EMENTA
RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL – IMPROCEDÊNCIA – RELAÇÃO DE NAMORO QUE NÃO SE TRANSMUDOU EM UNIÃO ESTÁVEL EM RAZÃO DA DEDICAÇÃO E SOLIDARIEDADE PRESTADA PELA RECORRENTE AO NAMORADO, DURANTE O TRATAMENTO DA DOENÇA QUE ACARRETOU SUA MORTE – AUSÊNCIA DO INTUITO DE CONSTITUIR FAMÍLIA – MODIFICAÇÃO DOS ELEMENTOS FÁTICOS-PROBATÓRIOS – IMPOSSIBILIDADE – INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 7⁄STJ – RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. I – Na hipótese dos autos, as Instâncias ordinárias, com esteio nos elementos fáticos-probatórios, concluíram, de forma uníssona, que o relacionamento vivido entre a ora recorrente, F. F., e o de cujus, L., não consubstanciou entidade familiar, na modalidade união estável, não ultrapassando, na verdade, do estágio de namoro, que se estreitou, tão-somente, em razão da doença que acometeu L.; II – Efetivamente, no tocante ao período compreendido entre 1998 e final de 1999, não se infere do comportamento destes, tal como delineado pelas Instâncias ordinárias, qualquer projeção no meio social de que a relação por eles vivida conservava contornos (sequer resquícios, na verdade), de uma entidade familiar. Não se pode compreender como entidade familiar uma relação em que não se denota posse do estado de casado, qualquer comunhão de esforços, solidariedade, lealdade (conceito que abrange "franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade", ut REsp 1157273⁄RN, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 07⁄06⁄2010), além do exíguo tempo, o qual também não se pode reputar de duradouro, tampouco, de contínuo; III – Após o conhecimento da doença (final de 1999 e julho de 2001), L. e F. F. passaram a residir, em São Paulo, na casa do pai de L., sem que a relação transmudasse para uma união estável, já que ausente, ainda, a intenção de constituir família. Na verdade, ainda que a habitação comum revele um indício caracterizador da affectio maritalis, sua ausência ou presença não consubstancia fator decisivo ao reconhecimento da citada entidade familiar, devendo encontrar-se presentes, necessariamente, outros relevantes elementos que denotem o imprescindível intuito de constituir uma família; IV – No ponto, segundo as razões veiculadas no presente recurso especial, o plano de constituir família encontrar-se-ia evidenciado na prova testemunhal, bem como pelo armazenamento de sêmen com a finalidade única de, com a recorrente, procriar. Entretanto, tal assertiva não encontrou qualquer respaldo na prova produzida nos autos, tomada em seu conjunto, sendo certo, inclusive, conforme deixaram assente as Instâncias ordinárias, de forma uníssona, que tal procedimento (armazenamento de sêmen) é inerente ao tratamento daqueles que se submetem à quimioterapia, ante o risco subseqüente da infertilidade. Não houve, portanto, qualquer declaração por parte de L. ou indicação (ou mesmo indícios) de que tal material fosse, em alguma oportunidade, destinado à inseminação da ora recorrente, como sugere em suas razões. Bem de ver, assim, que as razões recursais, em confronto com a fundamentação do acórdão recorrido, prendem-se a uma perspectiva de reexame de matéria de fato e prova, providência inadmissível na via eleita, a teor do enunciado 7 da Súmula desta Corte; V – Efetivamente, a dedicação e a solidariedade prestadas pela ora recorrente ao namorado L., ponto incontroverso nos autos, por si só, não tem o condão de transmudar a relação de namoro para a de união estável, assim compreendida como unidade familiar. Revela-se imprescindível, para tanto, a presença inequívoca do intuito de constituir uma família, de ambas as partes, desiderato, contudo, que não se infere das condutas e dos comportamentos exteriorizados por L., bem como pela própria recorrente, devidamente delineados pelas Instâncias ordinárias; VI – Recurso Especial improvido. (STJ – REsp nº 1.257.819 – SP – 3ª Turma – Rel. Min. Massami Uyeda – DJ 15.12.2011)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, em negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Sidnei Beneti. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Consignada a presença dos Srs. Advogados: Dra. MARIA ELISABETH DE MENEZES CORIGLIANO, pela parte Recorrente, F. F., e o Dr. MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA, pela parte Recorrida, o Espólio de L. K., representado por M. K.
