PROVIMENTO CG N° 14/2013
Adicionar os subitens 30.4.1. e 30.4.2. à Seção II do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.
O Desembargador JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições legais;CONSIDERANDO as características da sociedade moderna, a evolução do direito objetivo, a abertura do sistema jurídico e a necessidade de aperfeiçoamento do texto da normatização administrativa;
CONSIDERANDO a relevância do procedimento de dúvida registral, a finalidade da função pública notarial, a democratização do acesso à justiça e o escopo de aprimorar as decisões judiciais no âmbito administrativo;
CONSIDERANDO o exposto, sugerido e decidido nos autos do processo n.º 2012/00124108 – DICOGE 1.2;
RESOLVE:
Artigo 1º – Adicionar os subitens 30.4.1. e 30.4.2. à Seção II do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, com as seguintes redações:
30.4.1. O Juiz Corregedor Permanente, diante da relevância do procedimento de dúvida e da finalidade da função pública notarial, poderá, antes da prolação da sentença, admitir a intervenção espontânea do tabelião de notas que lavrou a escritura pública objeto da desqualificação registral ou solicitar, por despacho irrecorrível, de ofício ou a requerimento do interessado, a sua manifestação facultativa, no prazo de quinze dias de sua intimação.
30.4.2. A intervenção tratada no subitem anterior independe de representação do tabelião por advogado, de oferecimento de impugnação e não autoriza a interposição de recurso.
Artigo 2º – Este provimento entra em vigor na data em que publicado.
São Paulo, 29/04/2013.
(03, 07 e 09/05/2013)
Processo nº 2012/124108 – CAPITAL – COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL – CONSELHO FEDERAL – CNB/CF e CNB/SP
Parecer nº 143/2013-E
TABELIÃO DE NOTAS – Apresentação do título com origem notarial para registro – Tolerância – Atuação como mensageiro – Suscitação de dúvida – Requerimento – Falta de legitimidade – Intervenção de terceiros e assistência – Vedação – Precedentes do Conselho Superior da Magistratura – Participação espontânea no procedimento de dúvida ou mediante provocação da autoridade judicial – Amicus curiae – Admissibilidade – Democratização do procedimento administrativo – Atividade de colaboração voltada ao aperfeiçoamento das decisões judiciais – Modificação pontual do capítulo XX das NSCGJ – Cabimento – Princípio da Informalidade – Acolhimento parcial da proposta formulada pelo CNB/CF e pelo CNB/SP.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:
O Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) e a seccional do Estado de São Paulo (CNB/SP) apresentaram proposta com o intuito de assegurar ao notário participação no procedimento de dúvida, como terceiro interessado, escorados
na função notarial atribuída aos tabeliães de notas e na instrumentalidade da garantia registraria, e, por conseguinte, sugeriram a edição do seguinte texto normativo (fls. 02/06):
É facultado ao tabelião requerer e realizar ante os registros e repartições públicas em geral e perante quaisquer pessoas as gestões e diligências convenientes ou necessárias ao preparo, à validade e à eficácia dos atos notariais, requerendo o que couber, podendo, inclusive, requerer a suscitação ou participar do procedimento de dúvida, a pedido da parte interessada. (grifei)
Ao manifestar-se, a Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (Anoreg/SP) acedeu à proposta agitada, ao acrescentar, em proveito da normatização sugerida, a conclusão alcançada no 2.º encontro do 5.º Ciclo do Café com Jurisprudência, organizado pela Escola Paulista da Magistratura (EPM), sob a coordenação do Desembargador Ricardo Henry Marques Dip, ocorrido em 21 de setembro de 2012 (fls. 16/19).
Já a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (Arisp) opinou contrariamente, porque, com fundamento em antigos precedentes do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, sustenta a inadmissibilidade
da participação do tabelião de notas no procedimento de dúvida, quer requerendo a suscitação, quer impugnando as razões do Oficial, quer interpondo recurso contra a sentença de procedência (fls. 24/34).
