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Comarca riograndense autoriza reconhecimento extrajudicial de paternidade socioafetiva

A Comarca de Crissiumal, no Rio Grande do Sul, concedeu o reconhecimento de paternidade socioafetiva de forma extrajudicial a uma família residente na cidade de Palhoça em Santa Catarina. O pai socioafetivo conseguiu registrar a criança como seu filho, mesmo que não houvesse parentesco ou vínculo genético. No registro da criança não consta o nome do pai biológico, apenas o da mãe.

O Juiz de Direito da Comarca de Crissiumal , Diego Dezorzi, autorizou a averbação da paternidade, a partir de procedimento encaminhado ao Judiciário pelo registrador público local. O pai socioafetivo firmou termo de declaração em conjunto com a mãe do menino, no Registro Civil de Pessoas Naturais da Comarca de Palhoça, reconhecendo o menor como seu filho em caráter irrevogável. O documento extrajudicial por instrumento particular foi enviado à Comarca de Crissiumal, onde o menor reside.

O Ministério Público optou por negar o pedido, pela falta de provas do convívio entre as partes, e sugeriu que o expediente tramitasse na cidade de residência dos requerentes, por meio de uma ação declaratória de paternidade. Ainda, observou que não há provimento que regula a medida no Rio Grande do Sul (RS). O magistrado autorizou a averbação do nome do pai socioafetivo de forma extrajudicial. Em sua fundamentação, invocou o Programa Pai Presente, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conforme orientação da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul para adesão e observação do projeto.
Confira abaixo a entrevista do desembargador Jones Figueirêdo, presidente da Comissão de Magistrados de Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Boletim IBDFAM – Como observa a decisão judicial?
JF – A decisão administrativa (extrajudicial) do Juiz de Direito Diego Dezorzi, da Comarca de Crissiumal (RS), autorizando a averbação da paternidade socioafetiva em assento de registro civil, conforta-se na regra do artigo 10, inciso II do Código Civil, segundo a qual “os atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação devem ser averbados em registro público”. Apresenta-se, sobretudo, com elevada carga de sensibilidade social, atenta aos fatos determinantes, no sentido de o Direito deve compatibilizar-se com a realidade fenomênica da vida.

– De notar que a manifestação volitiva, como ato de reconhecimento espontâneo de filho socioafetivo, com anuência da genitora biológica da criança, é ato de vontade irretratável e irrevogável (artigo 1.610 do Código Civil e artigo 26 do Estatuto da Criança e do Adolescente), e sua importância revela-se substancialmente equipotente à relevância da nobreza do ato de adoção. Vale referir que a relação paterno-filial socioafetiva constitui uma forma de parentalidade civil, ou seja, de “outra origem”, diversa da biológica, na forma do artigo 1.593 do Código Civil, como sucede com a adoção.

– Na hipótese, ambas as paternidades socioafetivas são constituídas ex nunc (desde agora), no projeto parental. Quem reconhece a paternidade socioafetiva de filho havido da companheira sem vínculo biológico reconhecido, o recepcionando como filho socioafetivo, projeta uma socioafetividade paterna, como aquele mesmo pai adotante que construirá e consolidará essa qualidade afetiva, a partir de então. Situação idêntica ocorre exatamente com a paternidade ficta do artigo 1.597, inciso V, do Código Civil, onde se presume pai legal aquele que admite o filho havido por inseminação artificial heteróloga e cuja paternidade socioafetiva será constituída doravante. Por certo, não poderá haver distinções nessas espécies de filiação, a tanto se exigir prova de convívio para uma das situações. Todas exaltam e viabilizam um projeto parental.

– Em outra vertente, dir-se-á, todavia, que em existindo paternidade biológica reconhecida, a averbação no assento registral de uma paternidade socioafetiva haverá de exigir também a anuência do pai genético, implicando, nessa consequência, a denominada multiparentalidade concomitante.

– No mais, entenda-se que a anulabilidade do reconhecimento somente teria lugar, nos casos de vício de consentimento, para efeito de desconstituição do ato registral quando se trate de paternidade biológica daquele que a declara sob a presunção de ser o pai. A socioafetiva jamais se desconstituirá.

