Artigo – Análise crítica do Provimento Nº 62/2017-CNJ – Por Igor Emanuel

Retrocesso no procedimento do Apostilamento

Foi publicado no dia 17/11/2017 o Provimento nº 62/2017-CNJ que, dentre outras, expressamente revogou as disposições do Provimento nº 58/2016-CNJ.

O novo provimento traz marcantes alterações na antiga regra do apostilamento, e em nosso modesto entendimento representa verdadeiro retrocesso ao procedimento, que desde seu ingresso na seara extrajudicial mostrou-se bastante positivo à sociedade.

Até a edição da Resolução nº 228/2016-CNJ, que entregou o apostilamento às Serventias Extrajudiciais, não era possível delimitar com clareza os métodos de trabalhos perquiridos pelo CNJ, mas a proposta era supostamente simples: informar se o documento era público, autêntico e se tinha validade jurídica no território onde foi emitido.

Posteriormente, o Provimento nº 58/2016-CNJ aclarou a Convenção de Haia e trouxe especificidade ao procedimento e, mesmo com ressalvas e algumas críticas, ainda era possível dar cumprimento ao texto normativo sem grandes reclames de ilegalidade.

Dando cumprimento ao texto do artigo 6º da Convenção da Apostila (originária), a Resolução nº 228/2016-CNJ, também em seu artigo 6º, replicado pelo artigo 5º do Provimento nº 58/2016-CNJ estabeleceu que as SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS são autoridades competentes para a aposição de apostila NO LIMITE DAS SUAS ATRIBUIÇÕES.

Pela redação do artigo tinha-se que o apostilamento estaria adstrito às especialidades de cada serventia extrajudicial. Neste passo, um Registro de Imóveis, só poderia apostilar os documentos do seu ofício típico, um Registro de Título e Documentos só poderia apostilar os documentos do seu ofício típico. De igual forma, o Protesto de Títulos, os Registros Civis das Pessoas Naturais, as Serventias de Notas, também só poderiam apostilar os documentos dos seus respectivos ofícios típicos.

Após muita análise teórica e empírica, por ocasião de outro artigo[1] cheguei a defender que a frase no limite de suas atribuições estaria introduzida no texto da resolução (228/2016) e do provimento (58/2016) de forma equivocada. Entretanto, a redação do Provimento nº 62/2017-CNJ reafirmou cabalmente seu equívoco, seu distanciamento da lei positiva (8.935/94), e agora sim, está explícito a preferência do apostilamento às Serventias Extrajudiciais que detém atribuição de Registro Civil.

Vejamos o que diz o artigo 4º do novo provimento (62/2017):

Art. 4º Os titulares do serviço notarial e de registro são autoridades apostilantes para o ato de aposição de apostila nos limites de suas atribuições, sendo-lhes vedado apostilar documentos estranhos a sua competência.

§ 1º O ato de apostilamento de documentos públicos produzidos no território nacional obedecerá estritamente às regras de especialização de cada serviço notarial e de registro, nos termos da Lei n. 8.935, de 18 de novembro de 1994.

§ 2º O serviço de notas e de registro poderão apostilar documentos estranhos a sua atribuição caso não exista na localidade serviço autorizado para o ato de apostilamento.

§ 3º registrador civil de pessoa natural, ao apostilar documento emitido por registrador sediado em ente da Federação diverso, deverá verificar a autenticidade da assinatura mediante consulta à Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional).

§ 4º notário, ao apostilar documentos emitidos por serviço notarial sediado em ente da Federação diverso, deverá verificar a autenticidade da assinatura mediante consulta à Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (CENSEC).

§ 5º registrador de títulos e documentos e pessoas jurídicas, ao apostilar documentos emitidos por serviço sediado em ente da Federação diverso, deverá verificar a autenticidade da assinatura mediante consulta à Central de Registro de Títulos e Documentos e Pessoa Jurídica (RTDPJBR).

§ 6º registrador de imóveis, ao apostilar documento emitido por registrador sediado em ente da Federação diverso, deverá verificar a autenticidade da assinatura mediante consulta ao Operador Nacional do Registro de Imóveis (ONR).

