Por José Rogério Cruz e Tucci
A sucessão do cônjuge e, por via reflexa, também a do companheiro, é tema que vem ensejando grande instabilidade no meio jurídico, especialmente em decorrência da sinalização ambígua que emerge de alguns dos julgados mais recentes do Superior Tribunal de Justiça.
Não é de hoje que o cônjuge é chamado à sucessão. Sob a égide do Código Civil de 1916, à falta de descendentes e ascendentes, o cônjuge recolhia a totalidade da herança, a teor do que dispunha o artigo 1.611 do diploma revogado.
A mesma condição de terceiro chamado à sucessão vinha sendo atribuída ao companheiro desde a promulgação da Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994.
Com a entrada em vigor do Código Civil, o cônjuge passou a concorrer com descendentes, dependendo do regime de bens do seu casamento (artigo 1.829, I) e, na falta destes, com ascendentes (artigo 1.829, II), se houver. Faltando descendentes e ascendentes, o cônjuge sobrevivo deve recolher a totalidade da herança, nos termos do que preceitua o artigo 1.838 do Código Civil. Quando é chamado à sucessão em concurso com descendentes, o cônjuge só herda a parte do acervo que não lhe caberia por força do regime de bens, ou seja, herda os bens particulares do autor da herança.
A grande inovação do atual Código Civil centra-se no artigo 1.845, que atribuiu ao cônjuge, ao lado dos descendentes e ascendentes, a condição de herdeiro necessário.
A herança do companheiro, que para muitos não é herdeiro necessário, é substancialmente diversa da do cônjuge. Por força do inciso I do artigo 1.790, o companheiro concorre com descendentes sobre a meação do falecido, ou seja, sobre a metade ideal dos bens que foram adquiridos a título oneroso, durante a união estável. Em concurso com outros parentes do autor da herança, o direito sucessório do companheiro se estende sobre toda a herança, mas inexplicavelmente ele não ostenta a condição de terceiro chamado à sucessão, perdendo a preferência de que antes gozava, sobre os parentes colaterais.
Logo após a promulgação do Código Civil de 2002, a comunidade jurídica manifestou certa perplexidade com as inovações introduzidas em matéria de direito sucessório.
Em pouco tempo, assentou-se o entendimento consolidado a respeito da interpretação do artigo 1.829, I, do Código Civil, nos termos do Enunciado 270 do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual a herança do cônjuge sobrevivente, que concorre com filhos, só incide sobre os bens particulares do autor da herança, devendo os bens comuns ser objeto de meação. Para sanar de vez a deficiência de redação do referido dispositivo legal, tramita desde 2011 perante a Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 1.878, de autoria da Deputada Janete Rocha Pietá, que conta com parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e ratifica este mesmo entendimento.
Já a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que cuida da sucessão do companheiro, foi suscitada no julgamento do Agravo de Instrumento no Recurso Especial 1.135.354-PB, e recebeu, perante a Corte Especial, paradigmático voto favorável da lavra do ministro Luis Felipe Salomão. Apesar da percuciência do voto do relator, os ministros Cesar Asfor Rocha e Teori Zavascki, a despeito de rejeitarem o recurso, adiantaram entendimento contrário à tese da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. Lamentavelmente, em razão de questão prévia atinente ao cabimento do próprio recurso, o incidente restou prejudicado. Assim, uma das mais importantes questões que paira sobre o direito privado, “e que está realmente a intranquilizar toda a sociedade brasileira”, nas palavras do ministro Sidnei Beneti, ainda pende de solução.
O fato é que, sem um norte confiável, os julgados dos tribunais estaduais divergem a respeito da matéria, com crescente posicionamento favorável à inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, o que dilata sobremaneira a importância do artigo 1.829, aplicável não apenas à sucessão do cônjuge, como também à do companheiro, para aqueles que entendem que o artigo 1.790 do Código Civil desponta inconstitucional.
Contudo, o artigo 1.829 do Código Civil longe está de receber interpretação converente.
Por paradoxal que possa parecer, é o próprio STJ, detentor do monopólio da função nomofilácica, que tem contribuído para polemizar a exegese da lei.
Em outubro de 2009, no julgamento do Recurso Especial 1.111.095-RJ, a 4ª Turma prestigiou a vontade do testador, para excluir da herança os herdeiros do cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens, ao argumento de que o pacto antenupcial e o testamento constituíam ato jurídico perfeito.
Neste precedente, no entanto, havia a prevalência da questão de direito intertemporal, muito bem destacada no voto do ministro Luis Felipe Salomão. Tanto o pacto antenupcial, quanto o casamento, assim como o testamento, haviam sido celebrados antes da entrada em vigou do Código Civil de 2002. Por essa razão, aquele acórdão estava fadado a se tornar um precedente único, dificilmente aplicável a outros casos análogos. Ainda assim, importa destacar a robustez e a clareza de raciocínio do voto divergente proferido pelo ministro João Otavio de Noronha, que dava a exata dimensão da controvérsia.
