EMENTA
Agravo de Instrumento. Inventário. Agravos interpostos por ambas as partes. Decisão que elencou os bens a que a companheira teria direito. Recurso dos irmãos do de cujus questionando a inclusão no rol de um veiculo usado como táxi, de um alvará de estacionamento usado por taxistas e parte no jazigo familiar. Recurso da companheira que pretende a totalidade dos bens, tendo em vista a ausência de descendentes e ascendentes. União estável devidamente reconhecida. Aplicação do art. 2°, III, da Lei 8971/94 e art 226, § 3º, da CF. Impossibilidade de se aplicar o art 1790, III, do Código Civil. Retrocesso. União estável iniciada quando da vigência da Lei 8.971/94.
Provimento do agravo da companheira para determinar que ela recolha a totalidade da herança deixada por Sebastião Carneiro e seja nomeada inventariante nos autos do inventário e não provimento do agravo dos irmãos do de cujus’. (TJSP – Agravo de Instrumento nº 0338440-80.2009.8.26.0000 – São Paulo – 4ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Fábio Quadros – DJ 18.05.2010)
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento n° 994.09.338440-5, da Comarca de SÃO PAULO – FAMÍLIA, em que são agravantes NELSON CARNEIRO e SEBASTIÃO CARNEIRO sendo agravado ELVIRA THUMASIA RODRIGUES.
ACORDAM, em 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. V.U. JULGAMENTO CONJUNTO COM O AI N° 994.09.337299-2", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores TEIXEIRA LEITE (Presidente sem voto), NATAN ZELINSCHI DE ARRUDA E FRANCISCO LOUREIRO.
São Paulo, 11 de março de 2010.
FÁBIO QUADROS – Relator.
RELATÓRIO
Tratam-se de agravos de instrumento interpostos por NELSON CARNEIRO, inventariante do espólio deixado por Sebastião Carneiro, e por ELVIRA THUMASIA RODRIGUES, nos autos do inventário de bens deixados por SEBASTIÃO CARNEIRO, contra decisão, proferida pela Drª Maria Rita Rebello Pinho Dias, que indicou os bens a que a agravante Elvira teria direito. Na decisão foram excluídos os bens imóveis, por terem sido adquiridos antes da união, bem como o direito a seus alugueres. Ficou entendido que a ex-companheira terá direito à meação e à participação sucessória apenas dos seguintes bens: jazigo, veículo usado como táxi e alvará de estacionamento.
Insurge-se o agravante Nelson Carneiro, sustentando, em síntese, que: a) era de seu conhecimento, bem como de seus irmãos, de que o "de cujus" manteve união estável com a agravada Elvira, porém também possuíam plena convicção de que os bens deixados por seu irmão não seriam transmitidos à agravada em razão de que tais bens foram adquiridos antes do início da união estável ou foram havidos por meio de herança; b) o jazigo familiar foi adquirido pelo Sr. Antônio Joaquim Carneiro, pai dos herdeiros e do "de cujus" em 9 de outubro de 1985 e, como restou reconhecido pelo MM. Juízo "a quo", trata-se de direito de uso e não de domínio, sendo este exercido exclusivamente pela "Família Carneiro" e a cada vez que ocorre o falecimento do responsável pelo jazigo é feita a transferência da titularidade, sem qualquer ônus para quem recebe o direito de uso, portanto não há como atribuir à Agravada qualquer direito sobre o jazigo; c) o bem automóvel foi adquirido pelo "de cujus" em 2007, ou seja durante a união estável que manteve com a Agravada, porém o "de cujus" exercia a função de taxista há mais de 30 (trinta) anos, sendo que desde o inicio de sua profissão a cada 2 (dois) ou 3 (três) anos realizava a substituição de seu veículo e o valor da aquisição era obtido com o produto da venda do veículo anterior, portanto também não há como se reconhecer o direito da Agravada sobre o bem em questão; d) como o “de cujus" exercia a função de taxista há mais de 30 (trinta) anos e a licença era renovada periodicamente e não novamente adquirida, também não como se reconhecer o direito da Agravada sobre a licença para o exercício da função de taxista, sendo certo que a licença já foi concedida há anos. Conclui, entendendo que a decisão Agravada compromete gravemente os direitos sucessórios de seus beneficiários.