§ 7º Os notários e registradores também poderão, nos limites de suas atribuições, verificar a autenticidade da assinatura mediante consulta à Central Notarial de Sinal Público (CNSIP).

§ 8º A Corregedoria Nacional de Justiça, em parceria com os notários e registradores, criará central única de banco de dados de assinatura de autoridades públicas.

Note que o objetivo do texto normativo é realmente limitar a atuação das serventias quando da realização de apostilamento adstrito às suas atribuições típicas.

Entendo não haver qualquer margem à interpretação expansiva neste particular, haja vista expressa indicação de que cada Serventia estaria autorizada a realizar os atos de suas competências nos termos da Lei nº 8.935/94.

Entretanto, o regresso, ilegal em nosso entendimento, está na reserva de mercado que fatalmente é imposta pelo provimento. Vejamos.

Considerando que os documentos nacionais, via de regra, só tem validade em âmbito nacional, qual seria o objetivo de se apostilar um documento que não guarda relação com a identidade civil do usuário? Estima-se que 95% dos documentos passíveis e interessáveis ao apostilamento são aqueles oriundos do registro civil (certidão de nascimento, casamento, óbito, etc).

Com a edição do Provimento nº 62/2017-CNJ qualquer serventia que não detenha atribuição de registro civil foi afastada (de fato) do apostilamento.

Não bastante a impropriedade da reserva de mercado, não se pode olvidar a impropriedade jurídica.

Na cultura brasileira, reforçada pela Lei nº 8.935/94, somente os CARTÓRIOS DE NOTAS têm competência (fé pública) para auferir autenticidade de fatos, documentos e assinaturas. Trata-se de regra de competência exclusiva. As disposições dos artigos 6º da Lei não deixam margem à qualquer outra interpretação. Vejamos:

Art. 6º Aos notários compete:
I – formalizar juridicamente a vontade das partes;
II – intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo;
III – autenticar fatos.

Art. 7º Aos tabeliães de notas compete com exclusividade:
I – lavrar escrituras e procurações, públicas;
II – lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados;
III – lavrar atas notariais;
IV – reconhecer firmas;
V – autenticar cópias.

A afirmação supra não quer dizer que as outras serventias não atuam sob o manto da fé pública – sim, atuam. Entretanto, ex lege, só o “Notas” teria condições de atestar a veracidade de documentos e assinaturas, ainda que não sejam de sua própria produção.

Ocorre, data vênia, que o Conselho Nacional de Justiça não tem entendido o apostilamento como autenticação/reconhecimento de firma qualificados. No entanto, essa compreensão do apostilamento é a que deveria firma-se nas estruturas legais das serventias extrajudiciais.

O fato é que o apostilamento, essencialmente, compõe uma espécie aperfeiçoada de autenticação de documentos, onde há conjugação de autenticação de fatos documentados e reconhecimento de assinatura do respectivo emitente. No ato de apostilamento a autoridade certifica a existência do documento em sua origem, certifica sua autenticidade, reconhece e certifica a autenticidade da assinatura do emitente do documento. Com todo respeito aos discordantes, isso é atribuição típica (exclusiva) previstas nos artigos 6º, I e III c/c 7º, IV e V da Lei Federal nº 8.935/94.

Compreendemos que em razão da necessidade de capilaridade do serviço e a existência de um bem maior (a coletividade), fez bem o Notariado em geral em não impugnar as disposições da Resolução nº 228 e do Provimento nº 58, ambos do CNJ, permitindo que outras serventias usurpassem, ainda que parcialmente, sua competência exclusiva.

Mas o fato é que agora o “Notas”, além de ser usurpado, foi flagrantemente privado de sua própria competência primária. Como poderia o “Notas” não praticar atos de autenticar fatos e aferir autenticidade de documentos e assinaturas (apostilamento)?

E vamos além. Toda serventia extrajudicial de alguma forma trabalha com documentos cuja autenticidade é verificada e confirmada para fins de realização de procedimentos distintos (lavratura, registro, averbação). Mas a formalização, exteriorização do reconhecimento de autoria e procedência, necessariamente é exercida pelo Notário por meio de procedimento típico, qual seja: reconhecimento de firma ou sinal público.

