No dia 15 de setembro, o i-Registrador entrevistou o tabelião de notas e protesto e registrador Dr. Naurican Ludovico Lacerca.
Defensor ardoroso dos concursos públicos e crítico ferrenho da estatização dos cartórios, Dr. Naurican Ludovico Lacerda é um estudioso dos modelos de organização dos registros e notas, dedicando-se, no mestrado, a demonstrar a inequívoca superioridade dos modelos que se baseiam em delegação de atividades públicas ao particular.
Dr. Naurican é tabelião de notas e protestos, registrador civil de pessoas naturais e de pessoas jurídicas, e registrador de títulos e documentos no Distrito Federal. Tabelião concursado há seis anos, foi o primeiro colocado no concurso realizado em Brasília. É professor de pós-graduação em direito civil e direito notarial, e mestrando em direito constitucional pelo IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público. Sua dissertação de mestrado versa sobre o atual modelo de delegação sob a forma privada comparado com a prestação de serviços notariais e registrais pelo ente estatal.
P – A Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia, Aiba, publicou nota em seu site denunciando o inconformismo dos produtores locais com “o fato de a Bahia ser o estado onde se paga mais caro pelos serviços de cartórios e este serviço ser de péssima qualidade”.
Naurican Ludovico Lacerda – O estado da Bahia é paradigmático em relação ao completo caos que é a prestação estatal dos serviços notariais e de registros. O parecer do procurador José Cupertino Aguiar Cunha, do Ministério Público do Estado da Bahia, junto ao Tribunal de Contas, no processo do TSE 001813 (p. 33), falando sobre as receitas e despesas dos serviços notariais e de registro da Bahia, põe por terra um dos argumentos dos que defendem a estatização acreditando que os cartórios são extremamente lucrativos e que se o Estado prestasse diretamente a atividade poderia auferir os rendimentos em favor da população. Essa percepção errônea existe graças à total desinformação. Em todos os lugares do Brasil onde a prestação do serviço notarial e de registro se deu diretamente pelo Estado o que se comprovou foi exatamente o contrário, isto é, que o prejuízo é milionário. No caso da Bahia, ainda segundo a página 33 desse parecer, o montante arrecadado com emolumentos foi de R$ 88 milhões. Somente com pessoal, as despesas ficaram na casa dos R$ 115 milhões, ou seja, um prejuízo de R$ 27 milhões – fora gastos com instalação, equipamentos, aluguel etc. Cerca de 20% desses R$ 115 milhões devem ser gastos com outras despesas, somando um prejuízo anual em torno dos R$ 50 milhões. A despeito desse prejuízo, o serviço prestado no estado da Bahia é tão caótico que em Vitória da Conquista uma certidão de nascimento leva quatro meses para ser feita. Portanto, o argumento de que os serviços poderiam ser mais eficientes se fossem realizados pelo Estado é completamente falso.
P – Com todo esse gasto com pessoal, por que a prestação dos serviços é ruim?
Naurican Ludovico Lacerda – Na serventia estatal não existe o delegado responsável, isto é, aquele que sofre as consequencias por prejuízos da administração. Em algumas áreas o Estado é essencial, como na Justiça e na segurança pública. No entanto, há outras atividades em que o regime privado se mostra mais atuante e eficiente no que diz respeito ao seu controle.
No modelo oficializado o tabelião responsável não responde por eventuais danos que o cartório possa causar aos usuários dos serviços. A remuneração do tabelião oficializado não será alterada se ele prestar bom ou mau serviço. Em tese ele pode ser responsabilizado em caso de culpa, mas provar sua culpa pessoal é muito difícil, uma vez que sua função é mais voltada para a coordenação. E se algum outro funcionário agiu com culpa ou dolo, o tabelião que responde pelo cartório não poderá ser responsabilizado. Já na serventia privada, se qualquer funcionário cometer um erro, o tabelião ou oficial é responsabilizado pessoalmente.
P – Segundo o exemplo mencionado pela Associação de Agricultores da Bahia, numa operação de 800 mil o registro de uma hipoteca e respectivo penhor totaliza R$ 5.106. Essa mesma operação no Mato Grosso, por exemplo, sairia por R$ 1.600.