De outro lado, insurgiu-se a agravante Elvira, sustentando, em apertado resumo, que: a) apesar da comprovação do reconhecimento da união estável que manteve com o "de cujus", a decisão agravada impede o exercício de seu direito de herdeira necessária dos bens deixados pelo "de cujus", atribuindo-lhe somente os bens adquiridos onerosamente durante a convivência e; b) comprovada e reconhecida judicialmente a união estável sob a égide das Leis 8.971/94 e 9.278/96 e diante da falta de descendentes e ascendentes, tem direito á totalidade da herança não se aplicando, portanto, a regra contida no inciso II do art. 1.790 do Código Civil, por ter entrado em vigor após o início da união estável, devendo ser lhe assegurado o mesmo "status" de cônjuge supérstite.
O efeito suspensivo foi deferido (fls.63 e fls. 32, do apenso).
Foram apresentadas respostas (fls. 70/79 e fls. 49/55 e 57/59, do apenso).
Vieram informações do juízo de origem (fls. 82/83 e fls. 40/41, do apenso).
Foi juntada petição pelo agravante Nelson Carneiro solicitando prioridade na tramitação do feito (fls. 87/88).
É o relatório.
VOTO
A decisão merece ser alterada, conforme se verá.
Verifica-se que, no presente caso, foi reconhecida a união estável entre a agravante Elvira e o "de cujus" Sebastião, a qual durou quase dez anos, tendo se iniciado em março de 1998 e perdurado até o falecimento.
Não deixou o falecido descendentes ou ascendentes, apenas três irmãos que ingressaram com a ação de inventário.
Depois disso, veio a ação de reconhecimento da união estável, na qual houve conciliação.
Ocorre que sob a perspectiva dos princípios constitucionais, o art. 1.790, III, do Código Civil não deve ser aplicado.
Isso porque a doutrina e a jurisprudência têm progressivamente entendido que, inobstante a disposição legal, deve prevalecer o princípio constitucional da igualdade entre entidades familiares, especialmente em casos em que houve grande aproximação entre casamento e união estável, conforme disciplina o art. 226, § 3º, da Constituição Federal.
E, ante a diferença de tratamento dado pelo novo Código Civil à sucessão do cônjuge e do companheiro, indo de encontro com o que pregavam as Leis n° 8.971/94 e n° 9.278/96, recepcionadas tanto pelo sistema constitucional como pela sociedade, mostra-se necessário se afastar a mencionada disposição legal, aplicando-se, em contrapartida, os artigos 1.829, III, e 1.838 do Código Civil, com reconhecimento do direito da agravante Elvira, companheira do de cujus por quase 10 anos, à totalidade da herança, como ocorreria se casados fossem.
Nesse sentido a lição de Mauro Antonini, in "Código Civil comentado – Doutrina e jurisprudência":
“É importante registrar e endossar a crítica veemente do jurista Zeno Veloso (…) ao retrocesso representado pelo art. 1.790. Como visto, a Constituição de 1988, ao estabelecer que a união estável e outras formas familiares merecem proteção jurídica, reconheceu não se poder diferenciar, em termos de dignidade, famílias fundadas ou não no casamento. A quase equiparação, promovida pelas Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96, entre a união estável e o casamento, tinha sido absorvida pela sociedade sem traumas, não se justificando o retrocesso verificado com o atual Código Civil. A solução adequada, portanto, parece ser a já defendida, de se considerar o art. 1.790 inconstitucional em sua totalidade, aplicando-se ao companheiro a mesma disciplina legal prevista para o cônjuge sobrevivente*. (Editora Manole, 2006, pág. 1.784).
É nesse sentido que vem se manifestando igualmente este E. Tribunal de Justiça:
"Arrolamento. Companheiro sobrevivente. Reconhecimento incidental da união estável, à vista das provas produzidas nos autos. Possibilidade. Exclusão do colateral.
Inaplicabilidade ao art. 1790, III, do CC, por afronta aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana e leitura sistematizada do próprio Código Civil. Equiparação ao cônjuge supérstite. Precedentes. Agravo improvido." (Agravo de Instrumento n° 609.024-4/4-00, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. em 20/05/2009).