Ainda que outras serventias possam validar e reconhecer a legalidade de documentos, inclusive os seus próprios, somente o “Tabelião de Notas” tem em seu card de prerrogativas a possibilidade de transformar aquilo que é abstrato (fé pública) em algo palpável (fé pública externada em um selo de reconhecimento de firma ou de autenticação).

O Provimento nº 62/2017, além de reduzir a atuação do Notário, relativizou o reconhecimento de firma. Pelo novo texto, outros cartórios podem autenticar assinaturas, porém sem emissão de selo. Ora, o reconhecimento de firma caiu em desuso?

Com a edição do Provimento nº 62/2017-CNJ, o fato que exsurge é a interpretação de que o CNJ teria limitado/reservado o apostilamento aos Registros Civis. E nos parece um grande equivoco – pioraria que afeta toda a classe de cartórios extrajudiciais, e em especial o usuário do serviço, que antes bradava por capilaridade e agora se vê refém das limitações trazidas pelo novo provimento.

Quando o CNJ trouxe no Provimento nº 58/2016 o reconhecimento de firma como parte integrante do procedimento do apostilamento, penso que as razões seriam as mesmas pelas quais o reconhecimento de firma existe no ordenamento jurídico: segurança jurídica, inibição de fraudes em documentos privados ou públicos etc.Sem a verificação da autoria da assinatura (e prova de sua verificação através de selo) o sistema do apostilamento ficará muito fragilizado.

Em nossa cultura, o método juridicamente reconhecido para atestar a veracidade da assinatura de uma pessoa ainda é a emissão de selo de reconhecimento de firma por tabelião de notas. Logo, se a previsão do CNJ é que o reconhecimento de firma seja desnecessário, chego a cogitar que o CNJ estaria revogando, ainda que implícita ou inconscientemente, as disposições da Lei nº 8.935/94.

Vale ressaltar que antes mesmo da vigência da Resolução nº 228/2016-CNJ, o procedimento de legalização de documentos realizado pelo Ministério das Relações Exteriores, agora parcialmente superado pela Convenção de Haia[2]já trazia em seu repertório a exigência pelo reconhecimento de firmas das autoridades emitentes dos documentos.

Sob a égide da Resolução nº 228/2016-CNJ e do Provimento nº 58/2016-CNJ, mesmo que o documento público apresentado para fins de apostilamento já contenha o reconhecimento de firma realizado por outra serventia, a Serventia que pretender realizar o apostilamento deveria realizar o reconhecimento do sinal público daquele que antes havia reconhecido a assinatura do emitente do documento, tal como dispõe o artigo 10, § 3º do Prov. nº 58/2016-CNJ. O objetivo da regra, mais coerente em nosso entendimento, é a garantir segurança jurídica às relações e aos documentos passíveis de apostilamento.

Se o novo entendimento esboçado no Provimento nº 62/2017-CNJ prosperar, restará prejudicado o serviço em face do tabelionato de notas com atribuição única e consequentemente em face do usuário do serviço. Isto porque, evidentemente, a maior parte dos documentos a serem apostilados tem origem no registro civil (certidão de nascimento, casamento, óbito, etc), e agora sequer poderiam ser apostilados por notários e detentores de atribuições distintas do registro civil, o que é um absurdo.

Tal como foi redigido, o Provimento nº 62/2017-CNJ causa desalinhamento com a estrutura dos cartórios e implementa flagrante retrocesso ao serviço, cujas consequências serão experimentas pelos usuários do serviço.

Análise constitucional

Com a edição da carta constitucional de 1988, houve uma grande evolução na ordem jurídica no tocante à atividade notarial e registral no Brasil, que ganhou redação própria no artigo 236 constitucional.

A constituição de 1988 surgiu logo após o final da ditadura militar, um período conturbado da historia brasileira, em que militares tinham o comando do governo do país. Com o fim do regime militar, foi necessária a transição do regime a um Estado Democrático de Direito, que se deu por meio da promulgação de uma nova constituição, esta elaborada de forma democrática, conforme a configuração do Estado, preocupada em garantir os Direitos para que não se ocorresse arbitrariedades por parte do Estado.