Brasília (DF), 1º de dezembro de 2011 (data do julgamento).
MINISTRO MASSAMI UYEDA – Relator.
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por F. F., fundamentado no artigo 105, III, "a", da Constituição Federal, em que se alega violação do artigo 1723 do Código Civil.
Subjaz ao presente recurso especial, ação de reconhecimento de união estável cumulado com partilha de bens promovida por F. F. em face de Espólio de L. K. (representado por seu inventariante, M. K. e J. R.), tendo por desiderato o reconhecimento de união estável no período compreendido entre 1998 e 25 de julho de 2001, data do falecimento de L.
Em sua petição inicial, a autora, F. F., argumenta que seu relacionamento com L., iniciado em 1997, solidificou-se em 1998, quando passaram a coabitar o mesmo imóvel, de propriedade de L., em Miami (Estados Unidos da América), em que passaram a dividir os momentos mais preciosos e importantes. Noticiou que, em 1999, L., após realizar exames médicos conclusivos de que possuía um tumor maligno no colón, foi submetido à intervenção cirúrgica de emergência para retirada do nódulo, que, embora bem sucedida, acabou por desenvolver metástase que se alastrara para o fígado e para uma parte do pulmão. Narra a autora que, após o diagnóstico e o conseqüente conhecimento dos riscos de morte, L., sempre acompanhado por ela, iniciou verdadeira corrida contra o tempo e contra os mais alarmantes prognósticos, tendo a autora o acompanhado em todos os especialistas, exames, tratamento e cirurgias. Como prova da finalidade destinada à constituição de família, aponta a autora que L. armazenou sêmen, "para, tão logo curado, ter um filho com a suplicante". Afirma a autora, ainda, que o casal mudou-se para o Brasil e passou a residir com o genitor de L., para a continuidade do tratamento, batalha, contudo, que se findou com a morte de L., em 25.7.2001. Anota a autora, que seu relacionamento era público, tanto que no dia do enterro, foi homenageada pelo rabino que conduzia a solenidade.
Alega a autora, ainda, que, após o enterro, hospedou-se na casa de sua cunhada (Nathalie), pois não conseguia retornar ao imóvel no qual ela e L. viveram. Afirma que, a partir de então, era considerada como parte da família, tanto pelo pai de L., quanto por sua irmã e irmão, reconhecida, assim, como companheira de L. Alega que, não obstante o reconhecimento pela família de seu vínculo com L., foi surpreendida com o término do inventário, em que foi omitida a união estável que mantiveram, e de maneira abrupta cessaram o auxílio financeiro que lhe prestavam e passaram a tratá-la de forma ríspida.Pugna, assim, pelo reconhecimento judicial da união estável que manteve com L. (fls. 3⁄18).
A pretensão exarada na inicial foi integralmente rechaçada pela parte ré, em sua contestação, aduzindo, em suma, que jamais existiu união estável entre L. e a autora, "havendo, tão somente, um singelo namoro, consubstanciado em uma relação aberta, permanecendo a autora ao lado de L. como verdadeira dama de companhia.". Reputa inverídica a assertiva de que residiram em Miami, tanto que ela reiteradamente declarava às autoridades americanas outras residências, inclusive na oportunidade em que teve jóias apreendidas pela Polícia Federal que ingressariam irregularmente nos Estados Unidos. Anota que a relação existente entre L. e a autora era absolutamente aberta e "descompromissada", sendo certo que, quando teve conhecimento da doença, todos os amigos, familiares e conhecidos de L. compadeceram-se e apresentaram-se de forma mais presente, caso, inclusive, da autora.
