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Dissolução societária e penhora de quotas sociais no CPC de 2015 (parte 1)

Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto

Uma séria preocupação leva-me a apresentar aos obstinados estudiosos do Direito, a modo sucinto, algumas questões pontuais que me sobressaltam em matéria de conflitos societários, suficientes, ao que imagino, para recomendar a revisão de várias disposições do Código de Processo Civil de 2015.

Antes de tudo, porém, devo dizer que as observações a seguir são evidenciadas pela militância na advocacia, que revela um Código com normas inadequadas para a atualidade, alheias à prática do dia-a-dia, sem a qual não há como abreviar a prestação jurisdicional. Exemplo disso está na clamorosa ausência de normas para disciplinar adequadamente o processo eletrônico, quando se sabe que, nos dias atuais, urge normatizá-lo com prioridade absoluta para evitar os desencontros que tanto têm prejudicado os jurisdicionados. (Regras pontuais, como a do artigo 246, § 1º, só irão prejudicar sua implantação definitiva.) Também é estarrecedora a vinculação da formação da relação processual a uma audiência prévia de conciliação (mesmo com conciliadores ou mediadores, voltadas exclusivamente para aliviar as tarefas dos magistrados), quando se sabe que o jurisdicionado só procura a proteção jurisdicional após ter esgotadas as tentativas de realização amigável de seus interesses.

Sem me aventurar em outras questões que já vêm sendo levantadas pela crítica de muitos especialistas, quero me ater aqui à matéria processual destinada à solução de algumas questões societárias. 

A ação de dissolução parcial de sociedade

Como sabido, o Código Civil, alterando o regime anterior, não considera mais, como causas de dissolução das sociedades em geral, a morte, a retirada e a exclusão de sócios. Trata-as, acertadamente, como causas de rompimento (resolução[1]), puro e simples, do vínculo da sociedade em relação ao sócio. No entanto, o CPC/2015 passa olimpicamente por essa correção legislativa e ressuscita a dissolução (parcial) para as referidas situações, regulando-as nos artigos 599 e seguintes, sob a rubrica de “Ação de Dissolução Parcial de Sociedade”.

Não estou a afirmar, evidentemente, que a ação de dissolução parcial foi extirpada de nosso ordenamento. Ela continuará existindo sempre que, prevista uma causa de dissolução (total), puder ser dissolvida parcialmente a sociedade; não tem mais lugar, porém, nos casos de rompimento do vínculo societário em relação a sócio (desligamento), que ocorrem em razão de seu falecimento, retirada ou exclusão.[2]

Nesse Capítulo do CPC/2015 alinham-se sucessivas inconsistências, tanto na impropriamente denominada dissolução parcial (destinada a solucionar as consequências do rompimento do vínculo societário em relação ao sócio falecido, retirante ou excluído), como na dissolução propriamente dita, que será objeto de análise mais adiante.

O artigo 600 do Código prevê a possibilidade de ser pleiteada a dissolução parcial da sociedade por quem dela não participa (incisos I, II, IV e VI) e legitima a própria sociedade para o pleito dissolutório de si mesma (incisos III e V), conquanto daí não resulte dissolução alguma. Em verdade, trata-se, consoante a lei material, de caso de liquidação da quota (isto é, liquidação da participação) do sócio falecido, excluído ou que se retira da sociedade, visto que a ação não visa à realização do ativo e ao pagamento do passivo sociais; destina-se, exclusivamente, a apurar e a efetuar o pagamento dos haveres de quem dela se desliga. Não se está aqui diante de uma simples questão de linguagem, mas de adequação das disposições processuais às regras contidas no Código Civil (artigo 1.031).

O mesmo artigo 600, em seu parágrafo único, confere legitimidade ao “cônjuge ou companheiro de sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou” para “requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio”. Essa disposição, por ser de direito material, jamais deveria figurar eu um código de processo. Aliás, os problemas pessoais que um sócio possa ter com seu consorte não se devem refletir no seio da sociedade de que participa, dado o risco de desestabilizar a vida social, a do antigo parceiro e a de seus demais sócios.