Por seu contexto histórico, o legislador originário, prevendo que mudanças poderiam ocorrer, acabou por instituir cláusulas pétreas, que resguardam direitos e garantias fundamentais e a forma de Estado, dentre outras, sob o manto da imutabilidade.

Ainda hoje nosso texto constitucional é muito criticado, pois é considerado prolixo, uma vez em que trata de assuntos que, em tese, deveriam ser tratados por normas infraconstitucionais. Mas isto tem um motivo – o contexto histórico em que ela surgiu. Buscou-se resguardar de forma ampla e detalhada  direitos que foram frequentemente violados durante a ditadura militar, o que resultou em uma Constituição Federal extensa. Tal crítica se fundamenta no direito comparado, em que as Constituições são menores, como por exemplo, a Constituição Americana, que com poucos artigos tem se revelado muito mais estável, já que data de 1789.

Conduzindo para o cerne do presente estudo, dentre os assuntos tratados em nossa Constituição, cumpre-nos destacar a separação dos poderes que se apresenta como uma garantia nacional.

Antigos pensadores já acentuavam a importância da limitação do poder político. Isto deveria ser realizado de forma que um poder fosse limitado por outro poder, evitando-se, assim, estabelecer uma autoridade demasiada poderosa, sem freios nem paliativos.

Em Platão, já podemos visualizar esta intenção. Ele foi o primeiro a falar sobre separação das funções da cidade nas instituições, quando este discorreu sobre a Pólis perfeita, afirmando que deveria haver uma distribuição de funções dos entes da comunidade, ou seja, cada pessoa deveria realizar a sua função junto ao grupo social, ficando mais clara essa ideia, inclusive, quando menciona os afazeres dos guerreiros – que deveriam proteger a cidade; dos magistrados – que deveriam governá-la; e dos mercadores – que deveriam produzir e comercializar os bens de consumo. Platão foi o primeiro autor a esboçar a ideia de desconcentração de poder, levantando uma corrente doutrinária baseada no equilíbrio, proporcionado por uma organização política formada por partes, defendendo inclusive uma teoria de que o todo precede as partes. Entendia a realização das funções de cada indivíduo de acordo com as suas atribuições, como sendo o princípio de uma ordem justa, equânime e harmônica. E essa teoria foi trazida para o nosso ordenamento jurídico, não somente na carta de 1988, mas nesta ganhou ainda mais força.

A atual Constituição da República Federativa do Brasil predispõe, em seu artigo 2º, que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Essa classificação, não foi realizada por obra exclusiva de apenas uma pessoa, mas objeto de anos de desenvolvimento teórico e prático realizados por mentes brilhantes, em diferentes momentos da história, que culminaram nesta obra prima de legislação aplicada hoje na maioria das democracias do mundo, conhecido como o princípio da Separação de Poderes, este em Corrente Tripartite.

Trata-se de um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro que o legislador constituinte originário consagrou expressamente na Carta Política de 1988 como cláusula pétrea no artigo 60, § 4º, III, que estabelece: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: […] a separação de poderes”.

No tocante à atividade notarial, a Constituição Federal positiva o serviço público no artigo 236. In verbis:

CF/88, art. 236: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º – Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário;

§ 2º – Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro;

§ 3º – O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses;

Notemos que no parágrafo 1º do artigo acima encontramos redação imperativa no tocante a pratica dos serviços notariais onde temos, dentre outros, que a lei regulará suas atividades.

Notadamente Provimento nº 62/2017-CNJ objetiva regulamentar a atividade do apostilamento no ambiente cartorário (trazida pelo Decreto nº 8.660/15). No entanto, faz mais do que só regulamentar, pois cria atribuição específica distinta daquela já positivada na Lei nº 8.935/94, e segrega as atribuições das serventias utilizando-se de interpretação inversa da lei.

Explique-se: Pelas disposições do novo provimento, cada serventia estaria autorizada a realizar apostilamento de documentos conhecidos do seu ofício, conforme distribuição de atribuição constante da Lei nº 8.935/94. Porém, na parte que lhe convém, inobserva a mesma lei (8.935/94), pois ignora que somente o “Notas” poderia autenticar fatos, reconhecer e autenticar assinaturas. 

