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Artigo: O novo CPC e gratuidade das escrituras públicas de separação, divórcio e inventário e partilha – Gustavo Casagrande Canheu

Gustavo Casagrande Canheu*
Em 05 de janeiro de 2007 entrou em vigor a Lei 11.441/2007, que estabeleceu normas autorizadoras da efetivação de separações, divórcios e inventários na via extrajudicial, por meio de escrituras públicas a serem lavradas em tabelionatos de notas.
Tratava-se, à época, de importante inovação legislativa que, ao alterar o antigo Código de Processo Civil (Lei 5.869/73), então vigente, permitiu a desjudicialização de procedimentos não contenciosos (consensuais), possibilitando, nas palavras de CHRISTIANO CASSETARI um “duplo favorecimento para ambos os lados: o jurisdicionado ganha uma nova forma de realizar separação, divórcio e inventário muito mais ágil, e o Judiciário ganha mais tempo para se dedicar às questões complexas, com a redução da tramitação desses processos”[1].
O §3º do art. 1.124-A do então vigente Código de Processo Civil, acrescido pela supracitada lei, previa expressamente que as escrituras de separação e divórcio seriam gratuitas para as pessoas que se declarassem pobres, ou seja, que não possuíssem condições financeiras para arcar com os respectivos emolumentos.
Os arts. 982 e 983 do antigo CPC, também alterados para permitir a lavratura de escrituras públicas de inventário e partilha, não reproduziu a previsão de gratuidade do artigo anterior. No entanto, ao regulamentar as escrituras em questão, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no art. 6º da Resolução nº 35, estatuiu que a gratuidade prevista no art. 1.124-A do CPC de antanho se estendia às escrituras públicas de inventário e partilha. Tendo em vistas as dúvidas e questionamentos quanto à validade da previsão em resolução de caráter administrativo de gratuidade não prevista especificamente em lei, em 2009 foi editada a Lei 11.965, que acrescentou o §2º ao art. 982 do CPC, para expressamente determinar que as escrituras e os atos notariais de inventário e partilha fossem gratuitos àqueles que se declarassem pobres na acepção legal.
Ainda assim, não se pode negar que tais previsões, mesmo que legais, eram extremamente questionáveis. A atividade notarial e registral, como se sabe, é exercida em caráter privado, mas por delegação do poder público (art. 236 da CF/88). Em outras palavras, embora os serviços sejam públicos, o texto Constitucional proibiu o Estado de exercê-los diretamente, determinando sua delegação a pessoas físicas consideradas aptas a tal, mediante aprovação em concurso público de provas e títulos.
Os profissionais considerados habilitados a exercer tais serviços, os Tabeliães e Registradores, não seriam, de acordo com o texto constitucional, simples servidores públicos, pois deveriam pessoalmente arcar com os ônus necessários à prestação de tais serviços. Nas palavras de CARVALHO FILHO, são eles “colaboradores do Poder Público, muito embora não sejam ocupantes de cargo público, mas sim agentes que exercem, em caráter de definitividade, função pública sujeita a regime especial” [2]. São, portanto, particulares que recebem, após aprovação em concurso público, a incumbência de execução de um serviço público e o realizam “em nome próprio, por sua conta e risco, segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante” [3]
Nesse diapasão, a concessão de qualquer gratuidade nos serviços por eles prestados, depende, a nosso ver, da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de tais serviços durante a sua prestação. A garantia da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro para os particulares que prestam serviços públicos, sempre que modificadas unilateralmente pelo Estado as regras de tal prestação, está prevista no art. 65 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações). Mais precisamente o §6º do artigo em questão, estabelece que “em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial”.
Ainda que tal lei se refira a serviços cuja delegação (em sentido amplo) tenha ocorrido por meio de licitação e contratação administrativa, o que se costuma classificar como delegação contratual, e os serviços notariais e registrais sejam transferidos a particulares por determinação constitucional após aprovação em concurso público, o que se classifica como delegação constitucional, não nos resta dúvida de que ambas são equivalentes quanto à sua essência e suas regras de manutenção.
O próprio Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro mesmo nas delegações constitucionais, para que não se tornem as mesmas desinteressantes do ponto de vista de quem as recebe. Na ADIn 1800-DF (Plenário, j. 06.04.1998, rel. Min. Nelson Jobim), o Ministro Marco Aurélio Mello assim afirmou:
 
“Ora, podemos interpretar esse preceito pinçado e potencializando o vocábulo “delegação”, olvidando normas contidas na própria Constituição? Olvidando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que são ínsitos à Constituição Federal, à Lei Maior do País? Penso que não (…). A referência à delegação não me sensibiliza, porque o serviço deve ser exercido e sabemos que existem despesas; sabemos que, no caso, os Cartórios devem contratar empregados, devem funcionar em um certo local, e, portanto, têm despesas a serem executadas. Indispensável é que haja uma fonte de receita. O Estado, pela simples circunstância de lançar mão da delegação, não pode, sob pena de desrespeitar-se o texto da própria Carta da República, chegar ao ponto de inviabilizar o serviço que esta delegação visa a alcançar ”. (grifos nossos)
 
