A justiça da Bahia deu provimento a ação de emancipação judicial para que uma jovem, abandonada pelos genitores desde os 11 anos, pudesse adquirir casa própria em programa social.
O Juiz de Direito, Luciano Ribeiro Guimarães Filho, da 1ª Vara de Feitos de Rel. de Cons. Cível e Comerciais da Comarca de Jequié, na Bahia, prolatou a decisão e relatou: “Não me recordo em ter prolatado uma sentença com tanto sofrimento e com lágrimas de tristeza saltando dos meus olhos. Impossível não se compadecer com a situação da autora”.
Viveu em galinheiro
A ação de emancipação judicial foi proposta pela Defensoria Pública do Estado da Bahia em favor de uma jovem que foi contemplada com uma casa do Projeto Minha Casa Minha Vida e foi impedida de assinar o contrato por ser menor de idade.
A jovem, com histórico de abandono, não convive com os genitores desde os 11 anos de idade, quando passou a morar sozinha em um galinheiro, às margens de uma rodovia. Em 2014, ela passou a viver união estável com um companheiro maior de idade, carroceiro, com renda familiar mensal de R$ 100,00, e tiveram um filho, com idade de sete meses à época da propositura da ação. A jovem recebe benefício social e estava morando “de favor” em uma pequena casa que já foi requisitada pelos proprietários. Ela recorreu à Justiça visando garantir seu direito fundamental à moradia, ressaltando-se que, de fato, exerce atos da maioridade civil, como os deveres do poder familiar.
“Sociedade injusta e absurdamente desigual”, diz magistrado
Sobre o caso, o magistrado refletiu: “Além de Juiz, sou um devotado, amoroso e apaixonado pai de uma menina e não há como entender o que leva um pai(?) a abandonar um(a) filho(a) desde o seu nascimento. E de que forma conceber que mãe(?), um ser que considero possuir o mais divino, sagrado e nobre ofício existente entre nós, uma entidade quase divina que, nas palavras de Mário Quintana, é ‘apenas menor que Deus’, tem a capacidade de abandonar todos seus filhos e filhas, espalhando-os por uma ou mais cidades, e obrigando que uma delas, a autora, tenha que, aos 11 (onze) anos de idade, morar em um galinheiro, às margens de uma estrada, exposta a inimagináveis perigos, frustrações, abusos e privações?!?!?! Talvez, a única forma de entender tudo isso é a necessária remessa à tão atual quanto antiga e cruel política nacional de atendimento das necessidades básicas e vitais das pessoas pobres e abandonadas do nosso país. Não podemos esquecer que, seguramente, tanto o genitor, como a genitora da requerente (não podemos lhes chamar de pai e mãe, triste e lamentavelmente …) também são frutos do abandono e da desigualdade social a que são submetidos os cidadãos e cidadãs brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza. As tragédias pessoais e familiares se sucedem, de forma interminável, no nosso Brasil. Em casos assim, temos a exata compreensão de como os desmandos e a corrupção daqueles que administram o dinheiro e a coisa pública são maléficos a seres humanos”.
O juiz interpretou que o caso não poderia ser julgado utilizando apenas o Código Civil, e aplicou outras disposições do ordenamento (Constituição Federal), “na medida em que o caso em apreço não versa sobre mero direito a emancipação, mas ao direito a uma vida digna e ao direito à moradia de uma jovem massacrada por uma sociedade injusta e absurdamente desigual”.
Supremacia dos princípios constitucionais
Para o advogado Victor Macedo, diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família seção Bahia (IBDFAM/BA), além do “brilhantismo” da fundamentação, o aspecto essencial dessa decisão é a salvaguarda das garantias constitucionais, “especificamente o direito à vida e à moradia, conduzem à uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, uma vez que suplanta o caráter estático de uma leitura isolada da codificação civil para alcançar a novel forma de atuação do intérprete, pautado numa perspectiva civil constitucional”.
O advogado expõe: “Tecnicamente, retira-se o Magistrado de uma posição meramente subsuntiva de incidência da norma ao caso em apreço, promovendo um trabalho elaborado de dialogismo entre as normas infraconstitucionais e os preceitos da Carta Magna, a fim de encontrar a solução mais adequada à compreensão global da situação sub judice. Neste sentido, a nobreza e sensibilidade de reconhecer a excepcionalidade do caso servem de norte para reconhecer a falibilidade do Estado no cumprimento do seu mister, de especial proteção à criança e ao adolescente, admitir a viabilidade da pretensão e, por consequência, julgar procedente o pedido, cessando a incapacidade relativa da Autora, na certeza de que esta já estava emancipada pela vida ‘e agora quem o faz é o Poder Judiciário’”.
Para ele, a decisão aponta para a direção que vem sendo delineada pela interpretação jurídica ao longo dos últimos anos, especialmente pela supremacia dos princípios constitucionais, quando confrontados com a impossibilidade de solução do caso concreto pela norma estática. “A dinamicidade retirada do diálogo entre as fontes do Direito possibilitam o alcance de soluções adequadas a casos não abrangidos pela normatividade da legislação. Assim, encontram-se respostas para situações que não tem previsão normativa, mas que se amoldam perfeitamente na elasticidade dos preceitos insculpidos na Constituição, fruto do esforço hermenêutico do intérprete, neste caso, o Magistrado que concedeu a tutela pretendida”, diz.
Victor Macedo considera a decisão relevante diante do sistema de precedentes inaugurado pela nova codificação processual. “Neste sentido, esta decisão irá balizar o julgamento de demandas semelhantes, que não encontrem guarida no texto normativo, mas que o quadro fático-probatório revelará a necessidade de obedecer ao cariz civil-constitucional e reforçará a essencial sensibilidade com a qual deverá atuar o julgador na sua apreciação”, salienta.
O advogado destaca, ainda, o aspecto técnico-jurídico. “O louvor da decisão advém do caráter humano que repousa sobre o julgamento, que servirá de norte para aqueles que lidam diariamente com casos desta natureza, pois fogem à simplicidade da mera regulamentação jurídica das relações sociais, e submergem na tentativa de sua absoluta compreensão, que congloba análises sociológicas, psicológicas, filosóficas, ou seja, muito além da norma jurídica”, reflete.
Macedo afirma que a jurisprudência reconhece a existência de situações diversas da emancipação legal, como é o caso da Bahia, mas de forma restritiva e excepcional. “Assim, o entendimento externado na Decisão do Tribunal baiano pode dar ensejo a um turning point na compreensão da matéria, por conferir maior flexibilidade nas hipóteses de emancipação, interpretadas de forma sistêmica, e não vinculadas a um virtual rol taxativo engessado na codificação civil”.
Fonte: IBDFAM