Fraudes na HIS ameaçam a segurança jurídica e a transparência do mercado imobiliário. Cartórios e bancos desempenham um papel essencial no controle e na garantia da legalidade.
Habitação de interesse social e compliance imobiliário: O dever de diligência de cartórios e instituições financeiras
A HIS – Habitação de Interesse Social tem seu fundamento no art. 6º da CF/88, que consagra a moradia como direito social. No âmbito das políticas públicas, o principal objetivo da HIS é garantir o acesso à moradia digna para famílias de baixa renda. Na cidade de São Paulo, esse compromisso é refletido no atual Plano Diretor (lei 16.050/14), que prevê a produção de unidades habitacionais destinadas tanto à HIS quanto à HMP – Habitação de Mercado Popular, obedecendo critérios objetivos de renda familiar.
No entanto, a aplicação prática desses dispositivos legais enfrenta desafios significativos, sobretudo diante das recentes denúncias que apontam para possíveis fraudes na destinação das unidades produzidas com incentivos urbanísticos e fiscais. A lei 17.975/23, que revisou o Plano Diretor de São Paulo, aprimorou o sistema HIS no município, trazendo mecanismos de controle que visam assegurar a correta destinação das moradias. Ainda assim, a prática tem mostrado que a inobservância dos critérios de elegibilidade – que classificam as famílias beneficiárias em faixas (HIS 1, HIS 2 e HMP) – pode gerar insegurança jurídica e distorcer os objetivos da política habitacional.
A política municipal destinada à pessoas de baixa renda confere a diversos atores papel específico, cada qual com responsabilidades em seu âmbito de atuação, que vão desde a aprovação e fiscalização pelo Poder Público até a responsabilidade dos agentes produtores, bem como o papel esperado das instituições financeiras, cartórios e dos próprios destinatários do programa. Cabe ao município conceder os benefícios urbanísticos e fiscais e promover a fiscalização efetiva sobre o cumprimento dos critérios de renda. Do mesmo modo, o agente produtor tem o dever de averbar a destinação correta das unidades habitacionais, enquanto os destinatários devem assegurar a veracidade das informações fornecidas.
A definição dos critérios – HIS 1 para famílias com renda bruta de até 3 salários-mínimos (ou 0,5 salário-mínimo per capita), HIS 2 para até 6 salários-mínimos (ou 1 salário-mínimo per capita) e HMP para até 10 salários-mínimos (ou 1,5 salário-mínimo per capita) – pretende garantir que os benefícios atinjam os públicos os públicos-alvo. No entanto, a complexidade operacional do sistema e a multiplicidade de intervenientes abrem margem para falhas de fiscalização e práticas fraudulentas, como evidenciado em recentes medidas do Ministério Público que buscam suspender a liberação de imóveis para famílias de baixa renda sob suspeita de irregularidades e que a prefeitura seja obrigada a fiscalizar e controlar a venda de apartamentos que deveriam ser destinados à população de baixa renda.
A inobservância dos critérios de elegibilidade e a destinação irregular das unidades habitacionais podem acarretar uma série de consequências jurídicas. A fraude na alocação dos imóveis não só compromete a eficácia da política pública, mas também gera insegurança jurídica para todos os envolvidos – desde os beneficiários até os agentes financeiros e os cartórios responsáveis pelos registros. Não se pode descartar as responsabilidades de cada ator na correta execução da política pública, pois, em um cenário de descumprimento das normas, o Poder Público, os agentes produtores, os destinatários e as instituições supervisionadas pelo Banco Central poderão ser responsabilizados pelo não cumprimento de suas obrigações legais.
A atuação dos cartórios, por exemplo, que deve incluir notificações sobre a comercialização de imóveis destinados a HIS e HMP, é crucial para a transparência e a legalidade do processo. As instituições financeiras, por sua vez, têm a responsabilidade de emitir certidões de elegibilidade que atestem o enquadramento correto dos beneficiários nas faixas de renda estabelecidas pela legislação. A falha em qualquer uma dessas etapas pode desencadear um ciclo de irregularidades, prejudicando não apenas o acesso à moradia para famílias de baixa renda, mas também a confiança na administração pública e na segurança do mercado imobiliário.
Embora o arcabouço legal que envolve a política de HIS do município de São Paulo represente avanços importantes para a promoção do direito à moradia, a efetividade dessa política depende fundamentalmente do rigor na aplicação dos critérios de elegibilidade e da colaboração entre os diversos atores envolvidos.
O Ministério Público, ao defender a ordem jurídica e os interesses da coletividade, atua como fiscal da lei e defensor dos direitos dos cidadãos, garantindo que os preceitos constitucionais sejam observados e respeitados em todas as esferas da Administração Pública e da sociedade. Essa atuação evidência que, quando as leis são descumpridas, a resposta deve ser imediata e contundente, ressaltando a necessidade de mecanismos de controle eficazes.
O desafio para São Paulo – e para outras cidades que implementam políticas semelhantes – é transformar o compromisso constitucional em práticas administrativas que garantam a justiça social e a segurança jurídica. Enquanto os aprimoramentos legais, como os previstos na lei 17.975/23, fornecem as ferramentas para essa transformação, o sucesso da política depende da integridade e da diligência de cada agente envolvido no processo, em especial do comprometimento de cartórios e instituições financeiras na correta aplicação das normas e na mitigação de riscos. O cumprimento diligente das suas responsabilidades não apenas assegura a transparência e a legalidade do processo, mas também protege o mercado imobiliário de fraudes e distorções. Sem uma atuação rigorosa e coordenada desses agentes, a política habitacional perde sua efetividade e abre brechas para irregularidades que comprometem seu objetivo essencial: garantir moradia digna para quem realmente necessita.
Fonte: Migalhas