O CNB/SP, por fim, manifestou-se a respeito das ponderações da ARISP (fls. 40/44).
É o relatório. OPINO.
Conforme o artigo 198, caput, da Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 19731, o apresentante, inconformado com juízo negativo de qualificação registral ou porque impossibilitado de satisfazer a exigência formulada, tem a faculdade de requerer, ao
oficial de registro, a suscitação de dúvida.
O apresentante do título não será necessariamente o interessado em seu registro, aquele que sofrerá os efeitos jurídicos do ato registral pretendido, com legitimidade para impugnar a dúvida suscitada e recorrer da sentença proferida no procedimento
administrativo correspondente.
A compreensão que assimilava o apresentante ao interessado, então considerados vocábulos sinônimos2, encontra-se, nos dias atuais, superada.3
Lapidar, nesse sentido, a lição retirada de acórdão modelar lavrado, no dia 14 de março de 1986, nos autos da Apelação Cível n.º 5.227-0, relator Desembargador Sylvio do Amaral:
… A Lei dos Registros Públicos só confere o direito de recurso contra decisão judicial – assim como o próprio direito de participação no processo de dúvida – ao interessado na anotação recusada, isto é, a quem detenha interesse, juridicamente protegido, na efetivação do registro. Isso, evidentemente, não ocorre com o Tabelião que lavrou a escritura impugnada; pode ele, como “qualquer pessoa” (art. 217, lei 6.015), ser o “apresentante” do título, mas não é interessado no registro pretendido.
É certo, como relata o parecer de fls. 46, que o Conselho já teve ocasião de adotar, na interpretação da lei, entendimento mais lato do vocábulo “interessado”, para incluir nesse conceito o mero “apresentante” a que se refere a Lei dos Registros Públicos. Mas, esse entendimento não é o melhor, e deve ser reconsiderado – nos termos, aliás, de
decisões subseqüentes do Conselho, indicadas pelo M. Juiz Corregedor.
Na sistemática da Lei dos Registros Públicos deve-se entrever uma fase inicial de “apresentação” do título ao Oficial ou ao Juiz Corregedor, seguida, nesta hipótese, de outra fase, distinta daquela, de processamento da Dúvida conseqüente. O apresentante do título dirige-se ao Oficial do Registro e, se este recusar atendê-lo, provoca a decisão do Juiz Corregedor do Cartório, requerendo ao Oficial que suscite Dúvida. Este incidente é submetido a procedimento próprio – em que, entretanto, o mero apresentante já não tem qualidade para intervir.
A Lei distingue inequivocamente entre o “apresentante” e o “interessado” no registro. Ao apresentante do título, confere apenas a capacidade praticar os atos que são conceitualmente inerentes à sua condição: apresentar o título para registro e provocar a decisão do Juiz, se não se convencer das razões de recusa do Oficial (art. 198); ou desistir do registro pretendido (art. 206), tornando sem efeito a apresentação.
Se houver a provocação da decisão judicial, só o interessado no título terá legitimidade para intervir no processamento da Dúvida (art. 200), para recorrer da decisão do Juiz (art. 202) e para executar a coisa julgada (art. 203, II), arcando com as despesas, se vencido (art. 207).
Da dicotomia conscientemente feita pelo legislador, resulta claro que a capacidade do apresentante termina com a provocação do pronunciamento judicial – sem direito de participar do procedimento resultante de seu requerimento e, muito menos, de manifestar, mediante recurso, sua inconformidade com a decisão do Juiz Corregedor do Cartório.
Aliás, como a Dúvida não passa, em essência, de consulta formulada ao Corregedor pelo Oficial do Registro – também a ele o sistema legal nega legitimidade para recorrer ou, até, para intervir no procedimento depois de apresentada a inicial. E assim sendo, como acentua o parecer do M. Juiz Corregedor, representaria contra-senso conferir a lei direito de recurso a quem lavrou a escritura e não dar igual tratamento ao serventuário que a considerou não registrável.
