Do desquite à separação em cartório, mudanças alteraram conceito e facilitaram a vida de casais que não conseguem mais viver em harmonia
Em 40 anos o divórcio passou por várias mudanças legais e hoje oferece mais facilidade para se dissolver uma união e, para quem deseja, recomeçar uma nova família. Questões como a necessidade de acordo sobre partilha e guarda dos filhos podem ser relegadas, o processo continuar na Justiça e, ainda assim, o divórcio ser concedido. Com essas mudanças, o Brasil passou a ser um dos mais liberais nesse assunto e também abriu espaço para que diversos tipos de famílias fossem aceitos legalmente.
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a advogada e ex-magistrada Maria Fuiza Póvoa Cruz diz que os avanços nessas quatro décadas foram muito importantes. Antes da lei do divórcio, aprovada em 1977, apenas o casamento era reconhecido como forma de se constituir família. “Antes dessas mudanças na lei, havia o desquite. Se o desquitado se relacionava com outra pessoa, não era esposa ou marido, era um concubinato. Essa pessoa não tinha a proteção legal. A legislação era perversa.”
Foi preciso muito trabalho junto ao Congresso Nacional para que qualquer modelo de família fosse aceito pela lei, segundo explica a presidente do instituto que completa 20 anos em 2017. Aos poucos, outros modelos que já existiam mas não eram reconhecidos, passaram a ser vistos como família de fato. “Não só as famílias homoafetivas, mas as formadas só por irmãos, por pessoas solteiras, as famílias mosaico, que é quando as pessoas já chegam com filhos de outros relacionamentos, entre tantas outras. Isso foi um grande avanço. ”
Depois de aprovada em 1977, a lei passou a permitir o divórcio, mas essa condição ainda era muito difícil de ser alcançada. Maria Fuiza explica que, primeiro, era necessário estar desquitados ou separados judicialmente há cinco anos. “E ainda existia a figura da culpa. Geralmente quem queria sair do casamento era considerado culpado. E como muitas mulheres eram dependentes financeiras de seus parceiros, era muito traumático.” O culpado poderia sair do relacionamento sem a guarda dos filhos ou direito a pensão.
CULPA
Depois, o prazo para requerer o divórcio caiu de cinco anos para dois. “Aos poucos essa questão da culpa foi sendo retirada dessas discussões, felizmente” , diz Maria Luiza. Antes da primeira lei do divórcio, a única forma de dissolução do casamento era a morte de um dos cônjuges ou pelo desquite. Nesse segundo caso, o desquitado não poderia se casar novamente porque as leis eram baseadas nos dogmas da igreja católica de que o homem não pode separar o que Deus uniu. O viúvo só poderia se unir a outro viúvo.
MUDANÇA
Há dez anos o divórcio e passou ser feito em cartório. “Isso trouxe uma forma mais rápida de solução dessa situação, preservando a autonomia do casal. O requisito para o divórcio em 2007 passou a ser apenas que fosse amigável e que não houvessem filhos menores ou incapazes”, diz Maria Luiza Póvoa Cruz. Com isso, os procedimentos ganharam mais agilidade e deixou de ser resolvido por juizes. Com um advogado, em qualquer lugar do Brasil, o casal passou a conseguir dissolver a união.
Desde 2010, essa situação foi ainda mais facilitada. Foi quando a Emenda Constitucional 66 foi aprovada e o único requisito para o divórcio é estar casado. “Aboliu-se a culpa porque Estado é laico e quem determina as normas é o Estado e a autonomia do casal. É a responsabilização do casal, para que tenham vida em comum porque se amam e se respeitam.” Mesmo sem consenso sobre partilha ou guarda, o divórcio é realizado e as pendências judiciais são resolvidas no tempo que for necessário.
Advogada na área de família, Leila Camargo lembra que antes das alterações, em muitos casos a decisão sobre o divórcio ficava nas mãos do juiz e nem sempre era concedido caso a medida não preservasse suficientemente os interesses dos filhos ou de um dos cônjuges.
Ela lembra que no processo, para chegar ao “culpado” pela separação, havia a produção de provas, inclusive testemunhai. “A alteração legal foi muito positiva e permitiu menos sofrimento para as partes. Quem quer ficar junto, fica. Quem não quer, se já tentou e não deu certo, não tem porque insistir.”
“Resolvi deixar isso de lado”
A terapeuta holística Helena Assis é separada há 32 anos. Ela não é divorciada porque, quando decidiu seguir um caminho diferente do ex-companheiro, ainda era muito difícil recorrer à Justiça para regularizar a situação. “Havia muitos detalhes que precisavam ser resolvidos para tentar o divórcio na Justiça, então resolvi deixar isso de lado. Mesmo assim devo buscar o divórcio em breve, mas é por uma questão de energia.” Ela se lembra que foi informado do prazo de cinco anos para desquitar, além da necessidade de acordar questões como pensão.
Por conta dos três filhos e três netos, ela mantém convivência com o ex-marido, que já se casou novamente. “Eu não penso em me casar. Estou bem sozinha e não penso em uma nova união. ” Ela entende que, quando um casal se separa, há desgaste para os dois lados, mas que não houve traumas de relacionamentos. “Ninguém erra sozinho. Estar com alguém tem que ser pra valer. Por enquanto, sou minha melhor companhia. Hoje vivo meu melhor momento.”
Já a advogada Fernanda Souza Moreira, de 42 anos, está divorciada há nove anos. Ela não enfrentou dificuldades para a solução do divórcio. Passou pela separação depois de várias dessas mudanças da lei. “Foi amigável e até hoje mantenho um ótimo relacionamento com o pai dos nossos filhos, de 10 anos.” Ela diz que contou com o apoio da família para se restabelecer após o divórcio, mas nunca passou por descriminação. Agora ela se prepara para um novo casamento. Está noiva e se prepara para subir ao altar novamente e formar uma nova família.
Três tipos de economia
Presidente do Colégio Notarial do Brasil (CNB), Paulo Gaiger entende que existem três tipos diferentes de economia com as mudanças na lei do divórcio nos últimos 40 anos.
"Primeiro, se economiza sofrimento e agonia. Quando se alonga o processo, os dois ficam com a vida empacada." Em segundo lugar, Gaiger diz que a economia é de dinheiro para o cidadão. "Como só necessita de um advogado e um cartório, as custas são bem menores que os processos que são decididos judicialmente."
Por fim, o presidente do CNB diz que há economia para o Estado,já que o Poder Judiciário deixa de atender casos simples e que podem ser resolvidos nos cartórios e pode dar prioridade para os assuntos mais complexos, que envolvem conflitos importantes. "Sou favorável à liberdade das pessoas, com todo respeito às religiões, não há banalização do casamento. Não há maneiras de se fundar um casamento numa estrutura fracassada. A autonomia individual, que permite escolher estar junto ou separado, favorece a vida em sociedade."
Ele explica que, caso o casal queira, pode se divorciar e não resolver questões legais e deixar esse assunto para um momento que entender ser oportuno. "Muitas pessoas precisam de um tempo para se restabelecer até querer discutir questões ligadas à antiga união. Isso não impede o divórcio."