"AGRAVO – Arrolamentos de Bens – Morte do companheiro – Ausência de ascendente ou descendente, existência, porém, de colaterais noticiada pela própria companheira – União estável iniciada na vigência da Lei 8.971/94 e que perdurou até o falecimento do companheiro – Fato ocorrido em 2004 – Inaplicabilidade da disciplina sucessória prevista no Novo Código Civil – Atribuição à companheira sobrevivente do mesmo status hereditário que a lei atribui ao cônjuge supérstite – Totalidade da herança devida à companheira, afastando da sucessão os colaterais e o Estado – Inaplicabilidade da norma do art. 1.790, III, do Código Civil em vigor – Recurso provido.” (Agravo de Instrumento n. 386.577-4/3, Rel. Des. Magno Araújo, j. em 02.06.05)
"HERANÇA – ARROLAMENTO DE BENS – Companheira – Ausência de descendentes e ascendentes – Colaterais – Exclusão da sucessão – Não incidência do art. 1.790,111, do Código Civil – Afronta ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal – Tratamento sucessório do companheiro sobrevivente assemelhado àquele do cônjuge – Inteligência dos artigos 1.829, III, e 1.838 do novo Código Civil – Reconhecimento do direito da companheira à totalidade da herança – Recurso provido." (Agravo de Instrumento n° 652.425-4/4- 00, Rel. Vincentini Barroso).
"Arrolamento – Reconhecimento de união estável – Falecimento do companheiro que não deixou descendentes ou ascendentes – Pretensão de se afastar a concorrência dos colaterais (art. 1790, III, CC) – Aplicação da Lei 9.728/96, que não revogou o artigo 2º da Lei 8.791/94, que assegurou ao companheiro sobrevivente o mesmo status hereditário do cônjuge supérstite – Prevalência da norma especial sobre a geral. Recurso provido.” (Agravo de Instrumento n° 522.361-4/8-00, Rel. Paulo Alcides, j. em 09/10/07).
E, mais especificamente, é assim que vem entendendo esta Colenda Câmara:
"SUCESSÃO DA COMPANHEIRA incompatibilidade do artigo 1.790 do Código Civil com o sistema jurídico de proteção constitucional às entidades familiares e o direito fundamental à herança – Impossibilidade da legislação infraconstitucional alijar direitos fundamentais anteriormente assegurados a partícipes de entidades familiares constitucionalmente reconhecidas, em especial o direito à herança – Posição jurisprudencial que se inclina no sentido da inaplicabilidade do ilógico art. 1.790 do Código Civil – Recurso provido, para reconhecer a meação da companheira aos ativos deixados pelo autor da herança, mas afastá-la da concorrência com o descendente menor, aplicando-se o regime do artigo 1.829, I, do Código Civil.” (Agravo de Instrumento 567.929-4/0-00, Rel. Francisco Loureiro, j. em 11/09/2008).
"SUCESSÃO – Herança – Hipótese em que houve comprovação de que o companheiro falecido deixou um único bem, adquirido na constância da união estável e mediante esforço comum – Herança que deverá ser deferida, em sua totalidade, à companheira supérstite, quando concorre com colaterais – Admissibilidade – Não incidência do art. L790, III do CC/2002, proibindo-se assim o retrocesso que elimina direitos fundamentais consagrados, como o de equiparar a companheira e a esposa na grade de vocação hereditária (com preferência aos colaterais) – Principio da não reversibilidade dos direitos sociais – Aplicação do art. 2º, III da Lei 8.791/94 e 226, §3º da CF – Recurso da companheira provido e não provido o interposto pelos colaterais." (Agravo de instrumento n° 499,826-4/0 e 507-284-4/6, Rel. Des. Ênio Zuliani, j. em 30.08.07).
Além disso, cabe lembrar os enunciados proferidos sobre o assunto pelos Juízes da Família do Interior do Estado de São Paulo, sob coordenação da Corregedoria Geral da Justiça:
"49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite a diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima."
"50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legitima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem menção."
Assim, é certo que a agravante Elvira recolheria toda a herança deixada por Sebastião, se o óbito dele ocorresse antes de janeiro de 2003, mas como o falecimento se deu na vigência do novo Código, a companheira perdeu o lugar que detinha – e que a esposa continua a deter – à frente dos colaterais na vocação hereditária.
Dessa forma, nos termos do art. 2º, III, da Lei 8.971/94 e do art. 226, § 3º, da Constituição Federal, merece ser provido o agravo de instrumento interposto por Elvira (AI 994.09.337299-2), para determinar que ela recolha a totalidade da herança deixada por Sebastião Carneiro e seja nomeada inventariante nos autos do inventário, negando-se provimento ao agravo de instrumento n° 994.09.338440-5.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo de instrumento n° 994.09.338440-5 e dou provimento ao n° 994.09.337299-2, para determinar que a agravante Elvira recolha a totalidade da herança deixada por Sebastião Carneiro e seja nomeada inventariante nos autos do inventário.
FÁBIO QUADROS – Relator.
Fonte: Grupo Serac