Em uma análise constitucional, acrescentamos que o Conselho Nacional da Justiça (CNJ), assim como o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) foram criados pela Emenda Constitucional nº 45/04, representando uma espécie de carro-chefe da assim denominada Reforma do Judiciário. Tratou-se da implementação stricto sensu de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público. O CNJ está especificado no artigo 103-B da Constituição[3], que, exaustivamente,  elenca as atribuições do órgão.

A constitucionalidade lato sensu de ambos os Conselhos já foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal. A discussão que se põe agora diz respeito aos limites do poder regulamentar desses Conselhos, o que implica necessariamente discutir a natureza jurídica de suas resoluções e provimentos, isto é, o questionamento acerca do poder de atos com força de lei.

O cerne da discussão está no parágrafo 4º e inciso I do art. 103-B constitucional.
In verbis:

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

§4º – Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:

I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;

Tendo a mesma ratio, as diretrizes que norteiam ambos os Conselhos são idênticas, registrando-se apenas a especificidade constante no Conselho Nacional de Justiça, que estabelece a competência de zelar pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, enquanto no caso do Conselho Nacional do Ministério Público essa questão não está explicitamente estabelecida. Essa sutil diferença – cujas consequências poderão ter reflexos em outros campos – não significa que haja tratamento diferenciado do constituinte derivado no que diz respeito à legitimidade de “legislar” por parte dos dois Conselhos. Entretanto isso sempre foi muito cara para ambas as Instituições (Poder Judiciário e Ministério Público) – as garantias funcionais e institucionais.

Daí a necessária discussão acerca dos limites para a expedição de “atos regulamentares” (esta é a expressão constante da Constituição para os dois Conselhos). Com efeito, nos parece um equívoco admitir que o Conselho possa, mediante a expedição de atos regulamentares (na especificidade, resoluções, provimentos), substituir-se à vontade geral (Poder Legislativo).

Dito de outro modo, a leitura do texto constitucional não dá azo à tese de que o constituinte derivado tenha “delegado” ao referido Conselho o poder de romper com o princípio da reserva de lei e da reserva de jurisdição.

Como se sabe, o que distingue o conceito de lei dos demais atos é a sua estrutura e função. Leis têm caráter geral, porque regulam situações in abstrato; atos regulamentares (resoluções, decretos, provimentos, etc) destinam-se a concreções e individualizações. Uma resolução ou provimento não pode estar na mesma hierarquia de uma lei, pela simples razão de que a lei emana do poder legislativo, essência da democracia representativa, enquanto os atos regulamentares ficam restritos às matérias com menor amplitude normativa.

Este parece ser o ponto central da discussão. Se a atuação dos membros do Poder Judiciário está regulada em leis específicas (postas no sistema em estrita obediência à Constituição), parece, de pronto, inconcebível que o constituinte derivado, ao aprovar a Reforma do Judiciário, tenha transformado o Conselho Nacional de Justiça em órgão com poder equiparado ao do legislador. Ou seja, a menção ao poder de expedir “atos regulamentares” tem o objetivo específico de controle externo, a partir de situações concretas que surjam no exercício das atividades. Aliás, não se pode esquecer que é exatamente o controle externo que se constituiu na ratio essendi da criação do Conselho.

No Estado Democrático de Direito é inconcebível permitir-se a um órgão administrativo expedir atos (resoluções, provimentos, decretos, portarias, etc) com força de lei, cujos reflexos possam avançar sobre direitos fundamentais, circunstância que faz com que tais atos sejam ao mesmo tempo legislativos e executivos, isto é, como bem lembra Canotilho, a um só tempo “leis e execução de leis[4].

O fato de a EC/45 estabelecer que o Conselho Nacional de Justiça pode editar atos regulamentares não pode significar que este tenha carta branca para tais regulamentações. O Conselho enfrenta duas limitações: uma, stricto sensu, pela qual não podem expedir regulamentos com caráter geral e abstrato, em face da reserva de lei; outra, lato sensu, que diz respeito a impossibilidade de ingerência nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

Presente, aqui, a cláusula de proibição de restrição a direitos e garantias fundamentais, que se sustenta na reserva de lei, também garantia constitucional. Em outras palavras, não se concebe – e é nesse sentido a lição do direito alemão – regulamentos de substituição de leis (gesetzvertretende Rechtsverordnungen) e nem regulamentos de alteração das leis (gesetzändernde Rechtsverordnungen). É neste sentido que se fala, com razão, de uma evolução do princípio da reserva legal para o de reserva parlamentar[5].