No mesmo ano de 2009, a matéria veio a ser novamente debatida pelo STJ, no julgamento do Recurso Especial 992.749/MS, relatado pela ministro Nancy Andrighi, em cujo voto foi examinada toda a evolução sucessória do cônjuge. Pretendendo sistematizar a matéria, sem embargo do louvável esforço da ilustre relatora, a 3ª Turma conferiu interpretação contrária à letra do artigo 1.829 do Código Civil.
Na hipótese concreta, negou-se ao cônjuge casado sob o regime da separação convencional a condição de herdeiro necessário, em decorrência de peculiaridades fáticas do caso vertente (o que irrompe paradoxal em sede de recurso especial), em particular, a circunstância de o vínculo matrimonial ser recentíssimo e o cônjuge sobrevivente ser 31 anos mais jovem do que o autor da herança.
A despeito de alguns reflexos deste precedente nas decisões proferidas, desde então, pelas cortes estaduais, tanto a doutrina quanto a jurisprudência repudiaram o entendimento contra legem e continuaram a prestigiar a interpretação sistemática da lei.
Já em 2011, a própria 3ª Turma do STJ posicionou-se em sentido contrário ao entendimento secundado no apontado acórdão relatado pela ministro Nancy Andrighi, evidenciando que aquele precedente tinha aplicação exclusiva à excepcionalidade do caso. Assim é que no julgamento do Recurso Especial 54.567-PE, de relatoria do ministro Massami Uyeda, a 3ª Turma do STJ sufragou entendimento em absoluta simetria com o texto legal, no sentido de que o cônjuge casado sob o regime da participação final nos aquestos pode herdar os bens particulares do autor da herança, nas hipóteses do artigo 1.829 do Código Civil.
Ainda em 2011, agora no julgamento do Recurso Especial 974.241-DF, a 4ª Turma do STJ decidiu que o cônjuge casado sob o regime a comunhão parcial herda os bens particulares do autor da herança e não tem direito hereditário sobre a meação do falecido, posicionamento este respaldado em sólida construção doutrinária, estruturada no consistente voto-vista do ministro Luis Felipe Salomão.
Mais recentemente, em outubro de 2013, no julgamento do Recurso Especial 1.377.084-MG, relatado pela ministra Nancy Andrighi, a 3ª Turma agasalhou orientação diametralmente oposta, no sentido de que o direito à herança do cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial recai sim sobre a meação do falecido. Estariam, portanto, excluídos da herança do cônjuge supérstite os bens particulares do de cujus, como forma de prestigiar o regime de bens do casamento, para efeitos sucessórios.
O que não se pode olvidar, todavia, é exatamente a motivação axiológica de toda a modificação normativa do direito sucessório do cônjuge no Código de 2002. Buscou-se proteger o cônjuge que estivesse vivendo maritalmente com o autor da herança no momento da abertura da sucessão. Com base no denominado princípio solidarista, o cônjuge herda a parte dos bens sobre a qual não tem direito de meação, justamente para ficar protegido da necessidade que poderia assaltá-lo após o falecimento do seu consorte mais abonado.
É por este motivo que a herança do cônjuge não existe no regime da comunhão universal, e restringe-se aos bens particulares do falecido, no regime da comunhão parcial, quando o cônjuge concorre com descendentes. Também é por esta razão que, mesmo concorrendo com descendentes, o direito sucessório do cônjuge se estende sobre todo o patrimônio do de cujus no regime da separação convencional de bens: porque não há direito de meação nesse regime patrimonial.
A proteção do cônjuge que vivia maritalmente com o seu consorte pré-morto, ao tempo da abertura da sucessão, é o fundamento axiológico do modelo jurídico! Qualquer interpretação que se afaste desse valor é inadmissível e viola o direito à herança tal como posto pelo legislador constitucional e ordinário.
Excluir o direito à herança do cônjuge casado sob o regime da separação convencional ao argumento de que o pacto antenupcial tem eficácia post mortem atenta contra o próprio modelo jurídico da sucessão do cônjuge. E, mais do que isso, amplia a eficácia do pacto para muito além do razoável, imprimindo-lhe uma força normativa consentânea com a visão altamente privatista do sistema, há muito superada: o cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens não teria direito à herança porque pacta sunt servanda. Eis o inominável paradoxo desta linha de argumentação.
À guisa de arremate, é preciso que se leve na devida conta que a instabilidade hermenêutica das regras que dominam a sucessão atenta contra a ordem pública e conspira contra a segurança jurídica.
Delineia-se imperioso, pois, que o STJ se posicione de modo uniforme e definitivo sobre estas importantes questões!
Fonte: Conjur