Efetivamente, a apuração de haveres conduz, quase sempre (a não ser que os respectivos valores sejam exíguos ou negativos), à necessidade de a sociedade desfazer-se de parte de seus recursos disponíveis para o giro dos negócios ou de parte de seus bens, daí resultando inexoravelmente sua descapitalização, com perda da competitividade no mercado a ensejar, em casos mais graves, sua ruína financeira. Além disso, o pagamento dos haveres irá provocar a redução da quota de participação do sócio (CPC 2015, artigo 600, parágrafo único, última parte), cuja manutenção pode ser indispensável para preservar seus direitos políticos na sociedade. É que, reduzido o percentual de participação do sócio controlador em razão do pagamento dos haveres do seu ex-cônjuge, ex-companheiro ou ex-convivente, ele corre o risco de perder seu poder de controle; também os sócios minoritários podem sofrer a perda de direitos que dependem de percentual mínimo para ser exercidos, como o de impedir uma alteração do contrato social, o de permanecer no bloco de controle, o de designar administrador por ato separado, o de eleger representante no conselho fiscal etc. Uma tal redução pode, inclusive, comprometer, quando houver, um acordo de sócios ou de acionistas.

Exatamente por isso, o Código Civil, tendo presentes situações desse jaez, estabeleceu regra diametralmente oposta e, evidentemente, muito mais adequada, por estar afinada com o princípio da preservação da empresa: sem contemplar companheiro ou convivente,  prevê, em seu artigo 1.027, que “os herdeiros do cônjuge do sócio, ou o cônjuge que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.” Ou seja, o cônjuge que se separa do sócio, mesmo recebendo em partilha parte da quota social que este possui na sociedade, não tem direito de se tornar sócio, nem de exercer os direitos que a lei confere ao sócio. Recebe, exclusivamente, os direitos patrimoniais contidos na parte que lhe couber em tal quota. Tal norma veio sanar o problema antes referido, de modo que o fato de ocorrer a separação judicial não afeta a posição do sócio na sociedade: o direito que seu cônjuge tiver em relação à sua quota de participação na sociedade (dela usufruindo sem ser sócio), fica mantido após a separação, nada mais nem menos. Essa previsão fica revogada por disposição que deveria, simplesmente, regular o seu exercício.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
Alfredo de Assis Gonçalves Neto é Professor Titular de Direito Comercial na UFPR. Advogado. Ex-Presidente da OAB/PR.


[1] O termo “resolução”, utilizado pelo Código Civil, não é adequado para abranger o desligamento de sócio por morte ou em razão do exercício do direito de retirada, uma vez que supõe inadimplemento. Por isso, é preferível falar em “rompimento” dos vínculos societários em relação ao sócio.
[2] Sobre esse assunto, ver, do autor, Direito de Empresa – Comentários aos arts. 966 a 1.195 do Código Civil. 6ª. ed. São Paulo: 2016, n. 256, p. 322: O Código Civil de 2002, “embora não mais admitindo a dissolução pelo simples querer, por falecimento, incapacidade ou falência de sócio (como o permitiam os arts. 335 e 336 do CCom), não rechaça a possibilidade de dissolução parcial nas causas de dissolução que elencou. Inspirado no Código Civil italiano, o nosso muda o regime: sem contemplar a dissolução parcial que a doutrina e a jurisprudência nacionais haviam consagrado, trata algumas de suas antigas causas como de resolução (ruptura) do ajuste societário relativamente a um sócio (arts. 1.028 e ss. e 1.085). Não elimina, entretanto, a possibilidade de ocorrência de dissolução parcial nas demais hipóteses que regula como de dissolução, seja de pleno direito, seja contenciosa. Tem-se, portanto, que todas as causas de dissolução total, que não envolvam normas de ordem pública, propiciam a aplicação da teoria da dissolução parcial para assegurar o exercício, pelos sócios remanescentes, do seu indeclinável direito de manter os vínculos que entre si ajustaram (dos quais não participa, nem participava, o sócio em relação ao qual a sociedade deve ser dissolvida), para assegurar a permanência da pessoa jurídica e a continuidade da empresa.”

Alfredo de Assis Gonçalves Neto é advogado e professor titular aposentado de Direito Comercial da Universidade Federal do Paraná.
Fonte: ConJur