Por todas essas razões, não conhecem da apelação. (grifei)
Nada obstante o comando emergente do artigo 217 da Lei n.º 6.015/19734, o apresentante – cuja rogação é indispensável para a instauração do procedimento de dúvida (princípio da instância) –, não pode, a partir de uma interpretação sistemática do
ordenamento jurídico em vigor, ser o tabelião de notas que lavrou a escritura pública exibida para registro.
A atividade tabelioa, malgrado não se restrinja à função pública notarial (audiência das partes, consultoria e assessoramento jurídicos, qualificação das manifestações de vontade, documentação dos fatos, atos e dos negócios jurídicos e atos de autenticação), e contemple a prática de atos direcionados à consecução dos atos notariais, não abarca a apresentação do título para inscrição imobiliária.
Trata-se de ato estranho à atividade notarial, sequer oportunizado pela norma extraída do parágrafo único do artigo 7.º da Lei n.º 8.935, de 18 de novembro de 1945, pois não se caracteriza como gestão ou diligência necessária ou conveniente ao preparo do ato notarial: realmente, é ato posterior ao seu aperfeiçoamento.
Mais: a apresentação do título com origem notarial é incompatível com a atividade tabelioa. O notário está privado de agir como representante dos interessados. Haveria, aqui, com efeito, desempenho de atividade inconciliável com a função pública notarial exercida (é incompatível a assunção da função tabelioa com a de representante), com potencialidade para avançar sobre campo funcional reservado à advocacia.
Além disso, por atuar em confiança das partes, o tabelião não pode, sem autorização delas, levar o título a registro; agir como gestor de negócios, intermediário; atuar por conta e no interesse do dominus negotii.
Agora – apenas para argumentar –, admitida fosse tal atuação, à luz de uma visão estreita do artigo 217 da Lei n.º 6.015/19736, atomizada e dissociada do todo, em desdouro da fidúcia característica da atividade notarial, incumbiria ao tabelião,por força dos termos expressos da regra focalizada, suportar as despesas correspondentes ao ato registral, o que se afigura sem sentido e reforça a vedação sustentada.
De todo modo, é verdade, a Egrégia Corregedoria Geral da Justiça tem tolerado a atuação do tabelião como “mero portador da escritura” ao oficial de registro.7
Admite-se, porque favorável ao interessado, decorrência natural da atividade exercida e, atualmente, com mais razão, diante das complexidades da vida contemporânea, que o notário aja como mensageiro, núncio, desenvolvendo, em exaurimento dos serviços prestados, uma função meramente material, ao encaminhar o título notarial ao Registro de Imóveis.
Todavia, isso não implica sua equiparação à figura legal do apresentante. E sob essa perspectiva deve ser absorvida a faculdade de apresentar o título a registro, reconhecida ao tabelião na Apelação Cível n.º 5.227-0, cujos principais trechos foram acima reproduzidos. Caso contrário, seria inarredável, à luz do artigo 198, caput, da Lei n.º 6.015/19738, admitir sua legitimidade para requerer suscitação de dúvida, refutada, há tempos, e inclusive no precedente a que se fez alusão, pela jurisprudência administrativa do Tribunal de Justiça de São Paulo.9
Por sua vez, e na trilha do raciocínio desenvolvido, o tabelião não se qualifica como interessado legitimado a impugnar a dúvida e a interpor recurso contra a decisão que a julgou. Eventuais interesses de fato, econômicos, morais, subjetivados na pessoa do notário, são insuficientes para autorizar sua participação no procedimento administrativo em destaque.
A recusa de registro do ato notarial não repercute sobre a situação jurídica do tabelião. A desqualificação, ao expressar juízo negativo extrajudicial que recai sobre a qualificação notarial, não afeta, por si, sua posição jurídica individual, a sua esfera de direitos e obrigações. Não basta sequer, especialmente diante de seus estreitos limites, para configurar ilícito ou infração administrativa. Da mesma maneira, o julgamento procedente da dúvida, que ocorre na seara administrativa.