Boletim IBDFAM – Qual a importância do ato deste pai?
JF – O estado de filiação oriundo do vínculo registral é meramente formal. A verdadeira paternidade será, sempre, substancialmente socioafetiva, extraída que seja do vínculo do afeto, seja por “navegar na cavidade sanguínea”. Em outros termos, como afirmou João Baptista Vilela (1979), há um nascimento fisiológico e, por assim dizer, há também um nascimento emocional. É neste, sobretudo, que a paternidade se define e se revela, nascendo o pai.

– Entretanto, a par de existirem pais biológicos que dão afeto expressivo aos filhos e pais registrais manifestamente socioafetivos, existem pais biológicos em profundo desamor e pais registrais desafetivos. Logo, importam muito em significado de mesma magnitude, a “paternidade bioafetiva”, nutrida por seus vínculos biológicos e afetivos, e a “paternidade socioafetiva”, esta como tal denominada por Luiz Edson Fachin (1992) e exercida pelo liame de uma profunda conexão entre o afeto e a “paternidade responsável” exsurgente de um constante aprendizado de amor paterno-filial posto em ação, sem depender de consanguinidade.
– A importância do ato deste pai, reconhecendo voluntariamente a paternidade socioafetiva que o liga ao filho não biológico, em todos os seus ditames, é a de dizer e consagrar que, antes de jurídica, a paternidade é espiritual. Pai é aquele que se a(pai)xona.

Boletim IBDFAM – Como funciona o processo de reconhecimento de paternidade socioafetiva?
JF – É certo que tem sido permitido o reconhecimento voluntário da paternidade biológica perante o Oficial de Registro Civil, a qualquer tempo, mediante averbação do ato declaratório, no assento respectivo do nascimento do filho reconhecido, conforme tem sido objeto de políticas públicas (Lei nº 8.560/1992, com atualização da Lei nº 12.004/2009) e incentivado por mecanismos de facilitação (Provimentos do CNJ).

– Caso é de estender-se, nas mesmas latitudes, o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva, tendo em vista a igualdade jurídica entre as espécies de filiação (artigo 226 § 6º, da Constituição Federal), quando, com direitos e qualificações idênticos, o filho afetivo resulta de um liame dos fatos da vida no plano íntimo da convivência com o pai referencial. Neste sentido, iniciativa normativa inédita no país veio permitir, com o Provimento nº 09/2013, de 2 de dezembro de 2013, da Corregedoria Geral de Justiça de Pernambuco, que homens registrem filhos não biológicos em cartório. De nossa autoria, quando em exercício interino na Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco (CGJ/PE), o Provimento dispõe acerca do (I) comparecimento pessoal para a declaração (artigo 2º, § 1º); (II) a concordância expressa da genitora ou do filho maior (artigo 2º, §§ 3º e 4º); (III) a qualificação dos dados do requerente, da genitora e do filho (artigos 2º § 3º), e (IV) observadas as normas legais referentes à gratuidade de atos (artigo 8º).

– A simplificação do procedimento do reconhecimento elimina, assim, a necessidade de provocação jurisdicional (que rende processo judicial de média duração) e se apresenta como medida de elevado alcance social, a saber que muitos filhos, sem paternidade biológica preestabelecida nos seus registros, já convivem de forma afetiva com os pais substitutos, em famílias expandidas ou não, e necessitam, por direito personalíssimo, possuírem um referencial de autoridade parental e cuidadora.

– O provimento considerou, em suas diretivas principais, os fundamentos axiológicos do princípio da afetividade e da dignidade da pessoa humana, tendo em conta a amplitude do conceito de família ofertado pela Constituição Federal de 1988. Mais ainda, quando em seu artigo 226 resulta estabelecido que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

– Induvidoso que “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental” (Enunciado Programático nº 06/2013, do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM), os filhos socioafetivos tornam-se os maiores beneficiários, porquanto, para além de uma autoestima elevada, ante a existência de um pai civil (socioafetivo), a sua dignidade como pessoa humana se coloca em nível de igualdade com filhos biológicos, pela igualdade jurídica que congrega todos os filhos.

Boletim IBDFAM – Por que não há uma padronização geral do processo de reconhecimento de paternidade socioafetiva?
JF – Cuido que os primeiros provimentos a respeito do processo de reconhecimento da paternidade socioafetiva estão a indicar as diretivas uniformes que orientarão uma padronização geral a respeito. Urge fazê-la realmente.