Neste momento, segundo alegado, a autora tentou consolidar com mais firmeza o relacionamento aberto que mantinha com L., oferecendo-se, inclusive, a acompanhá-lo ao Brasil, o que foi aceito, tendo L. esclarecido, contudo, que não poderia oferecer a ela qualquer compromisso, especialmente em razão da doença que lhe acometia. Na residência do pai de L., a autora não tinha qualquer autonomia, servindo, tão-somente, de companhia a L. No ponto, é certo que L. conhecia as mínimas chances de recuperação e, mesmo assim, não formalizou qualquer compromisso com a autora, bem como não concedeu qualquer autorização de utilização do sêmen armazenado. Aliás, referido armazenamento é comum aos pacientes que são submetidos à quimioterapia, que, no caso, deu-se por orientação médica, e não para o fim de constituição de família, como maliciosamente sugere a autora. Afirma, ainda, que a família passou a ser pressionado pela autora no sentido de apresentar matéria sensasionalista em jornais e revistas, o que fez com que a família parasse de prestar apoio, inclusive, financeiro à autora, à época, por gratidão (fls. 816⁄830).
Após a exauriente instrução do feito, o r. Juízo de Direito da 10ª Vara da Família e Sucessões da Comarca da Capital⁄SP julgou a demanda improcedente (fls. 1489⁄1365).
Irresignada, a autora, F. F., interpôs recurso de apelação, ao qual a c. Quarta Turma de Direito Privado negou provimento, à unanimidade, em acórdão assim ementado:
"União Estável. Art. 1723 do Código Civil. Hipótese em que a prova é segura na confirmação de que houve mero namoro entre a autora e o falecido filho dos réus quando residiam em Miami. Ausência dos requisitos da união estável que se configura na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Namora que se estreitou após doença do jovem e até o seu falecimento um ano depois, o que se deu com a anuência da família em virtude da dedicação e do carinho da namorada, circunstância que não permite a transformação do namora em união estável. O reconhecimento da rica família do jovem falecido se deu pela doação espontânea de substancial quantia em dinheiro e de apartamento em bairro nobre, num total de R$ 1.800.000,00, em 2002, após a morte do filho. Prova que é segura quanto à inexistência de união estável. Improcedência acertada. Recurso da autora improvido. Honorários advocatícios. Recurso dos réus visando à elevação do valor que hoje equivale a aproximadamente R$ 9.000,00. Art. 20 § 4º, do CPC. Os honorários devem ser fixados de modo a garantir, minimamente, a remuneração digna do patrono do réu apelante em ação de reconhecimento de união estável cuja partilha em caso de procedência envolvia o vultoso patrimônio do herdeiro das Casas Bahia. O elevado grau de zelo exigido neste processo pleno de incidentes, recurso, colheita de provas documentais e testemunhais, a natureza e a importância da causa e o trabalho e tempo dedicados, tudo conduz à necessidade de elevação dos honorários advocatícios para R$ 25.000,00. Recurso do réu apelante provido" (fls. 434⁄441 – e-STJ).
Busca a ora recorrente, F. F., a reforma do r. decisum, sustentando, em em suma, que o Tribunal de origem reconheceu que a recorrente e L. "mantiveram mais do que um relacionamento fugaz e transitório, que durou desde que se conheceram em Miami, nos Estados Unidos da América, até sua morte, no Brasil, sem que ambos se afastassem por qualquer tempo, mesmo nos períodos mais críticos da doença que o vitimou". Restou incontroverso nos autos, ainda, que tal relacionamento, além de duradouro e contínuo, era de conhecimento público. Afirma, outrossim, que ambos tinham o plano de constituir família, o que ficou demonstrado pela prova testemunhal, bem como pelo armazenamento de sêmen com a finalidade única de ter filho com ela, restando, por conseguinte, caracterizada a união estável.
Os recorridos apresentaram contrarrazões às fls. 1810⁄1819.
O Ministério Público Federal ofertou parecer no sentido de não conhecer do apelo nobre ou não lhe conferir provimento (fls. 1983⁄1987).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO MASSAMI UYEDA (Relator):
O inconformismo recursal não merece prosperar.
Com efeito.
A celeuma instaurada no presente recurso especial centra-se em saber se, de acordo com os elementos fáticos assentados pelas Instâncias ordinárias, imutáveis na presente via especial, a relação mantida entre a ora recorrente, F. F. e o de cujus, L., no período em que mantiveram relacionamento afetivo, ensejou ou não a constituição de entidade familiar, na modalidade união estável.