A desqualificação registral do título notarial e o julgamento da dúvida não interferem, para fins obrigacionais, indenizatórios, compensatórios e sancionatórios, na situação jurídica do notário, não emascula a sua independência jurídica, não determina a invalidade do negócio jurídico nem a imposição de sanção disciplinar.
Aliás, a regra do artigo 204 da Lei n.º 6.015/1973, em termos peremptórios, e sintomaticamente, prevê: “a decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente.” Assim sendo, sob a ótica exclusiva do interesse jurídico do tabelião, apreendido no seu sentido individual, tradicional do termo, não há justificativa a determinar sua intervenção no procedimento administrativo de dúvida.
Em resumo: o notário não se encaixa na figura do interessado legitimado a impugnar a dúvida suscitada (artigo 199 da Lei n.º 6.015/197310), tampouco na do terceiro prejudicado qualificado a interpor apelação contra a sentença exarada no procedimento de dúvida (artigo 202 da Lei n.º 6.015/197311), particularmente porque, insisto, os efeitos do ato registral visado e da desqualificação registral são-lhe, sob o ponto de vista tradicional, juridicamente irrelevantes.
Também por isso, ou seja, porque a existência ou a inexistência de direitos e obrigações do tabelião independe da qualificação registral do ato notarial e do julgamento da dúvida, não lhe é oportunizado o ingresso, como assistente, no procedimento administrativo, onde, firmado o dissenso entre o registrador e o interessado, inexiste lide.
A esse respeito, consoante reiteradamente decidido pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, não se admite, no procedimento de dúvida – ressalvado o recurso manejado pelo terceiro juridicamente prejudicado –, a assistência ou a intervenção de terceiros.12
Contudo, com temperamentos, convém facultar, ao tabelião, a participação no procedimento de dúvida, não, porém, realço, na condição de interessado, de terceiro juridicamente interessado legitimado a interpor recurso ou assistente, enfim, sob a roupagem de figuras tradicionais, mas na posição de amicus curiae, de alguém que – jurista no exercício de atividade pública pautada pela confiança do Estado, profissional do direito “com vocação primacial ao que é justo”13 –, pode contribuir, com os seus conhecimentos, para a remoção dos obstáculos postos ao registro do título que lavrou e, por conseguinte, para a segurança jurídica, a eficácia e publicidade do negócio jurídico por meio dele formalizado.
Com a atualização e a revisão do capítulo XIV das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, quando se buscou, a par da intensificação da responsabilidade do notário, valorizar a atividade tabelioa, acentuou-se a qualidade de jurista do tabelião. Encorajou-se o desempenho da qualificação notarial. A propósito, reproduzo trechos do parecer atrelado à edição do Provimento CG n.º 40/2012:
O tabelião não é um escrevinhador, simples redator de documentos, um batedor de carimbos, um chancelador. É profissional do direito, jurista titular de fé pública, cuja atividade – fundada na independência e na confiança do Estado e das pessoas – é preordenada a garantir a segurança jurídica e a paz social. É um agente público, malgrado não titularize cargo nem ocupe emprego público. Exerce atividade fundamental à prevenção de conflitos. (…).Uma ótica exclusivamente burocrática, asséptica, neutra, da atividade notarial – com destaque para a solenidade típica de certos atos e negócios jurídicos, a forma exigida como veículo da exteriorização da manifestação de vontade e a preconstituição da prova –, desacompanhada da visão centrada na segurança jurídica, finalidade precípua da função notarial, enfraquece, mediatamente pelo menos, a posição do tabelião. Desvaloriza, em detrimento da justiça preventiva e da paz social, a função desempenhada por ele. (…).
Dentro desse contexto, a proposta de atualização e revisão do capítulo XIV das NSCGJ evidencia a importância, a relevância da atividade tabelioa, valoriza o tabelião, coloca em destaque o amálgama entre a função de jurista e a de gestor de serviço público e insere-os no atual quadro normativo, enriquecido pelas diretrizes do Código Civil de 2002 (eticidade, socialidade e operabilidade14), pelo declínio do dogma da vontade e pelo surgimento de novos princípios contratuais (a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do contrato e função social do contrato15).
