carregando ...
logo-menu Notários
logo-whatsapp WhatsApp

Artigo: Questões sobre vaga de garagem na atividade notarial e registral imobiliária – Rafael Ricardo Gruber

Rafael Ricardo Gruber*
 
               O condomínio edilício é uma espécie especial de condomínio, em que cada condômino tem uma parte de propriedade exclusiva e uma fração sobre as partes comuns do edifício. O condomínio edilício é tratado na doutrina como uma espécie de ficção jurídica. As vagas de garagem, em condomínio edilício, admitem diversas configurações jurídicas, com respaldo especialmente no art. 2º da lei 4.591/64 e nos artigos 1.331§1º e 1.339§2º do Código Civil.
                Faz-se necessário, na atividade de qualificação notarial, identificar adequadamente o regime jurídico a que estão submetidas as vagas de garagem, a fim de se admitir ou não a prática de um negócio jurídico como doação, venda e compra ou mesmo locação de uma vaga de garagem. Lavrada a escritura pública por tabelião, ao registrador imobiliário cabe também a atividade de qualificação do título e, com qualificação positiva, cabe ao registrador definir a melhor técnica para escrituração nos livros do registro de imóveis.
                A definição quando ao regime jurídico que rege a questão das vagas de garagem no condomínio edilício é realizada usualmente pelo incorporador, no memorial de incorporação, ou ainda, pelos condôminos por ocasião da instituição e especificação do condomínio. Quanto às possíveis espécies de regime jurídico para as vagas de garagem, vale mencionar a boa síntese realizada pela 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo em julgamento de dúvida, que assim descreve as possíveis formatações jurídicas para as vagas de garagem, citando Ademar Fioranelli (2001) e Flauzilino Araújo dos Santos, (2011):
(a) garagem de uso comum (ou em garagem coletiva): a garagem é uma das coisas de uso comum do prédio; não tem matrícula própria, e comumente vem descrita, na instituição e especificação de condomínio, com a expressão “pode-se estacionar um veículo na garagem coletiva com (ou sem) auxílio de manobrista”; Segundo Flauzilino Araújo dos Santos, "uma vaga sem delimitação ou sem demarcação, constituindo-se apenas no direito de ocupar o espaço do carro, na garagem, é portanto, uma vaga indeterminada. Nos cálculos efetuados segundo as regras fixadas pela ABNT, as áreas correspondentes a essas vagas na garagem são tratadas como área de uso comum de divisão não proporcional"; (b) acessório da unidade autônoma: pode ser determinada ou indeterminada; não tem matrícula própria, e na matrícula da unidade autônoma a área da vaga vai descrita com a área total, ou separadamente (= uma descrição para a área da unidade autônoma, e outra para a da vaga de garagem); (c) vinculada a uma unidade autônoma: pode ser determinada ou indeterminada; é acessório da unidade autônoma, mas, além disso, também está vinculada a ela unidade autônoma; não tem matrícula própria, e na matrícula da unidade autônoma a área da vaga vai descrita com a área total, ou separadamente; (d) unidade autônoma: para tanto, a vaga tem de possuir saída para via pública, diretamente ou por passagem comum, e ainda é necessário que: (1) a cada espaço corresponda fração ideal do terreno e das vias comuns; (2) a dependência do edifício em que esteja a vaga tenha sido construída segundo as regras urbanísticas aplicáveis a um imóvel autônomo; (3) demarcação efetiva; (4) designação numérica; (5) descrição na especificação do condomínio, com área, localização e confrontações; (6) possibilidade material de construir-se algum tipo de parede-meia, a qual, entretanto, pode deixar de fazer-se por conveniência de manobras. Os atributos de domínio de uso exclusivo (área, numeração, fração) e mesmo a existência de uma matrícula não são suficientes para afirmar que em certo caso se trate de própria e verdadeira unidade autônoma (e há casos de vagas indeterminadas para as quais erroneamente se abriram matrículas); e) a garagem como um todo pode ser uma única unidade autônoma.
               
