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“O notário é um documentador, mas antes disso e mais que isso, um jurista que documenta”

“O notário é um documentador, mas antes disso e mais que isso, um jurista que documenta”

Desembargador do TJ/SP destacou a atividade notarial no Sistema Latino contemporâneo e sua integração aos princípios do jusnaturalismo no Brasil e no mundo

Desembargador Ricardo Dip

Responsáveis por atos que se conectam com importantes momentos da vida das famílias, como divórcios, uniões estáveis, inventários, entre outros, os notários estão em constante contato com questões do Direito Natural das pessoas.

Para falar sobre essa complexa relação entre as responsabilidades, a estrutura de profissionais do sistema Latino e a inerência do Direito além de determinações humanas, o Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) conversou com o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Ricardo Dip, autor do recém-lançado “ABC do Direito Natural”.

 

CNB/CF – Em outubro, o senhor lançou a obra “ABC do Direito Natural”. Como a obra trata o assunto?

Desembargador Ricardo Dip – O título do livro –ABC do direito natural– reflete-lhe, a meu ver, exatamente o objeto e o método que para ele se adotou. Não se cuida de um tratado de direito natural, mas de uns elementos, introdução, propedêutica, como quer que se chame, para acercar-nos de seu conceito.

Um importante pensador de nossos tempos disse que “talvez nenhuma época haja sabido menos do que a nossa que coisa seja o direito”. E isso mais ainda parece possa dizer-se do direito natural. Esse direito, no entanto, por ser um direito independente das determinações humanas, tem sua vigência ou positividade universal queiramos ou não, gostemos disso ou não.

Se pensarmos que a lei –qualquer seja ela– é um critério racional de ordenação de cada ente, logo vemos que a lei natural é o critério ou regra da natureza dos homens, estatuto, em parte biológico ou, mais exatamente, ontológico, porque diz respeito aos elementos constitutivos dos homens; e noutra parte, um estatuto etiológico ou moral, porque atende às exigências (ou meios e fins) racionais das condutas humanas. Não observar os preceitos da lei natural, ou, em outras palavras, não buscar o direito natural (enquanto justo segundo a natureza) é, em resumo, afrontar a dignidade humana, é não respeitar a natureza dos homens.

Não estranha que, ignorando essa noção, nós, reduzidos a pensar no direito como produto exclusivo da arbitrária vontade humana, vivamos tempos tão difíceis. Terminei outro dia a leitura de um livro de Martin Gilbert, sobre o século XX, e se eu tivesse de fazer um resumo dessa obra, poderia ser este: não houve, nesse século, um só dia de paz no mundo, um só dia em que os homens vissem respeitada sua dignidade, sua natureza. Pois é isto, confiou-se no voluntarismo, e o resultado foi a ausência de justiça e a consequente falta da verdadeira paz, que não é qualquer, senão que é sempre fruto da justiça.

CNB/CF: Qual a importância da atividade notarial dentro da premissa do Direito Natural?

Desembargador Ricardo Dip – Aristóteles, no começo do livro da Política, disse que o homem é um animal político. Significa dizer que a vida do homem é sempre uma convivência: os homens não vivem, convivem, e têm de usar a palavra para comunicar suas ideias, sua vontade e seus sentimentos. Mas também devem eles usar a palavra, assim o ensinou o mesmo Aristóteles, para, na vida social e política, fazerem manifesto o bem e o mal, o justo e o injusto, o reto e o torto.

As palavras, pois, significam as movimentações da alma humana, mas elas, as palavras, quando orais, podem e devem ser recolhidas por escrito, porque, além de convir em geral para a tradição do pensamento, é isso de uma notória conveniência à vida jurídica e à paz da cidade. Daí vem que se possa especializar a sentença aristotélica e dizer, com alguma hipérbole talvez, que o homem é um animal que se documenta. Ou seja, pode afirmar-se que a tendência à documentação é uma propriedade conatural dos homens, um próprio da natureza humana. Não é isso mesmo o que podemos compreender da célebre frase de Núnez Lagos, “al principio era el documento”?