Em tempos pós-modernos, na sociedade de risco na qual vivemos – identificada pela pluralidade de atores, pela despersonalização e assimetria das relações jurídicas, pela hipercomplexidade, pela velocidade das comunicações, pela industrialização e pelo avanço tecnológico –, a função tabelioa encontra campo propício à sua valorização, ao incremento de seu prestígio, pois escorada na confiança, no valor que “viabiliza o funcionamento do sistema, na medida em que reduz a complexidade social ao desprezar as variáveis abstratas, distantes e complicadas.”16 (grifei)
Nessa linha, justifica-se a inovação proposta. Isto é, requerida a suscitação de dúvida registral e, assim, insinuada a irresignação do interessado quanto às exigências impeditivas do assento registral, revela-se oportuno – em prestígio da independência jurídica do tabelião, de sua vocação para o aprimoramento do direito, da dessacralização dos registros públicos e com vistas à eficácia da lei, à tutela da segurança jurídica e à prevenção de litígios –, franquear-lhe a participação no procedimento de dúvida.
É razoável, também, porque a medida, ao lado de enriquecer a discussão rumo à tutela do interesse público e democratizar o debate em uma sociedade marcadamente plural, afina-se com vossa concepção desburocratizante, instrumental do registro público, funcionalizado em prol da segurança jurídica, e atende ao interesse do administrado, daquele sobre cuja situação jurídica se irradiarão os efeitos positivos do ato registral colimado, o que é essencial para a flexibilização procedimental sugerida.
Com propriedade, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, quando tratam do princípio da informalidade (ou do informalismo), integrante da base principiológica do processo administrativo, ressaltam: “este princípio melhor seria identificado pela designação ‘informalidade em favor do administrado’, pois é este o titular da garantia da forma, sendo que somente em seu benefício pode haver alguma informalidade.”17
Destarte, a menor solenidade e rigidez do processo administrativo, estendida ao procedimento administrativo próprio da dúvida registral, possibilita, no caso vertente, a solução planeada, inclusive porque idealizada para resguardar a segurança jurídica, prevenir litígios, aperfeiçoar o processo decisório e facilitar o registro do título.
O que projeta o tabelião para dentro do processo administrativo e define a sua atuação – cooperativa, no plano da formação do convencimento judicial, impossibilitada de ampliar o objeto do dissenso e imparcial, no sentido de desvinculada dos interesses e direitos subjetivados no interessado –, é um interesse jurídico diferenciado, que não está centrado em uma pessoa, então captado, com perfeição, por Cassio Scarpinella Bueno, que o denomina institucional:
… o interesse que motiva (que legitima) a atuação do amicus curiae em juízo é “jurídico”. Mas é um “jurídico” diferenciado, que não pode ser confundido ou assimilado com o interesse que conduz um “assistente” ou outro “terceiro” qualquer a um processo entre outras pessoas para nele intervir das variadas formas que o nosso direito, tradicionalmente, lhe reconhece. Não se trata, isto é certo, de um interesse jurídico subjetivado. Mas se trata, com essas ressalvas, de um interesse que é jurídico. É um interesse jurídico porque é previsto, porque é agasalhado, porque é tutelado, pela ordem jurídica considerada como um todo. E, se é assim, no plano do “direito material”, não há razão para que não o seja também no plano do direito processual. É interesse jurídico, portanto.
Afirmar que o interesse que motiva (que legitima) a atuação do amicus curiae em juízo é “público”, por sua vez, resolve poucos dos nossos problemas. (…). O interesse que motiva (que legitima) a atuação do amicus curiae, com essas ressalvas, entretanto, é público.
Se, pois, é certo, que há algo de “diferente” no jurídico e no público que legitimam a intervenção do amicus curiae, convém que a ciência o designe diferentemente. Justamente para evidenciar que, do ponto de vista do direito, são coisas diversas. E por isso – só por isso – é que propomos o emprego do nome “interesse institucional” como designativo do interesse que justifica, legitima, o ingresso do amicus curiae.