Mais recentemente, o CNJ, em decisão proferida nos autos do Pedido de Providências nº 0006123-58.2011.2.00.0000, que teve como relator o Conselheiro Fabiano Silveira, expressamente afirmou a necessidade de observação de tal equilíbrio para a concessão de gratuidades. Senão vejamos:
 
a percepção de emolumentos pelo notário, como contraprestação do serviço público que o Estado presta ao particular, por seu intermédio, é condição imprescindível para o titular fazer frente a despesas de custeio da Serventia, de remuneração de pessoal e de investimentos, além da retirada dos próprios dividendos a que faz jus pela delegação que lhe foi outorgada. Nesse sentido, a adequada prestação de serviços, que depende da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das serventias extrajudiciais, passa a demandar, de fato, a contrapartida do Poder Público pelos custos dos atos oferecidos gratuitamente aos cidadãos" (grifo nosso).
 
Na decisão proferida nos autos acima mencionados, datada de 06/05/2014, o CNJ recomendou a vários Tribunais de Justiça do país que elaborassem propostas legislativas para garantir o ressarcimento integral de todos os atos gratuitos praticados pelos Serviços de Registros e de Notas em razão de inúmeras previsões legais de gratuidade, como era o caso da previsão do antigo CPC a respeito das escrituras públicas de separação, divórcio e inventário e partilha.
Acontece que tais propostas nunca saíram do papel, ao menos no que se refere aos atos notariais objeto deste artigo. Pior situação se verificava em relação aos estados de Goiás, Amapá, Roraima e Paraíba, por exemplo, que sequer possuíam sistema de compensação aos Registradores Civis das pessoas naturais dos custos com a realização de atos gratuitos relativos à emissão de registro civil de nascimento e de certidão de óbito, como também, no tocante aos reconhecidamente pobres, à habilitação para o casamento e outros necessários ao exercício da cidadania (alguns estados permanecem sem qualquer ressarcimento de tais atos até os dias de hoje !!!).
No estado de São Paulo a Lei Estadual 11.331/02 estabeleceu a arrecadação de recursos destinados à compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e à complementação da receita mínima das serventias deficitárias (artigo 19, alínea “d”), geridos pelo Sindicato dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo – SINOREG/SP, por força do Decreto 47.589/2003. Tal lei, no entanto, nada estabelece a respeito de atos notariais eventualmente declarados gratuitos por lei.
Por todas as razões ora expostas, em boa hora veio o Novo Código de Processo Civil, que corrigiu o equívoco corrigido pela legislação anterior, e ao tratar das escrituras públicas de separação e divórcio, no art. 613, e das escrituras públicas de inventário e partilha, no art. 733, não reproduziu as antigas previsões de gratuidade de tais atos, e nem os citou nominalmente ao tratar da gratuidade do acesso à justiça (arts. 98 a 102). Ainda que o CNJ não tenha, até o momento, alterado a Resolução nº 35, antes mencionada, cristalino nos parece que a norma regulamentar em questão, no artigo que estabelece tais gratuidades, não mais conta com suporte legal que lhe dê fundamento[4].
Assim, a despeito dos respeitáveis entendimentos contrários[5], em nosso sentir, foram revogadas pelo Novo Código de Processo Civil as gratuidades antigamente concedidas em relação às escrituras públicas de separação, divórcio e inventário, que haviam sido equivocadamente criadas e nada justificava sua manutenção.
O principal argumento daqueles que defendem a gratuidade seria a aplicação do art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, que garante assistência jurídica integral e gratuita aos economicamente hipossuficientes. Ocorre que os serviços notariais (assim como os registrais), embora públicos, não são prestados pelo Estado, como já dissemos, mas por particulares, que são obrigados a gerenciar toda a prestação de tais serviços por sua conta e risco. A percepção integral dos emolumentos, portanto, é regra que se impõe entre o Estado delegante e o particular delegado, para que haja viabilidade na prestação dos serviços em questão.
Todas as vezes que o Estado queira tornar gratuito algum ato cujo exercício tenha delegado a particulares, deve estabelecer a imediata contrapartida, isto é, a forma de ressarcimento desta gratuidade ao titular dos serviços notariais e de registro. Nas palavras de SANDRO MACIEL CARVALHO, “os encargos decorrentes das gratuidades não podem ser carreados discriminatoriamente aos notários e registradores. Eles devem necessariamente ser suportados pelo Estado” [6].  
Ao mesmo tempo em que se deve garantir a todos, em especial aos hipossuficientes, os direitos sociais, de cidadania, preconizados pela Constituição Federal, bem como o acesso à Justiça, é dever do Estado, como ente delegante, garantir os direitos individuais dos delegatários destes serviços, entre eles o do equilíbrio econômico-financeiro da delegação, a que antes fizemos referência. É perfeitamente possível que ambos os direitos sejam respeitados e observados, sem prejuízo a quem quer que seja.
Felizmente o Colégio Notarial do Brasil – Seção de São Paulo, ao elaborar o Enunciado nº 10/2016, baseado nas mesmas razões aqui expostas, entendeu que: “não há gratuidade nas escrituras relativas aos atos decorrentes da Lei 11.441/2007, salvo aqueles praticados em cumprimento de mandados judiciais, cujo benefício for expressamente determinado pelo Juízo (art. 98, §1º IX do Novo Código de Processo Civil c/c Item 76 do Capítulo XIII das NSCGJ/SP)”.
Também não se sustenta o argumento de que a inexistência de gratuidade para a lavratura de escrituras públicas de separação, divórcio e inventário impede os hipossuficientes de atingirem tais desideratos, já que poderiam se socorrer da via judicial, na qual é garantida a gratuidade de todos os atos e procedimentos a tais pessoas. E lembre-se, a atividade Judiciária é prestada pelo próprio Estado, que a mantém com recursos públicos (com importante auxílio, aliás, das próprias serventias extrajudiciais, que, no estado de São Paulo, repassa ao Tribunal de Justiça parte considerável dos seus emolumentos). Aqui, pois, a criação e a manutenção de gratuidades não traz qualquer prejuízo ao prestador dos serviços, que é o mesmo Estado que as concedeu.
Vale lembrar que o próprio Estado, através de sua Defensoria Pública ou dos advogados nomeados em razão de convênios de prestação jurídica gratuita à população hipossuficiente, só promove separações, divórcios e inventários na via judicial, ou seja, o próprio Estado impede os hipossuficientes de recorrerem à via extrajudicial não tem condições de arcar com os honorários advocatícios do profissional que é essencial para a lavratura de tais escrituras. É até ilógico dizer que aquele que não pode contratar advogado particular não acesso à gratuidade de emolumentos nos casos de separação, divórcio ou inventário extrajudicial (porque o Estado não lhe provê esta via quando lhe fornece assistência jurídica gratuita), mas o que contrata diretamente tais profissionais (e paga por seus serviços) pode valer-se da gratuidade em questão.
Em suma, ou o Estado cria formas de ressarcimento dos atos que pretende sejam gratuitos na atividade notarial, ou o acesso à via extrajudicial, nos procedimentos não contenciosos, fatalmente ficará restrito àqueles que possuam meios para arcar com os emolumentos respectivos. E isso não se afigura inconstitucional ou discriminatório. Isso não impede o acesso à Justiça e à assistência jurídica gratuita, ainda possíveis na via judicial.  É apenas o justo; o necessário a quem presta, por si e sob responsabilidade pessoal, serviços que o Estado nunca prestará com a mesma diligência, rapidez e perfeição, arcando com todos os custos inerentes à atividade que lhe foi delegada. Não se pode aceitar que o Estado faça cortesias com o chapéu alheio.
 