Em decisões da 1ª VRP da Capital proferidas pela Dra. Tania M. Ahualli e pelo então juiz daquela vara Dr. Josué Modesto Passos foi esclarecido que para a alienação de vaga de garagem há dois critérios relevantes, que envolvem o direito civil e os princípios registrários: a) quem é o comprador da garagem; b) qual é a configuração jurídica da garagem.
A primeira questão é analisada sob o comando do art. 1.331§1º do Código Civil, que dispõe que as unidades de garagem não poderão ser alugadas ou alienadas para pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio. Em decisão de 2014, a 1ª VRP entendeu que há uma exceção a tal regra: se for o caso de edifício-garagem, ou estacionamento vertical, poderia haver alienação da garagem sem observância de autorização expressa na convenção.
As disposições legais para que pessoas estranhas ao condomínio adquiram vaga de garagem no condomínio edilício passaram por alterações importantes nas últimas décadas: na regência do art. 2º§2º da Lei 4.591/64 era proibida a venda para estranhos ao condomínio; com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o art. 1.339§2º passou a ser admitida a venda a estranhos, desde que esta faculdade constasse no ato constitutivo do condomínio e a ela não se opusesse a assembleia geral; e, com a alteração da redação do art. 1.331§1º em 2012, passou a ser admitida a venda para estranhos desde que simplesmente conste tal autorização na convenção do condomínio, não sendo mais necessária assembleia.
Portanto, neste primeiro requisito, para a aquisição de vaga de garagem para estranhos ao condomínio, basta que a convenção de condomínio tenha texto que autorize tal negócio. Isso deve ser objeto de qualificação pelo tabelião para a lavratura da escritura pública – exigindo-se certidão da convenção de condomínio registrada no Livro 3 do registro de imóveis -, e será novamente objeto de qualificação pelo registrador por ocasião da apresentação do título para registro. É importante mencionar que a qualificação do registrador levará em conta a situação da autorização (ou não) na convenção de condomínio no momento da apresentação do título para registro, ante o princípio tempus regit actum.
A segunda questão, sobre a natureza da garagem no condomínio se deve à necessidade de especialidade objetiva para que possa haver alienação de imóvel com a transmissão de direitos reais.
Conforme Dra. Tania Mara Ahualli, para a regularidade da alienação de uma vaga de garagem é necessário que se atente a qual espécie ela pertence e, além disso, só é possível a alienação se a vaga de garagem possuir especialidade suficiente para constituir objeto de direito real, o que não ocorre quando ela for de uso comum (garagem coletiva); for acessória de unidade autônoma, ou vinculada a unidade autônoma, mas não existir delimitadamente, ou não possuir descrição independente (dentro da matrícula da unidade autônoma, ou em matrícula própria); ou constituir, como um todo, única unidade autônoma, e a vontade de alienar não partir da unanimidade dos condôminos.
Para que seja possível alienar, é necessário que ela tenha especialidade objetiva própria. Dr. Josué Modesto Passos, em decisão da 1ª VRP em 2013, esclareceu que é possível a alienação de garagem que esteja descrita na mesma matrícula do apartamento (como unidade autônoma ou acessória), mas é essencial que a descrição seja em separado do apartamento, com área e fração ideal específica da vaga de garagem, ainda que na mesma matrícula.
No registro de imóveis, a técnica indica diferentes procedimentos registrais conforme a espécie jurídica da vaga alienada: 1º) se a vaga for objeto de matrícula autônoma, simples registro nesta matrícula após a qualificação. Aplica-se o art. 108 do CC, e se exige o tributo de transmissão; 2º) se acessória do apartamento, com descrição individualizada que permita a especialidade objetiva, Dr. Narciso Orlandi, em palestra proferida, assim detalhou o procedimento: apresentado o título, após qualificação praticam-se os seguintes atos: a) averbação na matrícula do vendedor quanto ao desfalque, para “desligar” o direito à vaga, abatendo a fração ideal, e mencionando o número da matrícula do imóvel do adquirente; b) averbação na matrícula-mãe, pois há uma alteração na instituição do condomínio, mas afirma Dr. Narciso que não precisaria de unanimidade (art. 1.351 do Código Civil), pois em nada afeta o direito dos demais condôminos não envolvidos no negócio; c) registro na matrícula do imóvel do adquirente, mencionando o título formal e título causal, o alienante, a unidade e a matrícula, o direito adquirido e o acréscimo de fração ideal do terreno; 3º) se for uma matrícula para todas as unidades, em que o condômino tenha fração ideal da matrícula, seria possível a alienação de sua fração ideal, como se fosse um condomínio comum; mas neste caso seria necessário respeitar o direito de preferência dos demais condôminos, e a vaga não seria certa e determinada, mas uma simples fração, que manteria a mesma característica da vaga (coletiva, interdeterminada, etc.) que o vendedor possuía.
Entretanto, caso a área da garagem esteja descrita de forma não individualizada (misturada com demais áreas comuns), ou ainda com a área privativa, sem especialidade objetiva, fica inviável a lavratura da escritura e o registro do negócio translativo de direitos reais apenas dos direitos da vaga de garagem, já que esta fica juridicamente ligada, de forma indissolúvel, à unidade autônoma de que é integrante (apartamento, sala, etc.).
Atento à legislação e a jurisprudência administrativa e jurisdicional, cabe ao tabelião a atividade de qualificação do regime jurídico da vaga e especialidade objetiva da vaga de garagem para aferir sobre a possibilidade de lavratura da escritura pública de negócios jurídicos em que tais vagas sejam negociadas. E ao registrador de imóveis compete a qualificação dos títulos apresentados, com o registro daqueles que estiverem em conformidade com os princípios registrais e o regime jurídico, neste caso, com a especial atenção à autorização para alienação para terceiros, se for o caso, e a existência de especialidade objetiva suficiente, neste caso, com o manuseio das técnicas registrais para permitir a perfeita atualização das matrículas envolvidas e também da matrícula-mãe do condomínio edilício, se for o caso.
Assim atuando, o tabelião e registrador asseguram a segurança aos negócios jurídicos e aos direitos de propriedade, harmonizando a segurança jurídica dos registros públicos com a operabilidade do tráfico imobiliário.
 
* Rafael Ricardo Gruber é Tabelião Titular do 2º Tabelião de Notas e Protesto de Botucatu-SP. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil.  Contato: rrgruber@gmail.com

_____________________________________________________________________________________
O presente artigo é uma reflexão pessoal do colunista e não a opinião institucional do CNB-CF.