– Anota-se que após o pioneiro Provimento nº 09/2013, de 02.12.2013, da CGJ/PE, por mim assinado, outros Provimentos também disciplinam a matéria, a exemplo, por ordem cronológica, dos Provimentos de nº. 15/2013, de 17.12.2003, da Corregedoria Geral da Justiça do Ceará (CGJ/CE); de nº 21/2013, de 19.12.2013, da Corregedoria Geral de Justiça do Maranhão (CGJ/MA); de nº 234/2014, de 05.12.2014, da Corregedoria Geral de Justiça do Amazonas (CGJ/AM); de nº 11, de 11.11.2014, da Corregedoria Geral de Justiça de Santa Catarina (CGJ/SC) e o de nº 36/2014, de 11.12.2014, da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo (CGJ/SP). Todos eles se sustentam nos fundamentos apresentados pelo provimento-matriz pernambucano e trabalham procedimentos idênticos. Caso é dizer que a padronização pode ser feita a partir das referidas experimentações exitosas.

– Demais disso, avanços outros podem ser implementados, a tratar do reconhecimento da paternidade socioafetiva de pessoas com a paternidade biológica já constante no registro. Hipótese essa que somente exigiria a concordância do pai biológico ali mencionado, importando em uma inequívoca multiparentalidade para todos os efeitos legais.

– Por outro lado, cuida-se pensar que a judicialização somente será necessária, quando a um, em ação declaratória de paternidade socioafetiva, por provocação do pai afetivo, se pretenda desconstituir, por prevalência daquela, a paternidade biológica; a dois, quando se pretenda o reconhecimento judicial de uma multiparentalidade existente e controvertida, no plano fático de uma paternidade dúplice.

Boletim IBDFAM – Qual o papel do CNJ neste processo?
JF – Antes de mais, um pressuposto de base oferece um “standard” jurídico ou cláusula geral, no sentido de que as normas consubstanciadas nos Provimentos números 12, 16 e 26 do Conselho Nacional de Justiça, as quais visam facilitar o reconhecimento voluntário de paternidade biológica, devem ser aplicáveis no que forem compatíveis ao reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva. Segue-se, portanto, evidenciado o importante papel do CNJ no trato do tema. Essa premissa é iniludível no sentido de que deva haver uma padronização geral a respeito. Demais disso, como já referido, o disposto no artigo 10, II, do Código Civil, estabelece que “os atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação devem ser averbados em registro público”.
– Desse modo, o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva configura forma desburocratizada a estabelecer a relação paterno-filial fundada na socioafetividade. Para esse fim, o termo de declaração e a ata notarial servem extrajudicialmente para o fim colimado do reconhecimento voluntário.

Boletim IBDFAM – Em quais situações é permitido o reconhecimento extrajudicial de paternidade socioafetiva?
JF – A situação básica e comum será aquela onde não conste em registro civil o nome do pai biológico. O reconhecimento de paternidade pelo pai socioafetivo suprirá a falta daquele.

– O reconhecimento extrajudicial será, portanto, admissível, como corolário lógico de ser urgente atribuir-se paternidade a uma criança, a atender o seu melhor interesse e como princípio de dignidade da pessoa. A propósito, observa-se que, a qualquer tempo, ao reconhecimento voluntário daquele que se apresente como pai biológico sequer tem sido exigido, administrativamente, perante o Registro Civil competente, o exame de DNA para aquele fim. Em ser assim, melhor se apresenta possível, pela via extrajudicial, a declaração espontânea do pai que se declare pai por afeto.

– Bem é certo pensar, afinal, que a vida para ter sentido precisa ter as bases para o sentido da vida. Quanto mais se discute a socioafetividade, em seus efeitos jurídicos, o sentido da vida nos ensina que esses efeitos têm sentido com a própria vida. Como afirmou João Baptista Vilela, oquid específico, que faz de alguém um pai, independentemente da geração biológica, situa-se antes na capacidade afetiva do serviço de amar e servir do que no elemento da procriação, quando esta somente submetida ao fato de gerar e nada mais.

– De tal sentir, não serão desafeições de doutrina minoritária, sem qualquer sentido de fato, que poderão reduzir o sentido da vida que a sociedade também nos ensina. Em menos palavras: socioafetividade é a vida pulsando na sua realidade de afeições, queiram ou não os menos afetivos.

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM com informações do TJ-RS