Passamos a vida lutando pelo direito de escolher, opinar e expressar vontades. Faz sentido abrir mão disso quando o fim se aproxima? A quem você delegaria o poder de decidir em seu lugar, caso estivesse internado num hospital, sem chance de cura e capacidade de raciocínio?
a) Ao marido, à mulher ou aos filhos que estarão exaustos e com as emoções em frangalhos?
b) Ao primo distante que veio dar uma força à família, mas sequer sabe para qual time você torce?
c) Ao médico que vai tentar medidas heroicas e inúteis com medo de ser acusado de omissão?
d) Ao hospital que prolongará sua estada enquanto for possível engordar a conta com remédios, cânulas, sondas, pacotes e pacotes de algodão e gaze a preços vitaminados?
Muita gente tem percebido o disparate e registrado, oficialmente, desejos e instruções para o final da vida. De janeiro a junho deste ano, 256 pessoas registraram o chamado testamento vital nos cartórios do Brasil. No ano passado inteiro, foram lavrados 548 documentos. Os estados com maior número de registros são São Paulo (377), Mato Grosso (86) e Rio Grande do Sul (53).
A tendência é de crescimento, segundo o Colégio Notarial do Brasil. Em 2012, ano em que o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou a questão, houve apenas 167 registros no país. O CFM determinou que os médicos respeitem a vontade do paciente incapacitado de se manifestar, caso ele tenha se preocupado em deixá-la registrada previamente.
No meio jurídico, os especialistas preferem chamar esse tipo de documento de Diretivas Antecipadas de Vontade. Isso porque testamento só produz efeito quando a pessoa morre. Algo diferente do documento em questão, que dá instruções sobre o final da vida.
Por enquanto, a maioria dos que procuram um cartório para registrar instruções viveu a experiência dolorosa de ver a internação prolongada de um amigo ou parente. “São pessoas que viveram os conflitos que essa situação gera e não querem deixar esse peso para a família”, diz Andrey Guimarães Duarte, diretor da seção São Paulo do Colégio Notarial do Brasil.
Apesar do aumento da procura pelo documento, ainda há muita desinformação em torno do que significa assinar um testamento vital. Ele é uma declaração do cidadão a respeito dos tratamentos que deseja receber no caso de doenças crônicas ou acidentes graves sem possibilidade de recuperação.
O paciente pode optar por receber apenas tratamentos paliativos ou agressivos e intervencionistas. Se estivesse na fase terminal de um câncer e o coração deixasse de bater, gostaria de ser reanimado, entubado e mantido vivo com a ajuda de aparelhos?
O documento pode ser feito por qualquer pessoa com mais de 18 anos, sem a necessidade de advogado. Basta procurar um cartório. No estado de São Paulo, o documento custa R$ 326,27 (o preço varia de acordo com as regiões do país). O que o paciente solicita no testamento vital prevalece sobre os desejos da família.
Não se trata de um pedido de eutanásia (a indução intencional da morte, a pedido do paciente), prática proibida no Brasil. O que o documento garante é a ortotanásia – a possibilidade de ter uma morte digna, deixando a natureza seguir o seu curso.
Falta conhecimento sobre a relevância desse tipo de registro. “A classe médica não foi informada adequadamente sobre a importância do documento”, diz o advogado Ernesto Lippmann, autor do livro Testamento vital: o direito à dignidade (Editora Matrix).
Grande parte dos hospitais não tem um procedimento padrão. Se o paciente chegar com o testamento vital, ele será anexado ao prontuário? Se ele quiser assinar o documento durante a internação, haverá um formulário para isso? O acesso será fácil?
Nada disso está claro. “Muitas instituições não se preocupam em considerar o testamento vital porque sabem que não existe lei sobre o assunto no Brasil”, diz a advogada Luciana Dadalto, administradora do site www.testamentovital.com.br.
“A resolução do CFM foi extremamente benéfica, mas falta um movimento para a aprovação de uma lei específica, nos moldes do que já foi feito na Espanha, em Portugal ou no Uruguai”, diz Luciana.
Os americanos, que são bastante pragmáticos, enumeraram as condições da boa morte. As principais são: não ter sofrimento, estar rodeado pelas pessoas amadas, ter autonomia e permitir que a doença siga seu curso sem interferências extraordinárias da ciência.
No Brasil, evitamos o assunto. A maioria dos médicos passa mais de seis anos na faculdade e não tem uma única aula para discutir a morte e o morrer. Não são os únicos a passar ao largo dessa conversa. Fugimos todos, inutilmente, da única certeza que podemos ter na vida.
Fonte: Revista Época