Nas últimas décadas, a doutrina sobre o direito privado, com grande influência nos negócios jurídicos e na sua principal espécie – os contratos – tem passado por reformulação dogmática e principiológica. Com a constitucionalização do direito civil e positivação de princípios no Código Civil de 2002 formou-se uma nova dogmática do direito privado, divorciando-se da intangibilidade da propriedade e da autonomia da vontade.
A socialidade, operabilidade e eticidade passaram a ser os princípios informadores do direito civil, com cláusulas indeterminadas, valores e princípios irradiando efeitos concretos e hermenêuticos nos negócios jurídicos. A função social passou a mitigar a autonomia da vontade – que evoluiu para o conceito de autonomia privada – e foi suplantado o apego ao formalismo legalista e patrimonialista, com vértice na dignidade da pessoa humana.
A divisão ontológica do ato jurídico em ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico foi positivada no Brasil com o CC de 2002. No código de 1916, assim como no Código Civil Italiano, adotava-se a classificação unitarista, em que negócios jurídicos eram abarcados genericamente com os elementos dos atos jurídicos em sentido amplo. Admitida a classificação bipartida, pode-se afirmar que negócio jurídico é espécie de ato jurídico em sentido amplo, que pela vontade e declaração das partes são criadas, modificadas ou extintas relações, direitos e obrigações, permitindo o controle dos efeitos do negócio pelas declarações das partes.
O negócio jurídico diferencia-se do ato jurídico em sentido estrito, principalmente, pela possibilidade ou não de controle dos efeitos. Ambos requerem vontade humana declarada. Mas enquanto nos negócios jurídicos as partes podem controlar efeitos – por exemplo, em um testamento, o testador pode criar regras de substituição, condições, encargos, etc. – no ato jurídico em sentido estrito há também uma declaração de vontade, mas seus efeitos decorrem da lei – por exemplo, o reconhecimento de filho, em que ao se manifestar a vontade de reconhecer não é permitido impor condições ou mitigar efeitos, que decorrem, todos, da lei.
O negócio jurídico – com seus requisitos, defeitos, interpretação, etc. – está posicionado no Código Civil de 2002 na parte geral. Pode-se dizer, portanto, que suas regras permeiam diversos institutos da parte especial: obrigações, contratos, direito de empresa, direito de família, direito de sucessão.
A doutrina clássica indica que o negócio jurídico apresenta dicotomia com os direitos reais: enquanto nos negócios jurídicos aplica-se a relatividade inter partes, nos direitos reais tem-se a sujeição passiva universal, erga omnes. É importante mencionar que a relatividade dos contratos tem sido mitigada, e a doutrina e o direito pátrio têm, em diversas situações, protegido a situação jurídica das partes contratantes em face de terceiros ofensores ou em vista de terceiros ofendidos. Mas apesar das diferenças, certo é que os negócios jurídicos são instrumentos importantes como títulos causais para a transmissão de direitos reais pela forma derivada. Por isso, a análise dos negócios jurídicos é essencial na atividade notarial e de registros imobiliários.
Dentre os negócios jurídicos, o mais usual e importante instrumento de criação, modificação e extinção de direitos e obrigações é o contrato, que se subdivide em diversas espécies com regras específicas, como a compra e venda, a doação, a dação, a permuta. Mas além dos contratos, que são típicos negócios jurídicos bilaterais, também são considerados como negócios jurídicos o testamento e a promessa de recompensa, estes, negócios jurídicos unilaterais.
A doutrina, com destaque a Pontes de Miranda (a Escada Ponteana), divide os planos do negócios jurídico em três: existência, validade e eficácia. Indicam que os requisitos para a existência do negócio jurídico são agente, objeto e forma. O art. 104 do Código Civil traz os requisitos para validade do negócio, adjetivando os requisitos de existência, exigindo que para ser válido: agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, forma prescrita ou não defesa em lei. Já para a eficácia, faz-se a análise sobre algum elemento de controle dos efeitos do negócio, como condição, termo ou encargo como condição suspensiva ou resolutiva.
Quanto à validade, o Código Civil tipifica casos mais graves e menos graves, cominando efeitos diferentes a eles. Quanto aos menos graves, os defeitos de negócio jurídico, podem envolver vícios de consentimento ou vício social, e o código comina sujeição à anulabilidade, se for arguida no prazo decadencial legal. Já quanto aos mais graves – as invalidades -, o código considera o negócio nulo desde logo, independente de qualquer ação para assim declará-lo. Contudo, aplica-se, em nosso direito, o princípio da conservação dos negócios jurídicos, que visa manter os negócios jurídicos por meio do saneamento de irregularidades.
Dentre os requisitos para formação e validade do negócio jurídico, merecem destaque: quanto ao agente, se for relativamente incapaz sem assistência o negócio é anulável, e se for absolutamente incapaz o negócio é nulo; é tão somente anulável o negócio que o representante da parte celebrar consigo mesmo; quanto ao objeto, há liberdade negocial, sendo vedados objetos ilícitos e também atos emulativos, diante da socialidade.
Adentrando especificamente no ponto em análise, após breve introdução e contextualização, tem-se visto que a questão sobre a nulidade ou anulabilidade dos negócios jurídicos causam alguma controvérsia na prática notarial e registral imobiliária: seria possível a lavratura de escritura pública e o registro imobiliário de negócio jurídico anulável?
