A Constituição de 1988 é um marco no que tange as relações de família, uma vez que, diferentemente de todas as Constituições brasileiras anteriores, que dispunham que a família legitima se constituía apenas pelo casamento entre homem e mulher, a Constituição de 1988 privilegiou um conceito de família formada por laços afetivos.
Três entidades familiares passaram a contar com expresso reconhecimento no texto constitucional: a família constituída pelo casamento (artigo 226, parágrafo 1º); a união estável entre o homem e a mulher (artigo 226, parágrafo 3º); e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental (artigo 226, parágrafo 4º).
Ao reconhecer outras formas de constituição da família, além do casamento, a Constituição de 1988 constitui o marco de uma importante mudança de paradigma em relação ao conceito de família. O princípio da dignidade humana tornou-se a chave interpretativa a balizar as relações familiares sobre a nova égide constitucional, que proibiu qualquer distinção discriminatória.
Com isso, a legislação e a jurisprudência evoluíram no sentido de proteger não apenas o núcleo matrimonial, como os provenientes de diversos arranjos familiares. O Direito de Família passou por significativas transformações diante da ampliação do conceito familiar e da valorização jurídica do afeto.
Entretanto, o Código Civil de 2002 não foi capaz de acompanhar essa evolução jurídica na proteção dos direitos dos membros dos múltiplos modelos de família, notadamente no tratamento do regime sucessório aplicável aos companheiros e aos cônjuges.
Ao dispor sobre o regime sucessório aplicável ao cônjuge no artigo 1.829 e ao companheiro no artigo 1790, o Código Civil acabou por desequiparar, para fins sucessórios, cônjuges e companheiros, ao outorgar a estes últimos direitos sucessórios distintos e inferiores dos conferidos aos cônjuges, impondo uma hierarquização das entidades familiares totalmente dissonante da previsão constitucional.
Assim encontram-se redigidos os dois dispositivos legais em questão:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Veja-se que o regramento dado pelo Código Civil à sucessão do companheiro de união estável limita sua participação hereditária aos bens adquiridos onerosamente na constância da união. O companheiro só é herdeiro quando for meeiro, já que o caput do artigo 1.790 do CC/2002 exclui da sucessão qualquer bem adquirido gratuitamente pelo falecido ou bem adquirido onerosamente em período anterior à vigência da união estável, o que não ocorre no regime sucessório do cônjuge, regra geral.
Ademais, a ordem de vocação hereditária nos dois regimes é diversa, sendo que o companheiro, quando tem direito a sucessão, recebe quinhão hereditário inferior ao que teria direito se fosse casado com o autor da herança. Constata-se, então, a discrepância implausível e desarrazoada entre o grau de proteção legal do cônjuge supérstite e do companheiro supérstite.
Para exemplificar, imagine-se que pessoa falecida tivesse apenas cônjuge sobrevivente e um irmão. Nesse caso, pela regra do artigo 1.829, o cônjuge herdaria a totalidade da herança. Na mesma situação, se tivéssemos uma convivente em união estável, nos termos do artigo 1.790, a mesma herdaria apenas um terço da herança, ficando todo o restante para o irmão.
Assim, na prática, na maioria esmagadora dos casos reais, as regras do Código Civil, assim como sua interpretação, conferem aos companheiros menor proteção no momento de vulnerabilidade emocional e financeira advindo pelo óbito do convivente do que confere ao cônjuge no mesmo triste momento da vida. Veja-se o desequilíbrio fático advindo do equivoco legislativo em flagrante desrespeito aos ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia.
Diga-se ainda que o Código Civil de 2002 é um retrocesso não apenas diante do regramento constitucional vigente, como diante das legislações infraconstitucionais revogadas pelo próprio código. Após a Constituição de 1988 e antes da edição do CC/2002, o regime jurídico da união estável era definido pelas leis 8.971/94 e 9.278/96. A primeira delas praticamente reproduziu o regime sucessório estabelecido para os cônjuges no CC/1916, vigente à época. A Lei 9.278/1996, ao reforçar a proteção às uniões estáveis, concedeu direito real de habitação aos companheiros, como já era concedido aos cônjuges.
As legislações referentes ao regime sucessório dos companheiros em união estável estavam seguindo até então o padrão de isonomia proposto pela Constituição, padrão esse interrompido pela normatividade prevista no Código Civil de 2002.
Diante da discrepância produzida pelo texto do Código Civil, os tribunais pátrios chegam a conclusões divergentes. Os tribunais de São Paulo e Minas Gerais entendem pela constitucionalidade do artigo 1.790, enquanto o tribunal do Rio de Janeiro manifestou-se pela sua inconstitucionalidade. Por sua vez, devido à importância dessa controvérsia jurídico-constitucional, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral ao tema, no RE 878.694.
Os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia acompanharam voto do relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, que votou pela procedência do recurso interposto, no sentido de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002, tendo em vista que o mesmo traz em seu bojo um regime sucessório prejudicial ao companheiro de união estável em relação ao cônjuge. Apesar de ainda pendente de julgamento final, é possível verificar que o entendimento do Supremo tem se consolidado no sentido da inconstitucionalidade do referido artigo 1.790 do CC/2002.
Para a maioria dos ministros do STF que já se pronunciaram, a regra do artigo 1.790 acaba por trazer uma distinção entre as formas de estabelecimento de família, pelo casamento e pela união estável, distinção que a Constituição de 1988 não fez, estando em claro desacordo com os parâmetros constitucionais estabelecidos.
Assim sendo, a conclusão mais acertada a se chegar é a da não aplicação do artigo 1.790 do CC/2002. Sem uma ponderação sobre a injustiça fática que o mencionado dispositivo perpetra para os companheiros em união estável, ao desequipará-los em relação aos cônjuges, como se merecessem menor proteção jurídica, a aplicação do mesmo fere gravemente o ordenamento constitucional vigente.
Vanessa Miranda Gandra é sócia do escritório Duarte Gandra Sociedade de Advogados, especialista em Direito Público e de Família, com pós-graduação em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes do RJ.
Fonte: ConJur