Mas o documento é um produto, é um efeito, e como não há efeito sem causa, não há, pois, documento sem documentador. Por isso, o notário –desde os tempos de seus mais remotos ancestrais, os scribæ antigos– é um jurista que se especializa, para o bem comum, na arte de redigir, e que, em verdade, educa-se e exercita-se na prudência de aconselhar o que redigir. Esse é um indicativo da naturalidade em geral do documentador e que, historicamente, se realizou de modo bastante adequado, na figura do notário latino. O notário é um documentador, mas antes disso e mais que isso, um jurista que documenta.

CNB/CF: Como o senhor vê a relação dos valores estabelecidos por ordem “divina” com a fé pública, inerente à atividade notarial?

A Criação de Adão – Por Michelangelo Buonarotti

Desembargador Ricardo Dip – O reconhecimento da existência da lei natural é algo perceptível da só consideração da ordem do universo. Podemos contemplar essa ordem no reino vegetal (pensemos no movimento heliotrópico dos girassóis); ou no reino mineral (o sol nasce e põe-se com regularidade; os astros marcham segundo uma trajetória bem definida); ou no reino animal, seja compulsoriamente (como se dá com os animais brutos), seja no campo do exercício, mal ou bem, da vontade dos homens.

Isso, entretanto, nada nos diz sobre a origem da lei natural. Uma coisa é reconhecer exista a lei natural; questão distinta é saber quem instituiu a lei natural.

Não deixa de surpreender que, em sua pergunta, o adjetivo divino esteja entre as aspas. Mas não quero tratar deste assunto aqui, até porque é mais do que conhecida minha fé genuinamente cristã e minha confessada adesão à doutrina tomista.

Todavia, sua pergunta recomenda-me duas breves observações.

Primeira: com efeito, a ideia de fé notarial participa da noção geral de fé, qual a de crer no que não vimos pela só afirmação de um testemunho autorizado; e esse conceito pode, por antonomásia, reportar-se à fé divina.

Segunda: é preciso distinguir quando se fala, tal consta de sua interessante pergunta, em fé pública “inerente à atividade notarial”; e por quê? Porque o notário seria notário ainda que não tivesse a potestade da fé pública; foi assim na história: o notário foi instituído pela sociedade, pela comunidade, não pelo estado, que depois veio atribuir-lhe a faculdade de dação da fé pública.  Além disso, nem todos os tipos de notário possuem essa faculdade: por exemplo, pensemos no notariado anglo-saxão. A inerência da fé pública à atividade notarial é própria do notário latino, mas não é essa a característica que simplesmente o faz notário; a fé pública é uma das características que faz um notário ser do tipo latino, mas não é, repita-se, o que o constitui notário.

CNB/CF: Como o senhor avalia as recentes mudanças no mundo jurídico e na conjuntura atual de nossa sociedade em relação aos princípios do jusnaturalismo?

Desembargador Ricardo Dip – O, pode dizer-se universal, constante maltrato em nossos tempos a bens jurídicos insuscetíveis de reduzir-se por circunstâncias históricas –bastaria pensarmos no bem da vida, vulnerado pela prática do abortamento voluntário, ou no bem da liberdade pessoal e da liberdade de opinião– poderia inclinar-me a uma visão pessimista. Mas guardo alguma esperança, não otimista, mas realista, em que, a exemplo de antigos renascimentos (assim, o carolíngio e o dos séculos XII e XIII), possamos, com a geração mais jovem –e exatamente porque parte dela dá por agora vívidos sinais de despertamento cultural e moral–, restituir ao mundo as leis que respeitem a natureza dos homens.

Homem Vitruviano – Por Leonardo Da Vinci

CNB/CF – Qual o papel e a importância do trabalho do sistema Latino Notarial em sociedades e países que ainda lidam com constantes infrações ao Direito Natural de seus cidadãos?