De plano, consigna-se que, nos termos do 1.793 do Código Civil, para a configuração da união estável, a relação deve apresentar-se duradoura, contínua e pública, partilhando os conviventes de comum finalidade consistente na intenção de formar uma entidade familiar – affectio maritalis e animus uxoris – (exteriorizada pela comunhão de esforços; pela assistência; pela posse do estado de casado; pela lealdade e respeito mútuos; pela guarda, sustento e educação dos filhos, entre outros).
Na hipótese dos autos, as Instâncias ordinárias, com esteio nos elementos fáticos-probatórios, concluíram, de forma uníssona, que o relacionamento vivido entre a ora recorrente, F. F., e o de cujus, L., não consubstanciou entidade familiar, na modalidade união estável, não ultrapassando, na verdade, do estágio de namoro, que se estreitou, tão-somente, em razão da doença que acometeu L.
Nos termos relatados, o período em que a recorrente alega ter encampado verdadeira união estável com o de cujus, L., deu-se entre 1.998 a 25 de julho de 2.001, data de seu falecimento. Conforme bem ponderado pelas Instâncias ordinárias, o relacionamento sub judice deve ser divisado em dois momentos, antes e depois do conhecimento da doença que vitimou L.
Com lastro nas provas reunidas nos autos, notadamente as testemunhais, bem como o depoimento pessoal da autora, as Instâncias ordinárias concluíram que, no período em que L. e F. F. residiam em Miami (1.998 e parte de 1.999), além de inexistir entre eles coabitação (sendo certo, inclusive, que L. morava na companhia de seu irmão e de mais três amigos, numa espécie de "República", própria da idade), desfrutavam de um relacionamento "aberto", sem compromisso, tanto que tinham, cada qual, paralelamente, outros relacionamentos, faziam viagens que não compartilhavam entre si, sequer quanto à finalidade destas, etc.
Pela relevância do cenário fático insculpido na sentença e in totum mantido pelo Tribunal de origem, transcreve-se excertos da sentença, bem como do acórdão recorrido, que bem o delimitam:
"[…] Em primeiro lugar, a autora em seu depoimento pessoal confirmou que na residência onde alega ter residido, morava além de Leandro, seu irmão Raphael, mais Dennis e Guilherme, tendo este último passando uma temporada para fazer curso de inglês, alem de uma pessoa de apelido Tuba (vide depoimento de fls. 1138⁄1141, em especial neste tópico fls. 1139). Por outro lado, afirmou que quase sempre que entrava nos Estados Unidos da América, declarava na Alfândega como seu endereço, a residência da irmã, realizando a mesma declaração quando da licença para dirigir (vide fls. 1140). Destacou que Leandro, ia, às vezes, a Ilhas do Caribe, sozinho ou acompanhado do pai, mas não sabe para onde o mesmo ia (vide fls. 1140). Afirmou que sabia da existência de outras namoradas de Leandro (vide fls. 1140). Por fim, declarou não saber se Leandro em 1998 tinha outra namorada, não reconhecendo a mulher da foto de fls. 763. […] Tal situação foi confirmada pela testemunha Paulo (fls. 1195⁄1197) […] Em assim sendo, pelo que se tem do próprio depoimento da autora, quer pelo desconhecimento de onde Leandro viajava e o que exatamente fazia entre os anos de 1998 e 1999, quer pela não declaração do suposto endereço do lar residencial à Alfandega dos EUA e no momento da declaração para sua licença para dirigir, quer pelos indícios de ambos terem sido infiéis, não comprovado satisfatoriamente, como seria ônus da requerente, a referida união estável. […] Interessante notar que a testemunha Ticyana (vide fls. 1201⁄1202) afirmou que residia no mesmo prédio da autora e de sua irmã destacando ter conhecimento de ter Fernanda um relacionamento com pessoa de nome Stanley, que alias ali também residia." (fls. 1496⁄1498).