A resposta, apesar das cautelas exigidas, é afirmativa. É sim possível a lavratura de escritura e registro sendo o negócio jurídico anulável. Se o ato fosse nulo, seria dever do tabelião orientar as partes e negar a lavratura do ato, assim como ao registrador caberia a qualificação negativa do título nulo. A razão de tal distinção entre negócios nulos ou negócios anuláveis é que o primeiro é vício de ordem pública, que atinge o negócio deste seu surgimento e se pronuncia ex officio; de outro lado, o negócio jurídico meramente anulável nasce válido, e permanecerá hígido caso a anulabilidade se não seja arguida no prazo e forma legal, tendo em vista que este vício é de interesse privada, e afasta-se das questões de cogentes, de ordem pública.
Neste sentido, recentemente o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo julgou improcedente dúvida registral, e determinou o registro imobiliário de escritura pública em que o vendedor foi representado no negócio jurídico pelo próprio comprador. É certo que o art. 117 do Código Civil estabelece que tal negócio é anulável. Contudo, acertadamente o Conselho Superior da Magistratura entendeu que tal anulabilidade é questão de ordem privada, e não deveria o registrador impedir o registro, pois caberia ao interessado, caso eventualmente tenha havido prejuízo, buscar os meios legais para ver declarada a anulação do negócio jurídico (Apelação Cível n° 3002501-95.2013.8.26.0590 Apelante: Antônio Carlos Alves da Silva Apelado: Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Vicente VOTO N° 34.084). No voto, o Corregedor Geral da Justiça e relator, Dr. Hamilton Elliot Akel assim sintetizou: “Trata-se de nulidade relativa, que não pode ser pronunciada de ofício pelo juiz, tampouco pelo registrador.”
Apesar da possibilidade de lavratura de escritura pública de negócios jurídicos meramente anuláveis, é dever do tabelião de notas orientar o interessado, expressamente, sobre a causa de anulabilidade presente no negócio jurídico, deixando-o ciente de como evitar a causa de anulabilidade e também sobre as consequências de celebração do negócio com o vício relativo.
A falta de orientação clara sobre as causas e consequências da anulabilidade poderá configurar falha no dever de informação e assessoramento do notário, podendo causar responsabilidade civil e disciplinar. Contudo, negar a prática do ato por mera questão de anulabilidade seria negar indevidamente o exercício da função pública delegada, pois como questão de interesse e ordem privada, cabe ao interessado decidir se pratica ou não o ato, ciente das consequências jurídicas, e não ao tabelião. Ao notário cabe instrumentalizar juridicamente a vontade das partes, mesmo que sujeitas a anulabilidades (de ordem privada). Tal orientação, com assessoria jurídica adequada às partes, deve ser mencionada expressamente no texto da escritura pública; não parece necessário e nem adequado que seja feito documento separado para comprovar a orientação realizada pelo tabelião.
Neste cenário, a função do tabelião, como assessor jurídico das partes, como jurista titular de fé-pública e baseada na independência e confiança do Estado e das pessoas deve ser executada com prudência e com plena informação ao interessado, a fim de irradiar a aplicação dos princípios integradores dos negócios jurídicos e assegurar a segurança jurídica, a paz social e a contribuição para a dinâmica das relações privadas. Conforme texto do preâmbulo do Provimento CGJ-SP 40/2012, cabe o tabelião assumir missão de justiça preventiva, intervindo em domínios que são importantes para a vida econômica e social, ou para a segurança e a paz civil.
Ao Oficial de Registro, a quem cabe o importante papel da segurança estática das relações da sociedade, no caso de negócio meramente anulável, é adequado qualificar positivamente o título material e praticar o ato de registro, publicando o direito real e garantindo a publicidade, autenticidade, segurança e disponibilidade do direito. Ao interessado eventualmente prejudicado pela causa de anulabilidade, se for o caso, cabe buscar nos meios jurisdicionais o reconhecimento do vício, que poderá levar à anulação do título causal, e reflexamente do registro imobiliário. Vale mencionar que, mesmo que anulado o título causal, faz-se ainda necessária averbação de cancelamento do registro. Isso porque, enquanto não cancelado, o registro continua a produzir efeitos, mesmo que de outra forma se prove que o negócio está anulado, cancelado, extinto ou sem efeito, na forma do art. 252 da lei 6.015/73.
Assim, é importante considerar que a atividade dos tabeliães e registradores deve assegurar a segurança jurídica, ao mesmo tempo em que contribui para a dinâmica das relações privadas, sempre atentos ao fato de que a forma pública – assim como o registro – é um meio, e não um fim em si mesma. Como ensina o ilustre desembargador Dr. Ricardo Dip “não é a vida que é feita para o registro, mas o registro que é feito para a vida”. Assim, é importante a função qualificada dos tabeliães e registradores, que aplicam o direito com a eficiência e dinâmica que as relações sociais têm exigido, permeado pela segurança jurídica e pela fé-pública, que são corolário da atividade notarial e registral.
*O autor é Tabelião Titular do 2º Tabelião de Notas e Protesto de Botucatu-SP. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil. Contato: rrgruber@gmail.com