Não se pode olvidar outro ponto de fundamental importância. A Constituição do Brasil estabelece no artigo 84, IV, in fine, o poder regulamentar do Chefe do Poder Executivo para expedir decretos e regulamentos para o fiel cumprimento das leis, tudo sob o controle e a vigilância do Poder Legislativo em caso de excesso (art. 49,V) e da jurisdição constitucional nas demais hipóteses. Nesse sentido, fica claro que as exceções para a edição de atos normativos com força de lei (art. 62) e da possibilidade de delegação legislativa (art. 68) tão-somente confirmam a regra de que a criação de direitos e obrigações exige lei ou ato com força de lei, conforme se pode verificar na própria jurisprudência do STF (AgRg n. 1470-7).

Portanto, as resoluções, provimentos e quaisquer outros atos que podem ser expedidas pelo aludido Conselho não podem criar direitos e obrigações e tampouco imiscuir-se (especialmente no que tange às restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivos. O poder “regulamentador” do Conselho esbarra, assim, na impossibilidade de inovar.

As garantias, os deveres e as vedações dos membros do Poder Judiciário estão devidamente explicitados no texto constitucional e nas respectivas leis orgânicas. Qualquer resolução ou provimento que signifique inovação será, pois, inconstitucional. E não se diga que o poder regulamentar (transformado em “poder de legislar”) advém da própria EC/45. Fosse correto este argumento, bastaria elaborar uma emenda constitucional para “delegar” a qualquer órgão (e não somente ao CNJ e CNMP) o poder de “legislar” por regulamentos. E com isto restariam fragilizados inúmeros princípios que conformam o Estado Democrático de Direito.

Por derradeiro, entendemos que regulamentar é diferente de restringir. De outra parte, assim como já se tem a sindicabilidade até mesmo em controle abstrato de atos normativos de outros poderes (leis em sentido material)[6], como provimentos de Corregedorias, etc, muito mais será caso de controle de constitucionalidade a hipótese de o Conselho vir a expedir atos restringindo direitos e garantias pessoais, funcionais, institucionais e criando obrigações[7].

Para Bandeira de Mello, violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Por todo o exposto, registramos nossa irresignação com a edição do Provimento nº 62/2017-CNJ e convidamos à reflexão de quais seriam os objetivos da Convenção da Apostila, e se seria possível distinguir por documentos, dentro de uma mesma classe, autoridades competentes – entendo que não.

São nossas considerações.

Sub censura.

Igor Emanuel da Silva GomesGraduado em Direito pela Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim (2007), Pós/MBA em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (2017), Sócio fundador de Oggioni & Gomes Advogados Associados, Advogado militante, Assessor Jurídico do Colégio Notarial do Brasil – Seção Espírito Santo (CNB-ES), Assessor Jurídico de Cartórios, Colunista do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, Palestrante em Direito Civil Notarial. 


[1] http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=OTcyMA==
[2] Diz-se parcialmente, pois Legalização ainda é realizada pelo Ministério das Relações Exteriores, porém, direcionados àqueles Estados ainda não signatários da Convenção da Apostila.
[3] Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
[4] Cfe. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra, Almedina, 2004, pp. 730 e segs.
[5] Conforme a lição do clássico PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte – Staatsrecht II, 20 ed., Heildelberg: C.F. Müller, 2004, p. 62 e segs, assim como, dentre outros tantos, SACHS, Michael, Verfassungsrecht II. Grundrechte, Berlin-Heildelberg-New York, Springer Verlag, p. 118 e segs.
[6] Nesse sentido, ver STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito. 2ª. Ed.. Rio de Janeiro, Forense, 2004, em especial capítulos 10 e segs; tb. CLEVE, Clemerson Merlin. Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.
[7] A respeito da distinção entre direitos e garantias, bem como do perfil das assim designadas garantias institucionais, v. especialmente SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 5a. ed, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2005.
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