"[…] O que se tem é que a autora e o falecido Leandro eram sim namorados, mas com condutas próprias e características de pessoas descompromissadas na flor dos vinte e cinco anos de idade e sem qualquer intenção de constituir família. A privilegiada situação financeira do falecido Leandro permitia levar as namoradas e os amigos para ficarem em sua mansão em Miami e desfrutarem de viagens e passeios de luxo, em barcos e aviões, mas sem prova alguma a indicar que tratava, no caso da autora, de relação que fosse além de um namoro incrementado com alegria, conforto e variedades próprias da situação financeira de que desfrutava Leandro. O que a prova revela induvidosamente, em seu conjunto e no próprio depoimento da autora, é que o modo como viviam em Miami não indicava nem início de união estável, mas de um namoro que não impedia a Leandro, com o conhecimento da autora, outras viagens e outros relacionamentos, furtivos ou não, que eram sempre realizados em avião da própria família. A prova testemunhal e documental em seu conjunto harmônico não deixa dúvida de que, por incompatível, nada no relacionamento permitia supor uma relação destinada à constituição de família e com características próprias de quem vive como se casado fosse. […]". (fls. 1735⁄1737).
Nesse contexto fático, irretorquível se mostra o entendimento exarado pelas Instâncias ordinárias, no sentido de reputar inexistente, no referido período, união estável entre a ora recorrente, F. F., e o falecido, L. Efetivamente, não se infere do comportamento destes, tal como delineado, qualquer projeção no meio social de que a relação por eles vivida conservava contornos (sequer resquícios, na verdade), de uma entidade familiar. Não se pode compreender como entidade familiar uma relação em que não se denota posse do estado de casado, qualquer comunhão de esforços, solidariedade, lealdade (conceito que abrange "franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade", ut REsp 1.157.273⁄RN, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 07⁄06⁄2010), além do exíguo tempo, o qual também não se pode reputar de duradouro, tampouco, de contínuo.
Da mesma forma, no tocante ao segundo momento da relação afetiva vivida entre a ora recorrente, F. F., e o falecido, L., (após o conhecimento de sua doença), em que pese o estreitamento desta, decorrente da solidariedade e da dedicação prestada por F.F. à L., inocorrente a configuração de uma entidade familiar.
Nos termos relatados, após o conhecimento da doença (final de 1.999 e julho de 2.001), L. e F. F. passaram a residir, em São Paulo, na casa do pai de L., sem que a relação transmudasse para uma união estável, já que ausente, ainda, a intenção de constituir família.
Sobre este período, o Tribunal de origem, com esteio na prova colhida nos autos, ao manter in totum o entendimento exarado na sentença, deixou assente que:
"[…] É verdade, e nova correção do digno Magistrado sentenciante ao separar os dois momentos distintos da relação havida entre L. e F., que o namora reconhecido pelas circunstâncias já descritas sofreu modificação significativa a partir do momento em que se descobriu nele o câncer que vira a tirar-lhe a vida em menos de um ano e meio. A partir desse triste fato, é forçoso convir, o namoro, que até poderia terminar por força do longo tratamento a que L. se submeteria no Brasil, acabou se estreitando com o louvável acompanhamento de F., inclusive com aceitação da família que a acolheu com carinho pela sua demonstração de afeto ao filho gravemente doente e com pouca ou nenhuma chance de sobrevivência. A análise que se faz da prova não permite supor que a autora fosse enfermeira ou acompanhante. Não, a prova mostra com segurança que continuou sendo a namorada de L., e que, acolhida pela família dele em virtude da dedicação demonstrada, participou praticamente de todo o tratamento até que sobreveio a morte. A prova não revela união estável que já não existia anteriormente à doença, mas a aceitação da família a que a namorada dedicada participasse da luta que se travou no combate ao câncer mortal que, em ano e meio, ceifou a vida de L. aos 27 anos de idade. O que não se poderia, nem se pode, pela simples e boa razão de que a prova em seu conjunto não o permite, é considerar que o namoro de ambos, iniciado antes do conhecimento da doença, em Miami, pudesse, a partir, da doença e da dedicação da autora, se transformar em união estável. De tudo quanto se logrou comprovar nos nove volumes que formam este processo é inevitável concluir que, antes da doença de Leandro, houve um namoro sem qualquer intuito de