Naurican Ludovico Lacerda – Recentemente foi criada uma lei na Bahia que majorou muito o valor dos emolumentos. Acredito que essa lei visou à privatização. Tendo em vista que a Bahia tinha, em 2006, uma despesa com pessoal de cerca de R$ 90 milhões, com a privatização essa despesa continuará existindo. Como na Bahia o serviço é caótico, o CNJ determinou a privatização de todas as unidades vagas que não tenham sido ocupadas por concurso público. Cerca de 430 serventias serão privatizadas e oferecidas em concurso. Desse modo, o Tribunal de Justiça da Bahia perderá essa receita e não terá como fazer frente às despesas. Por isso resolveram aumentar o valor dos emolumentos para ficar com 70%. Ou seja, 70% dos emolumentos vão retornar ao estado da Bahia. A impressão que se tem é que o valor dos emolumentos foi aumentado por conta da privatização. Na verdade, os emolumentos foram aumentados justamente para que as serventias pudessem ser privatizadas de maneira que o Estado continuasse com grande parte da receita. O próprio procurador cita em seu parecer que a privatização não resolveria o problema porque ainda haveria despesas com pessoal. Mas o pessoal que trabalha hoje nesses cartórios poderia ser realocado para os locais do tribunal onde há insuficiência de pessoal.
Isso também aconteceu no Acre onde os cartórios ainda estão estatizados, embora uma lei de 1997 tenha privatizado as serventias. Somente no ano passado é que foi realizado o concurso, mas as pessoas ainda não assumiram. O Acre arrecadava R$ 3 milhões por ano de emolumentos, mas somente com pessoal gastava R$ 6,2 milhões. Ou seja, havia um prejuízo anual de R$ 3,2 milhões somente com pessoal, fora as demais despesas. O serviço no Acre também é extremamente precário. E isso acontece não porque o Poder Judiciário do Acre seja pior que o de outros estados, mas porque os recursos são escassos, assim como na Bahia, e também porque há dificuldades de gerenciamento.
Há outro argumento, no que diz respeito à grilagem, no sentido de que quando a serventia é privatizada a fiscalização é deficiente – o que não ocorreria no caso de uma gestão estatizada. Isso não é verdade. Por ser um órgão ligado ao Tribunal de Justiça, que é gerido pelo próprio tribunal, a fiscalização acaba sendo deficiente. Há um caso típico em Recife, por sinal, um bom lugar para se comparar o regime público com o público. Em Recife havia quatro registros de imóveis, dois estatizados e dois privatizados. Publicou-se uma reportagem indicando que o serviço estatizado era inferior ao serviço privatizado e, no entanto, se cobrava o mesmo preço pelo mesmo serviço. Quando o 3º RI de Recife era estatizado, havia uma plaquinha no cartório que dizia que o prazo, só para se calcular os emolumentos, era de 30 dias. A pessoa deixava o título para calcular o valor dos emolumentos e voltava para buscar em 30 dias. Em toda serventia estatizada acontece outro fenômeno extremamente deletério: a corrupção. Essa reportagem a que me referi dizia também sobre a venda de facilidades. O prazo ordinário geralmente é de 30 dias, mas com o pagamento de um “extra”, o título poderia ser retirado no mesmo dia. É comum acontecer isso nas serventias estatizadas.
P – Se a comparação entre os sistemas estatizado e privatizado é tão favorável ao sistema privado, por que razão ainda se pede a estatização dos cartórios extrajudiciais?
Naurican Ludovico Lacerda – Na verdade, o grande motivo de se querer a estatização é a noção de que o serviço é público e não pode dar lucro ao particular. Há uma tese que diz que as pessoas não podem ganhar dinheiro com serviço público. Ora, um funcionário público está ganhando dinheiro com seu serviço; as instituições de ensino prestam um serviço público e têm lucro; as empresas de telecomunicações também prestam serviço público e só funcionam bem porque visam ao lucro; o transporte é serviço público. Enfim, todo serviço público dá lucro e o poder fiscalizador tem de regular esse lucro em nível razoável. Há muito preconceito e total desconhecimento em relação aos cartórios extrajudiciais. Segundo dados do Programa Justiça Aberta, do Conselho Nacional de Justiça, um levantamento das receitas de todas as serventias mostrou que dois terços das serventias de todo o país tem receita mensal bruta de até R$ 10 mil.
Uma parte daqueles que trabalham na atividade tem culpa pela noção de privilégio criada em torno da atividade. Há uma constante luta para tornar aquilo um privilégio de poucos. E é justamente essa noção de que cartório é um privilégio de poucos que aumenta o sentimento contra a instituição. Ora, se não é para todo mundo, aquilo passa a ser algo injusto. Hoje, no entanto, a Constituição estabelece o concurso público. Ou seja, qualquer um pode ter acesso a uma serventia, basta passar no certame público, que o estado de São Paulo vem fazendo muito bem, por sinal. Muitos estados não fizeram nenhum concurso depois da Constituição de 1988, como por exemplo, a Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, praticamente todo o nordeste.
Como aqueles que estão à frente dos cartórios têm muito poder político, o Judiciário, mesmo quando quer fazer o concurso, se vê impedido. Isso porque o governador não quer, os deputados não querem, enfim, as forças políticas são muito grandes. Com essa percepção de privilégio, a classe sofre. Infelizmente, temos várias ações da Anoreg do Brasil tentando impedir concurso público. Com isso a sociedade tem a percepção de que queremos apenas manter o privilégio, de que o cartório ainda é hereditário. Ora, algo que é hereditário e privilégio de poucos é muito mal visto. Não há como se ter um bom serviço prestado por pessoas não capacitadas e que não passaram no crivo do concurso público.