O interesse institucional, contudo, é interesse jurídico, especialmente qualificado, porque transcende o interesse individual das partes. E é jurídico no sentido de estar previsto pelo sistema, a ele pertencer, e merecedor, por isso mesmo, de especial proteção ou salvaguarda. …
Nesse sentido, o “jurídico” do interesse deve ser capturado não mais a partir de uma específica relação jurídica deduzida em juízo, mas, diferentemente, a partir de seu estado “bruto” na sociedade ou, quando menos, em um específico grupo suficientemente organizado ou, ainda, no próprio Estado, nas suas variadas funções e facetas, mas sempre voltado ao atingimento da finalidade pública “primária”. …18 (grifei)
Em outras palavras: a concepção tradicional de interesse jurídico – aquela que, egoísta, informa as intervenções de terceiro previstas no Código de Processo Civil e, no procedimento de dúvida, define o interessado e legitima a participação do terceiro recorrente, desautorizando, em compensação, a do tabelião –, convive com a ideia evoluída de interesse jurídico, associada à satisfação de interesses públicos primários19, adequada para orientar a atuação de novas figuras processuais, como a do amicus curiae, e justificar, nessa qualidade, o ingresso do notário, voltado à melhor aplicação do direito objetivo, em sintonia com sua finalidade, a sua missão institucional.
Não há, sob esse prisma, incompatibilidade entre a vedação da intervenção de terceiro – reservada a possibilidade do recurso do terceiro juridicamente interessado –, e a prospectiva previsão normativa da participação do notário como amicus curiae.
Nota-se hipótese idêntica, inspiradora, portanto, no tratamento legalmente dispensado à ação direta de inconstitucionalidade: a par de impedir a intervenção de terceiros, por força do caráter objetivo do processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade, admite a participação do amicus curiae (artigo 7.º, caput e § 2.º, da Lei n.º 9.868/199920).
E sobre a questão, pinço passagens eloquentes do voto condutor do eminente Ministro Celso de Mello, proferido no julgamento do Agravo Regimental na Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 2.130-3, em 03 de outubro de 2001:
É certo – não obstante as considerações que venho de fazer – que a regra inovadora constante do art. 7º, § 2º, da Lei n.º 9.868/99 abrandou, em caráter excepcional, o sentido absoluto da vedação pertinente à intervenção de terceiros, passando, agora, a permitir o ingresso de entidades dotadas de representatividade adequada no processo de controle abstrato de constitucionalidade, sem conferir-lhes, no entanto, todos os poderes processuais inerentes aos sujeitos que ordinariamente possuem legitimação para atuar em sede jurisdicional concentrada.
(…).
A regra inscrita no art. 7º, § 2º da Lei n.º 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae – tem por objetivo pluralizar o debate constitucional, permitindo que o Supremo Tribunal Federal venha a dispor de todos os elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia.
Vê-se que a aplicação da norma legal em causa – que não outorga poder recursal ao amicus curiae – não só garantirá maior efetividade e legitimidade às decisões deste Tribunal, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que esse mesmo amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo – como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e de inquestionável significação.
A progressiva abertura do sistema jurídico pátrio, a constitucionalização do direito processual e a consolidação da visão de direito processual constitucional21 importam a democratização do acesso à justiça, a transformação qualitativa do princípio do contraditório, robustecido por sua perspectiva cooperativa22, a aceitação de outra noção de interesse jurídico (não excludente da tradicional), a admissão do amicus curiae e, particularmente, na situação versada, respaldam a contribuição do notário no procedimento de dúvida registral, com escopo instrutório, como fonte de informações dirigida à obtenção da decisão mais justa.
Sob outro enfoque, o dinamismo, as contradições e a complexidade da multifacetada sociedade moderna – sociedade em profunda transformação, sociedade da modernidade fluida, segundo Bauman, sociedade de risco, nas palavras de Ulrich Beck, palco de incertezas e ambivalências –, a proliferação de leis especiais, diplomas setoriais e a disseminação da técnica legislativa das cláusulas gerais aconselham, igualmente, em busca da decisão ótima, a participação cooperativa do tabelião.
