de capital estrangeiro adquire e explora terras no Brasil, gerando poucos empregos formais (para não falarmos em uso de mão de obra escrava), causando danos ambientais e remetendo seus lucros para fora do país sem reinvesti-los aqui, deixará como herança de sua atividade apenas os impactos negativos e os impostos que pagar pelo exercício de sua atividade. Esse tipo de situação é desvantajosa ao país e deve sim ser objeto de fiscalização pelo Estado brasileiro.
Contudo, a empresa nacional de capital estrangeiro que deseja investir no país, gerar empregos formais, se preocupar com o meio ambiente etc. deve ser incentivada pela legislação, pois gera riqueza ao país e aos cidadãos. Indo um pouco mais além, seria também bastante desejável que fosse previsto algum regime jurídico específico para que empresas ou proprietários de terras rurais no país pudessem buscar capitalização em instituições estrangeiras através de contratos em que possam dar suas terras em garantia, mas com segurança jurídica para ambas as partes. Sem isso, o produtor perde oportunidade de financiamento e os financiadores de negócios seguros.
Em virtude de tudo isso, como nosso país está cada vez mais inserido no mercado internacional e, frequentemente, bons negócios são feitos com terras destinadas à produção rural, é imprescindível que o Brasil reforme sua lei e dê maior previsibilidade e segurança jurídica para este mercado, atentando-se para as oportunidades e receitas que podem ser geradas e preocupando-se também com o interesse público em sua acepção primordial: o interesse da coletividade, e não o do governo ou de grupos isolados.
Autor: José Nantala Bádue Freire é advogado da área cível do escritório Peixoto e Cury Advogados e Rodrigo Giordano de Castro é advogado da área cível do escritório Peixoto e Cury Advogados