constituição de família, o qual, apesar de prosseguir até de forma mais estreita durante todo o tratamento da doença e até a sua morte, inclusive com o conhecimento e a aprovação da família, continuou sendo um namoro, mas sem que se transformasse numa união estável que nunca existiu. Não se saberá nunca se seria diferente e se o namoro se transformaria em união estável ou casamento caso L. não tivesse morrido. Mas se sabe, com a certeza que emana da prova e do comportamento dele no ano que durou o tratamento até sua morte, que não teve nenhuma intenção de transformar a namorada em sua mulher ou companheira. Era livre, estava lúcido e sabia que dificilmente escaparia da morte. Poderia ter-se casada formalmente com a autora, ou declarado expressamente a união estável que a autora agora persegue judicialmente, bem como poderia ter feito um testamento para incluí-la na herança de seus bens. Nada disso fez apesar da dedicação e do carinho demonstrados pela namorada durante a sua doença, a revelar, indubitavelmente, que não pretendeu transformar o namoro em qualquer tipo de entidade familiar assemelhado ao casamento ou à verdadeira união estável. […]. Nem a união estável se chega, no caso, pela natural colheita de sêmen de L. Antes de tudo, se o objetivo fosse a utilização na autora nada impedia, antes recomendava, que isso fosse declarado expressamente para evitar dúvida. Além disso, o que houve mesmo foi a comum colheita de sêmen destinada ao uso futuro em caso de sobrevivência, sabido que é da infertilidade que em regra ocorre a todos que se submetem ao tratamento quimioterápico. Dessa atitude inerente a todos que se tratam com quimioterapia não se pode tirar a ilação de que a pretensão estava vinculada a ter um filho com a autora, sobrevivendo ou não, menos ainda quando não há manifestação de vontade e a prova oral afasta qualquer ligação do fato com o relacionamento que mantinha com a namorada. E não é porque a mãe de L. acompanhou a autora no Dr. Roger, ginecologista, que se pode tirar a conclusão de que a colheita do sêmen se deu para a autora e isso porque fosse sua companheira. Enfim, nem antes da doença, nem depois, houve união estável entre L. e F." (fls. 1732⁄1742).
De acordo com a moldura fática assim delineada pelas Instâncias ordinárias, é de se reconhecer a inviabilidade de se qualificar a relação vivida entre a ora recorrente, F. F., e L., de união estável.
Como é de sabença, nos termos do artigo 1º da Lei n. 9.278⁄96, não constitui requisito legal, para a configuração da união estável, a presença de coabitação entre os companheiros. Na verdade, ainda que a habitação comum revele um indício caracterizador da affectio maritalis, sua ausência ou presença não consubstancia fator decisivo ao reconhecimento da citada entidade familiar, devendo encontrar-se presentes, necessariamente, outros relevantes elementos que denotem o imprescindível intuito de constituir uma família.
Na hipótese dos autos, a coabitação, reconhecida nesse segundo momento da relação vivida entre a ora recorrente e L. (final de 1999 e julho de 2001), deu-se no imóvel e na companhia do pai de L. (viabilizada, tão-somente, pela privilegiada situação financeira deste), tendo por objetivo exclusivo, é certo, propiciar melhores condições (emocionais) para o tratamento de L.
Conforme o cenário fático descrito pelas Instâncias ordinárias, não se pretendeu, com a referida coabitação, a consolidação do relacionamento afetivo, mas sim efetivar o tratamento médico de que L. necessitava, na companhia dos pais e da namorada, que se propôs a acompanhá-lo de perto nessa jornada. Desta relação, ainda que mais estreita, em razão do momento de agrura vivido por L., não se originou uma união estável.
Efetivamente, a dedicação e a solidariedade prestadas pela ora recorrente ao namorado L., ponto incontroverso nos autos, por si só, não tem o condão de transmudar a relação de namoro para a de união estável, assim compreendida como unidade familiar. Revela-se imprescindível, para tanto, a presença inequívoca do intuito de constituir uma família, de ambas as partes, desiderato, contudo, que não se infere das condutas e dos comportamentos exteriorizados por L., bem como pela própria recorrente, devidamente delineados pelas Instâncias ordinárias.
Conforme se denota, ao contrário das razões aduzidas no presente recurso especial, o Tribunal de origem reconheceu, expressamente que, na hipótese dos autos, não se encontram presentes os requisitos necessários para a configuração de união estável, especialmente em razão da inequívoca ausência do intuito de constituir família.