A forte impactação social das decisões proferidas no procedimento de dúvida, o seu intenso efeito persuasivo, sua aptidão para influenciar julgamentos futuros e a sua potência normativa, vinculativa, são outros fatores que legitimam a atuação do
notário como amicus curiae.
Por outro lado, a participação do amicus curiae no processo administrativo não é estranha, consoante perspicazmente anotado por Cassio Scarpinella Bueno, que, após lembrar o estabelecido nos artigos 31, 32 e 33 da Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e nos artigos 28, 29, 30 e 31 da Lei Estadual n.º 10.177, de 30 de dezembro de 1998, pondera:
… O que releva destacar é que, também no “processo administrativo”, a figura de um terceiro catalogável de amicus curiae passa a ser, na lógica da própria lei, um colaborador importante para o proferimento de decisões que levem em consideração os interesses “dispersos” pela sociedade, nem sempre devidamente apreciados pela manifestação daqueles diretamente envolvidos ou diretamente afetados pela atuação da Administração Pública.23
Em suma, impõe permitir ao tabelião de notas, na qualidade de amicus curiae – independentemente de representação por advogado, e desde que antes da prolação da sentença –, a intervenção espontânea no procedimento de dúvida, ou mediante solicitação do MM Juiz Corregedor Permanente, de ofício ou após provocação do interessado, com dedução de manifestação voltada à aptidão registral do ato notarial que lavrou, em harmonia com a finalidade da função notarial.
A proposta, de resto, lastreada na espontaneidade, na facultatividade da participação do tabelião de notas e na limitação de seu poder de atuação, prestigiada, ainda, pela textual exclusão de sua legitimidade recursal, é coerente com a concepção do amicus curiae, além de conciliar, a partir de um balanceamento dos bens em conflito, os valores constitucionais tutelados por meio da intervenção com as garantias de efetividade e celeridade processuais.
Pelo todo aduzido, o parecer que respeitosamente submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência propõe a) o acolhimento parcial da proposta apresentada pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) e pela sua seccional do Estado de São Paulo (CNB/SP), com admissão da participação do tabelião de notas no procedimento de dúvida registral nos termos acima sugeridos, e b) a edição de Provimento regrando a atuação do notário como amicus curiae, conforme minuta que segue anexa.
Sub censura.
São Paulo, 25 de abril de 2013.
(a) LUCIANO GONÇALVES PAES LEME
Juiz Assessor da Corregedoria
DECISÃO: Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, acolho parcialmente a proposta do CNB/CF e do CNB/SP para admitir a participação do tabelião de notas no procedimento de dúvida, na qualidade de amicus curiae.
Edite-se Provimento, conforme a minuta exibida, publicando-o, por três vezes, em dias alternados, no DJE, acompanhado, apenas na primeira delas, do parecer no qual amparado.
Encaminhem-se cópias do parecer, desta decisão e do Provimento ao CNB/CF, ao CNB/SP, à Anoreg e à Arisp.
Publique-se.
São Paulo, 29 de abril de 2013.
(a) JOSÉ RENATO NALINI
Corregedor Geral da Justiça
NOTAS
1. Artigo 198. Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimi-la, obedecendo-se ao seguinte: (…).
2.CSM – Apelações Cíveis n.º 1.675-0, n.º 1.630-0 e n.º 2.178-0, julgadas, respectivamente, em 28.02.1983, 25.03.1983 e 02.05.1983, relator Desembargador Bruno Affonso de André; CSM – Apelação Cível n.º 3.553-0, julgada em 03.12.1984, relator Desembargador Marcos Nogueira Garcez.
3.CSM – Apelação Cível n.º 504-6/2, julgada em 18.05.2006, relator Desembargador Gilberto Passos de Freitas.
