O filho após a Constituição de 1988, os avós e o Provimento 83 do CNJ

Introdução

Após a publicação do Provimento nº 83/2019, do CNJ, que alterou o Provimento nº 63/2017, o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais foi restringido: agora, para reconhecimento socioafetivo de crianças menores de 12 anos de idade, é necessária a via judicial. Também em decorrência do novo provimento, na via extrajudicial, passou a ser possível a inclusão de apenas um ascendente socioafetivo, ao contrário do que ocorria na vigência do Provimento 63/2017, que possibilitava a inclusão de dois ascendentes, desde que por meio de procedimentos independentes.

O Provimento nº 83/2019, do CNJ esclareceu que o ônus da prova da afetividade cabe àquele que requer o registro, tendo sido introduzido rol não taxativo de provas que podem ser apresentadas, se existentes, como: a) apontamento escolar como responsável ou representante do aluno em qualquer nível de ensino; b) inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência privada; c) registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; d) vínculo de conjugalidade, por casamento ou união estável, com o ascendente biológico da pessoa que está sendo reconhecida; e) inscrição como dependente do requerente em entidades associativas, caso de clubes recreativos ou de futebol; f) fotografias em celebrações relevantes; e g) declaração de testemunhas com firma reconhecida (art. 10-A, §2º, do Provimento n. 83 do CNJ). A ausência desses documentos não impede o registro do vínculo socioafetivo, desde que justificada a impossibilidade, cabendo sempre ao registrador civil das pessoas naturais atestar como apurou o vínculo de socioafetividade. Dentre as provas possíveis, não relacionadas no referido Provimento 83, está a escritura pública de reconhecimento da parentalidade socioafetiva, como defende Flavio Tartuce.

Se o filho tiver entre 12 e 18 anos de idade, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento. Se for maior de 18 anos de idade, o próprio filho deverá requerer o reconhecimento socioafetivo, em conjunto com o genitor.

O mais importante para o presente artigo, foi a determinação feita pelo Provimento 83/2019 de atuação do Ministério Público em qualquer causa envolvendo a paternidade sociafetiva. Não houve restrição às hipóteses envolvendo pessoa menor de 18 anos de idade, de modo que o Registrador Civil sempre deverá encaminhar o procedimento ao Ministério Público, para parecer. Se o parecer for desfavorável, o Oficial do Registro Civil não poderá dar prosseguimento ao pedido extrajudicial, devendo arquivar o procedimento. Já se o Ministério Público deixar de se manifestar, como é possível, tendo em vista a sua independência, poderá o Registrador Civil dar prosseguimento ao pedido extrajudicial.

2 A decisão proferida pelo Ministério Público de Belo Horizonte/MG em um caso de reconhecimento de paternidade socioafetiva

Em caso concreto de pedido extrajudicial de reconhecimento de maternidade socioafetiva, foi um Registrador Civil surpreendido com a seguinte determinação do Ministério Público:

Sr. Oficial, o Ministério Público requer que o pedido de reconhecimento socioafetivo seja requerido e assinado por  xxxxx e xxxxx, avós afetivos. (excluímos o nome dos envolvidos)

Sim, o Ministério Público, para dar prosseguimento ao pedido extrajudicial de reconhecimento de maternidade socioafetiva, exigiu que os avós socioafetivos, genitores da mãe socioafetiva, comparecessem concordando com o pedido. Trata-se de determinação sem qualquer fundamento legal e, como demonstraremos, que fere a Constituição Federal, trazendo um tratamento jurídico diferente ao filho somente por ser socioafetivo.

Essa determinação do Ministério Público nos fez lembrar do procedimento para adoção que havia antigamente, antes da promulgação da Constituição de 1988.

Naquela época, não havia uma preocupação com os interesses do adotando, de modo que não existia vínculo algum entre o adotado e a família adotiva, mas apenas com os adotantes em si. É o que constava expressamente no art. 376, do Código Civil de 1916, in verbis:

Art. 376. O parentesco resultante da adoção (art. 336) limita-se ao adotante e ao adotado, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais, á cujo respeito se observará o disposto no art. 183, ns III e V. (sem grifos no original)

Em 1965, foi publicada a Lei nº 4.655, na qual havia previsão de que o vínculo de adoção se estendesse à família dos legitimantes, desde que os seus ascendentes dessem adesão ao ato de adoção, mas, ainda assim, na sucessão não concorria com filho legítimo superveniente à adoção. É o que previa o art. 9º, abaixo reproduzido:

Art. 9º O legitimado adotivo tem os mesmos direitos e deveres do filho legítimo, salvo no caso de sucessão, se concorrer com filho legítimo superveniente à adoção (Cód. Civ. § 2º do art. 1.605).

1º O vínculo da adoção se estende à família dos legitimantes, quando os seus ascendentes derem adesão ao ato que o consagrou.

2º Com a adoção, cessam os direitos e obrigações oriundos, da relação parentesco do adotado com a família de origem. (sem grifos no original)

É surpreendente que há tão pouco tempo tenha existido uma disposição legal tão contrária ao que hoje se compreende como o correto. O direito de família avançou muito no último século e a percepção da família como ambiente de amor, não apenas decorrente dos vínculos biológicos e não mais voltada para a proteção do patrimônio, substituiu o entendimento que havia antes:

[…] só há muito pouco tempo o Estado Brasileiro voltou seus olhos para os interesses das crianças e dos adolescentes, ranço de uma concepção legislativa que não enxergava além do homem contratante, patriarca e proprietário. (RIBEIRO; SANTOS E SOUZA, 2012, P. 29)

A Constituição Federal de 1988 determina, em seu art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem o direito à vida, à dignidade, ao respeito, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Depois de 1988, tanto a adoção quanto qualquer outro procedimento de reconhecimento de filiação obrigatoriamente tem como objetivo o atendimento dos interesses da criança ou do adolescente. Filho é filho, sem qualquer designação que o diferencie, não podendo haver qualquer tratamento discriminatório. Foi deixado para trás o individualismo que existia nas relações familiares:

O tratamento específico do tema infância e juventude, postando crianças e adolescentes como sujeitos (e não como objetos) do direito, evidencia uma emancipação cultural e social de nosso tempo, alcançando esses indivíduos à definitiva condição de cidadãos. (RIBEIRO; SANTOS E SOUZA, 2012, p. 30 e 31).

 

Leia o artigo na íntegra clicando aqui

 

Autoras:
Gabriela Franco Maculan Assumpção – Graduanda em Direito pela PUC/MG. Foi Oficial Substituta no Cartório de Registro Civil e de Notas do Distrito do Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Estagiária de Direito na JHCG Advocacia.

Isabela Franco Maculan Assumpção – Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-graduanda em Direito Inglês e mestranda em Direito Internacional Público. É Oficial Substituta no Cartório de Registro Civil e de Notas do Distrito do Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Autora de diversos artigos na área do Direito Civil e Direito Notarial.

Letícia Franco Maculan Assumpção – Graduada em Direito pela UFMG, pós-graduada, mestre e doutoranda em Direito. Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Diretora do Instituto Nacional de Direito e Cultura – INDIC. Professora e co-coordenadora da Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral na parceria INDIC-CEDIN. Vice-Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais e Diretora do Recivil e do CNB/MG. Autora dos livros Notas e Registros, Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil e Usucapião Extrajudicial, além de diversos artigos na área do direito notarial e registral.

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