No ponto, segundo as razões veiculadas no presente recurso especial, o plano de constituir família encontrar-se-ia evidenciado na prova testemunhal, bem como pelo armazenamento de sêmen com a finalidade única de, com a recorrente, procriar. Entretanto, tal assertiva não encontrou qualquer respaldo na prova produzida nos autos, tomada em seu conjunto, sendo certo, inclusive, conforme deixaram assente as Instâncias ordinárias, de forma uníssona, que tal procedimento (armazenamento de sêmen) é inerente ao tratamento daqueles que se submetem à quimioterapia, ante o risco subseqüente da infertilidade. Não houve, portanto, qualquer declaração por parte de L. ou indicação (ou mesmo indícios) de que tal material fosse, em alguma oportunidade, destinado à inseminação da ora recorrente, como sugere em suas razões.
Bem de ver, assim, que as razões recursais, em confronto com a fundamentação do acórdão recorrido, prendem-se a uma perspectiva de reexame de matéria de fato e prova, providência inadmissível na via eleita, a teor do enunciado 7 da Súmula desta Corte, in verbis: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”
Nesse sentido, em situações similares a dos autos, confira-se os seguintes precedentes:
"RECURSO ESPECIAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. IMPROCEDÊNCIA RECONHECIDA NA CORTE DE ORIGEM COM BASE NAS PROVAS DOS AUTOS. REFORMA DO JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7⁄STJ. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. A união estável tratada na Constituição Federal, bem como na legislação infraconstitucional, não é qualquer união com certa duração existente entre duas pessoas, mas somente aquela com a finalidade de constituir família. Trata-se de união qualificada por estabilidade e propósito familiar, decorrente de mútua vontade dos conviventes, demonstrada por atitudes e comportamentos que se exteriorizam, com projeção no meio social. 2. Na hipótese, a Corte de origem negou o pedido de reconhecimento de união estável por entender que, de acordo com as provas dos autos, não estava configurada, pois ausentes, dentre outros requisitos, a intenção de constituir família, a fidelidade, bem como a coabitação. 3. Nesse contexto, a reforma do acórdão depende do reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência que encontra óbice na Súmula 7⁄STJ. 4. Recurso especial não conhecido." (REsp 1.157.908⁄MS, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Relator p⁄ Acórdão Ministro Raul Araújo, DJe 01⁄09⁄2011. E ainda: REsp 982664⁄RJ, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, DJe 15⁄04⁄2011.
Por fim, ainda que desinfluente para o desfecho da presente controvérsia, não se pode deixar de registrar, como demonstração de boa-fé (já que esta se presume) da família de L., que, em reconhecimento à dedicação e solidariedade prestada pela recorrente à L., no delicado momento de sua vida, por liberalidade, doou à recorrente um imóvel e, nos dizeres do Tribunal de origem, "substancial quantia em dinheiro", conforme se verifica do seguinte excerto:
"… E a dedicação e o carinho demonstrados por F. a L., durante o tratamento da doença, não foram indiferentes à rica família de Leandro K. Em reconhecimento à namorada que se revelou solidária e amorosa durante a doença do filho, os pais não só a sustentaram e a mantiveram na própria casa, mas a premiaram, espontaneamente, com um belo apartamento em bairro nobre de São Paulo e substancial quantia em dinheiro, num total que, no ano de 2002, a autora reconhece como em torno de R$ 1.800.000,00. Valor que, com atualização para 2008, segundo os réus, equivale a mais de R$ 2.500.000,00 (fls. 890⁄905)" (fls. 1737).
Como assinalado, a dedicação e a solidariedade prestada pela recorrente à L., por si só, não converte a relação de namoro por eles encampada em união estável. Sequer rendem ensejo a qualquer reparação, notadamente porque o desvelo com que acompanhou L. em seu tratamento deu-se, conforme alegado, de forma espontânea, desinteressada e generosa. Ainda assim, teve, por parte da família de L., o reconhecimento, não menos generoso, de seu valoroso proceder.
Nega-se, pois, provimento ao presente recurso especial.
É o voto.
MINISTRO MASSAMI UYEDA – Relator.