4. Artigo 217. O registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa, incumbindo-lhe as despesas respectivas.
5. Artigo 7º. (…).
Parágrafo único. É facultado aos tabeliães de notas realizar todas as gestões e diligências necessárias ou convenientes ao preparo dos atos notariais, requerendo o que couber, sem ônus maiores que os emolumentos devidos pelo ato.
6 Cf. nota 4.
7.CSM – Apelação Cível n.º 3.553-0, relator Desembargador Marcos Nogueira Garcez, julgada em 03.12.1984.
8 Cf. nota 1.
9 CSM – Apelação Cível n.º 3.553-0, relator Desembargador Marcos Nogueira Garcez, julgada em 03.12.1984. Neste precedente, aliás, constou não ser possível admitir “que o tabelião, arvorando-se em procurador do adquirente, exerça verdadeira advocacia administrativa, requeira dúvida e a impugne em nome próprio.”
10 Artigo 199. Se o interessado não impugnar a dúvida no prazo referido no item III do artigo anterior, será ela, ainda assim, julgada por sentença.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6216.htm – art201§1
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6216.htm – art202
11 Artigo 202. Da sentença, poderão interpor apelação, com os efeitos devolutivo e suspensivo, o interessado, o Ministério Público e o terceiro prejudicado.
12 Apelação Cível n.º 176-0, relator Desembargador Adriano Marrey, julgada em 02.10.1980; Apelação Cível n.º 510-0, relator Desembargador Bruno Affonso de André, julgada em 14.09.1981; Apelação Cível n.º 782-0, relator Desembargador Bruno Affonso de André, julgada em 23.08.1982; Apelação Cível n.º 23.780-0/7, relator Desembargador Antônio Carlos Alves Braga, julgada em 11.05.1995; Apelação Cível n.º 22.417-0/4, relator Desembargador Antônio Carlos Alves Braga, julgada em 31.08.1995;
Apelação Cível n.º 964-6/0, relator Desembargador Ruy Camilo, julgada em 16.06.2009; Apelação Cível n.º 1.163-6/2, relator Desembargador Reis Kuntz, julgada em 20.10.2009.
13 Ricardo Dip. Prudência notarial. São Paulo: Quinta editorial, 2012. p. 33.
14 Miguel Reale. História do novo Código Civil. In: Coleção biblioteca de Direito Civil: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. Miguel Reale e Judith Martins-Costa (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 37-42. v. 1.
15 Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado. Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 137-147. p. 140.
16 Carlos Nelson Konder. A proteção pela aparência como princípio. In: Princípios do direito civil contemporâneo. Maria Celina Bodin de Moraes (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 111-133. p. 113.
17 Processo administrativo. 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 125. Compartilham, entre outros, o mesmo entendimento, Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo brasileiro. 19.ª ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 589), Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 11.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 364-365), Diogenes Gasparini (Direito Administrativo. 6.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 785) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo. 13.ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 500-501).
18 Amicus Curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 459-461.
19 Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, o interesse público primário é aquele “que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos.” (Curso de Direito Administrativo. 11.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 32).
20 Artigo 7.º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
§ 1º. (vetado).
§ 2º. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
21 Segundo Cândido Rangel Dinamarco, “também é dos tempos modernos a ênfase ao estudo da ordem processual a partir dos princípios, garantias e disposições de diversas naturezas que sobre ela projeta a Constituição. Tal método é o que se chama direito processual constitucional e leva em conta as recíprocas influências existentes entre a Constituição e a ordem processual.
De um lado, o processo é profundamente influenciado pela Constituição e pelo generalizado reconhecimento da necessidade de tratar seus institutos e interpretar a sua lei em consonância com o que ela estabelece. De outro, a própria Constituição recebe influxos do processo em seu diuturno operar, no sentido de que ele constitui instrumento eficaz para a efetivação de princípios, direitos e garantias estabelecidos nela e muito amiúde transgredidos, ameaçados de transgressão ou simplesmente questionados.” (Instituições de Direito Processual Civil. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 53. v. I).
22 Cf. Cassio Scarpinella Bueno, op. cit., p. 86-90.
23 Op. cit., p. 104.