 Desembargador Ricardo Dip – Interessante e muito oportuna essa indagação, mas antes de os notários de tipo latino terem de lidar com as violações da lei natural no âmbito genérico da comunidade política, parece que devam considerar com prioridade seus próprios problemas de desconstrução dos elementos constitutivos do notariado latino. Ao lado de um notariado estatal tipológico – assim, p.ex., o que vigorou na antiga União Soviética, em que os notários eram simples funcionários do estado –, a doutrina notarial acusou uma segunda espécie de notariado estatal ou administrativo: quando se realizou, em 1979, na cidade de Paris, o XV Congresso Internacional do Notariado Latino, aprovou-se, por unanimidade, moção apresentada no sentido de que se consideraria incluído em um sistema autoritário oposto da estruturação do notariado latino “qualquer dos países que procurasse desconhecer ou vulnerar os princípios”  do notariado latino. Nessa linha, um dos maiores cultores contemporâneos do Direito Notarial, Antonio Rodríguez Adrados, falecido há pouco mais de três anos, depois de incluir a Itália fascista de Mussolini no âmbito desse notariado de tendência estatalista e antes de referir-se a que o modelo do notariado administrativo, teve apenas algum êxito em Portugal – sobretudo no governo de Marcello Caetano –, apontou a inclinação estatalista do notariado chileno no período da regência militar de Augusto Pinochet e, este é o ponto a salientar, também no Brasil, ao tempo já do governo de Juscelino Kubitschek. Não é caso de aqui disputar sobre o acerto ou desacerto dessa referência de Rodríguez Adrados, mas, sim, de considerar que, entre o mais típico do notariado latino e o mais próprio do notariado estatalista, existem gradações possíveis, e o fato é que, nos últimos tempos, o notariado brasileiro inclina-se de maneira – antes vagarosa e  crescentemente mais veloz – ao encontro de um modelo administrativo, a ponto de que se pode recear logo deixe de contar-se no grupo tipológico do notariado latino.

 

CNB/CF – Por que na opinião do senhor o Brasil está inclinado a esta mudança estatizante do notariado?

 Desembargador Ricardo Dip – De fato, tenham-se em conta: (i) a assunção de funções burocráticas pelos notários –tais, a título de exemplo, a fiscalização do recolhimento de tributos, a polícia ativa da lavagem de capital, a vultosa tarefa de nutrir os cadastros informativos da administração pública e de tender ao gigantismo da centralização de dados; (ii) a patente redução da profissionalidade jurídico-notarial, com a manifesta prevalência da função pública sobre a de corte privado (ou comunitário), afligindo a independência no conselho e na qualificação jurídica; disso dá testemunho eloquente a pujança judicial-administrativa nas atividades notariais, mormente por sua alargada produção normativa  (a que não é de pouco relevo a anexidade de seu poder disciplinar); (iii) e, last, but not least, a resignação de alguns notários, quando não seja mesmo um entusiasmo, com a ruptura de alguns princípios clássicos do notariado latino (p.ex., o da imediação, afligindo, reflexamente, o pilar da fé notarial) e com o menoscabo da missão prudencial do antigo professor de Direito (na linguagem de Fernández Casado e de Joaquín Costa), que se se vai substituindo pela rotina uniformista e formulária da técnica. Temos à frente a contingência de saber se ainda continuaremos, segundo a natureza de nosso notariado –românico, hispânico, português com um matiz brasileiro, ou se vamos abdicar das características paradigmáticas que nos permita contar-nos na latinidade notarial. Ou seja, com a natureza – ainda que em muito tributária da história – de um notário que, por espontânea instituição comunitária, fez-se paladino das liberdades concretas dos indivíduos e de suas sociedades menores, ou se, avessando-nos dessa natureza concretizada na história, conheceremos um notariado caboclo a serviço do estado. Só o futuro o revelará.