[1] Separação, Divórcio e Inventário por Escritura Pública – Teoria e Prática.  São Paulo: Método, 2015, p. 23.
[2] Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[3][3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro., São Paulo: Malheiros, 2003.
[4] Nesse sentido: PAIVA, João Pedro Lamana. Gratuidade Emolumentar no Novo CPC in Direito Registral e o Novo Código de Processo Civil. Coordenador: DIP, Ricardo, Coord. Rio de Janeiro: Forense, p. 170-194.
[5] Por exemplo: NERY Jr., Nelson & NERY, Rosa Maria de A. Comentários ao Código de Processo Civil – Novo CPC. São Paulo:RT, 2015, p. 1433; KUMPEL, Vitor Frederico. A gratuidade de escrituras de separação e divórcio.  Artigo disponível em http://www.cnbsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTI1ODk=&filtro=1. Acesso em 20/12/2016.
[6] Os Emolumentos e o equilíbrio econômico-financeiro in Direito Notarial e Registral Avançado. Coordenadores: YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato, FIGUEIREDO, Marcelo & AMADEI, Vicente de Abreu. São Paulo: RT, 2014, p. 93-114.

*Gustavo Casagrande Canheu é Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Município do município de Ibirá, São Paulo.  Graduado em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto, especialista em Direito Tributário pelo IBET e mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto. Professor Universitário.
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O presente artigo é uma reflexão pessoal do colunista e não a opinião institucional do CNB-CF.