P – Recentemente, o Tribunal da Paraíba noticiou que fez um levantamento dos cartórios vagos no estado para ser enviado ao CNJ, que deverá pedir o concurso público. No entanto, já há impugnações de servidores que estavam no cargo antes da Constituição de 1988.
Naurican Ludovico Lacerda – Eles podiam estar no cartório antes da Constituição, mas não eram tabelião ou registrador. Em alguns casos, após cinco anos de trabalho na serventia a pessoa podia ser titulado, mas desde que a vacância tenha se dado antes da Constituição de 1988 e que tivessem completado cinco anos de trabalho em 1983, e não em 1988. É direito desses servidores impugnar, o que não pode é a Anoreg nacional lutar contra concursos, denegrindo a imagem da categoria. Isso enfraquece a atividade nacionalmente. Essa é uma luta que vamos travar. A pessoa tem todo o direito de lutar individualmente, mas não a Associação, que acaba levando junto o nome de todos aqueles que pertencem à categoria e não concordam com isso.
P – Em sua opinião não há nenhuma exceção?
Naurican Ludovico Lacerda – Sou totalmente contra a PEC 471 e o Supremo Tribunal Federal já deixou bem claro, em centenas de casos, que não existe nenhuma exceção. Participei de um debate sobre a PEC 471 na TV Justiça em que defendo exatamente isso. Depois da CF/88, qualquer titularização acontecerá somente por concurso público. A Constituição anterior já defendia o concurso público desde 1982. A Emenda Constitucional 22 foi a PEC da época. Somente nos estados do Acre e da Bahia ainda há cartórios estatizados, e alguns cartórios no Rio de Janeiro.
Defendo o modelo atual, que é um tripé fortíssimo. O primeiro é a privatização, o segundo é o concurso público, e o terceiro é a fiscalização. Entendo que a não realização de concurso público representa um privilégio, que deve ser atacado. O amplo acesso aos cargos públicos é um direito que está na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ora, vivemos numa República onde as coisas não são de alguns, mas de todos. Portanto, o acesso aos cargos públicos deve ser de todos. Isso legitima o nosso sistema.
P – Deveria haver uma carreira?
Naurican Ludovico Lacerda – A carreira é completamente inviável. A carreira existe onde as atribuições são divididas, onde há uma hierarquia. Não é o nosso caso. O artigo 236 da CF é claro quando diz que para o ingresso é exigível o concurso público. Não há como ingressar num pequeno cartório e depois mudar para outro. Só existem duas formas de concurso, pelo ingresso ou pela remoção. E o ingresso não pode ser seccionado. Na carreira há uma espécie de hierarquia, ou seja, o juiz começa juiz substituto, depois passa a juiz de direito, juiz titular e desembargador. No que diz respeito aos cartórios, todos prestam o mesmo serviço. A atribuição é a mesma para grandes e pequenos cartórios. O desembargador julga as decisões dos juízes singulares, mas uma serventia de menor rendimento mensal não é inferior à maior serventia da capital, ambas prestam o mesmo serviço. Esse fato é completamente incompatível com a noção de carreira. E mais, essa noção de carreira é uma forma de se criar privilégios. Por exemplo, um procurador que ganhe R$ 20 mil vai largar sua profissão para assumir uma serventia que tem um faturamento bruto de R$ 5 mil? Só quem vai fazer isso são os filhos dos atuais tabeliães e registradores, porque os pais irão mantê-los somente para que no futuro tenham uma serventia maior. É isso que pretendem aqueles que defendem a carreira. Há uma pesquisa da Fipe e FGV, que ainda está sendo realizada, que mostra que em São Paulo, depois dos concursos públicos, a qualidade dos serviços melhorou muito.
P – Como fica a atividade notarial e registral em face de tantas gratuidades dos serviços decretadas pelo poder público?
Naurican Ludovico Lacerda – O Supremo Tribunal Federal já decidiu diversas vezes que onde houver gratuidade deve haver a compensação. Não é a gratuidade em si que é inconstitucional, mas a gratuidade sem compensação porque a atividade é privada. Imagine se o governo federal disser que a partir de agora quem ganha até três salários mínimos vai ter celular de graça? É exatamente o que fez com os registros públicos a lei 11.977/09, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. As pessoas acham que ninguém vai pagar por um serviço gratuito. Mas alguém vai pagar, e esse alguém são notários e registradores. Transferir os ônus para uma pessoa é inconstitucional, uma vez que o benefício é de toda a sociedade. Se o benefício é para todos, a sociedade deve arcar com isso.
Fonte: IRegistradores