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Constituição de “empresa de prateleira” não se confunde com falsidade ideológica

Por Sônia Cochrane Ráo
A partir de Representação Fiscal para Fins Penais enviada pela Receita Federal ao Ministério Público, foi instaurado inquérito policial para apurar a suposta prática, por advogados com atuação na área tributária, do crime de falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal) em razão da constituição, em curto espaço de tempo, de algumas “sociedades empresárias, empresas de ‘Participações’ (‘Holding’), porém sem explorar, em nenhuma delas, o seu objeto social, e sendo todas elas sediadas no mesmo endereço, o do escritório de advocacia de ambos, levando a crer tratar-se de mero ‘comércio de CNPJs’”.
Diante da nítida atipicidade da conduta injustamente atribuída aos causídicos, o escritório Ráo, Pires e Chaves Alves Advogados, contratado para representá-los, peticionou esclarecendo, inicialmente, que a aquisição de empresas pode ocorrer basicamente por dois modos: (i) pela constituição de sociedade em nome dos próprios interessados ou (ii) pela transferência de propriedade das cotas (ou ações) de sociedades preexistentes para os novos titulares.
No primeiro caso, exige-se dos futuros sócios o cumprimento de uma série de formalidades que têm por objetivo inserir a nova sociedade no mundo jurídico, tais como o registro de seu contrato social perante a Junta Comercial e a inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), o que costumava — notadamente há alguns anos — demandar tempo considerável.
Conforme notícia divulgada no endereço eletrônico do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas em São Paulo (Sebrae-SP), em outubro de 2012, “o excesso de burocracia dificulta a vida do empreendedor brasileiro. Reunir toda a documentação para se abrir uma empresa no Brasil pode levar até 119 dias. Nos casos menos demorados, é possível finalizar todas as etapas em 49 dias, segundo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC)”.[1]
Um recurso para abreviar essa prolongada tramitação ocorre exatamente por meio da aquisição de empresa já registrada, procedendo-se apenas às adaptações necessárias com relação à sua titularidade, administração, capital social e objeto.
Esse segundo procedimento, normalmente caracterizado pelo uso do que se convencionou chamar “empresas de prateleira”, é o que costuma ser adotado em casos de maior urgência.
As empresas mencionadas na representação fiscal foram, enfim, constituídas com o claro intuito de oferecer aos possíveis interessados instrumentos mais ágeis para que pudessem desenvolver suas atividades, procedendo-se a todos os trâmites legais necessários para que tal instrumento fosse corretamente disponibilizado.
Por outro lado, como registrou a defesa naquele feito, não se ocultou em nenhum momento a titularidade das pessoas jurídicas então criadas, não se podendo extrair de sua inicial inatividade qualquer declaração falsa no sentido empregado pelo artigo 299 do Código Penal.
“Falsidade ideológica”, com efeito, vem definida na legislação pela omissão “em documento público ou particular” de “declaração que dele devia constar”, ou pela inserção de “declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.
Os núcleos típicos certamente não ocorrem quando o que se tem é o registro transparente da constituição de sociedades perante a Junta Comercial com dados completos de seus reais titulares, bem como de ulteriores transferências de propriedade.
Não explorar objeto social não importa em falsidade alguma, tanto porque não se impõe ao titular da sociedade o dever jurídico de efetivamente desenvolvê-lo, como porque tal declaração de finalidade não prejudica direito algum e tampouco cria obrigação ou altera a verdade sobre fato juridicamente relevante.  Declarado o objeto social, delimita-se simplesmente a atuação da sociedade, sem que com isso fique ela obrigada a automaticamente entrar em atividade.
Bem por isso, opinou o Ministério Público Federal pelo arquivamento do procedimento inquisitivo, em manifestação — integralmente acolhida pelo juízo — assim lançada:
“… os investigados se manifestaram, informando que a prática realizada por eles simplesmente auxilia no processo burocrático para a constituição de empresas que, futuramente, serão incorporadas a outros grupos econômicos.
Ora, o não exercício de atividade econômica pela empresa não configura o tipo previsto no artigo 299 do Código Penal, uma vez que não foi omitida nenhuma declaração na constituição das empresas, tampouco inserida declaração falsa.
Além do mais,  as transferências realizadas posteriormente não apresentam sequer indícios de irregularidade.
Conclui-se, assim, que a conduta praticada não apresenta correspondência ao tipo penal investigado.”
Conjurou-se, assim, flagrante injustiça, verdadeira tentativa de criminalizar o regular exercício da advocia.

[1] Disponível em neste link. Acesso em 18 de março de 2014, grifamos.
Fonte: ConJur