Com este texto, foi aprovado durante a VII Jornada de Direito Civil, no último mês, em Brasília-DF, enunciado que trata da Usucapião Familiar. O artigo de referência do enunciado é o 1.240-A do Código Civil, que determina que o cônjuge ou companheiro que exercer a posse direta com exclusividade, por dois anos, sobre o imóvel em que divida a propriedade com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquire o domínio integral da propriedade.
Para o advogado Ricardo Calderón, professor de Direito Civil e membro do IBDFAM, o enunciado pode contribuir para uma adequada tradução da usucapião familiar. Isto porque, até hoje, o instituto vem sendo objeto de debate na doutrina e na jurisprudência, especialmente sobre qual seria o seu sentido e qual a extensão dos seus requisitos aquisitivos.
“O texto legal, em linhas gerais, dispõe apenas que o ex-cônjuge ou ex-companheiro poderá adquirir a propriedade total do imóvel objeto do lar conjugal, desde que demonstrada posse superior a dois anos ininterruptos, agregada ao abandono do lar pelo outro consorte. Desde então, debate-se a extensão de tal modalidade de usucapião, primordialmente qual o significado atual para a expressão ‘abandono do lar’, utilizada no texto de lei como um dos seus requisitos expressos”, diz.
Esta dúvida, segundo o advogado, vinha gerando certa insegurança jurídica, pois não havia consenso sobre qual conduta, nos dias de hoje, configuraria o “abandono do lar”. Este impasse, conforme explica Calderón, poderia aumentar a litigiosidade, com mais pedidos de separações de corpos e afastamento do lar, apenas para evitar configurar alguma espécie de abandono ou, ainda, poderia levar algumas pessoas a permanecerem morando juntas – mesmo estando em conflito – apenas para não configurar tal abandono do lar, na tentativa de evitar perder sua parte no imóvel.
“Diante disso, é bem-vindo o novo enunciado, visto que pode contribuir na escorreita interpretação da usucapião familiar, o que certamente auxiliará na busca pela pacificação de tais conflitos”, diz.
Ricardo explica que o enunciado pretende traduzir a expressão “abandono do lar” como um verdadeiro abandono familiar, no sentido de agregar ao abandono voluntário da posse do imóvel também o abandono da tutela da família, ou seja, um desamparo por parte daquele que deveria ser seu provedor.
“Em outras palavras, agrega como elemento caracterizador do abandono do lar um abandono da tutela da família, o que pode ser compreendido como o não atendimento das responsabilidades familiares e parentais incidentes no caso concreto, um desassistir que venha a trazer dificuldades materiais e afetivas para os familiares que restaram abandonados. Exemplificando: não prestar alimentos, não contribuir para as despesas do lar, não manter os vínculos afetivos com os demais integrantes da família, dentre outros”, diz.
Interpretação anterior
De acordo com o advogado Ricardo Calderón, durante grande parte do século XX a expressão “abandono do lar” foi utilizada como uma coerção que tinha como objetivo principal evitar que as mulheres deixassem o lar conjugal, mesmo em situações que lhes eram adversas e degradantes.
Atualmente, a doutrina majoritária sustenta que tal modalidade de usucapião familiar visa tutelar a família e o direito à moradia. Diante disso, segundo o advogado, é necessário traduzir qual o sentido contemporâneo para o “abandono do lar”.
O especialista destaca que, no estágio atual, tal abandono não deve guardar apenas uma relação exclusiva com o uso do bem (posse), mas sim exige também uma necessária vinculação com uma adequada tutela e proteção da família.
“Impõe buscar um sentido hodierno de abandono do lar, que o permita transitar tanto no direito das coisas como no direito de família, de modo a densificar as normas constitucionais que o fundamentam e, muito mais do que apenas expor sua estrutura, reverberar sua função no nosso sistema, na esteira do que ensinou Norberto Bobbio na sua obra clássica Da estrutura à Função”, diz.
Para Calderón, o sentido atual de “abandono do lar” não pode significar nem a busca por um culpado pelo término da relação, nem estar restrito, exclusivamente, à retirada física do imóvel, conforme define o enunciado. “Daí o seu acerto, que claramente informa que o abandono do lar não guarda relação com a averiguação de um culpado pelo fim do relacionamento e, ainda, resta vinculado também a um abandono da própria família”, diz.
Fonte: IBDFAM