Jurisprudência TJ-SP – Reserva legal- mitigação da especialidade – Cancelamento hipoteca- cédula e endosso caução. Possibildiade de cancelamento só com autorização do credor hipotecário.
PROCESSO Nº 2012/36541 – SÃO PAULO – ARTUR CARLOS PIRES CALDEIRA e OUTROS – Advogados: CARLOS EDUARDO PARAISO CAVALCANTI FILHO, OAB/SP 194.964 – Parte: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL – Advogado: CARLOS FREDERICO RAMOS DE JESUS, OAB/SP 308.044
Parecer 227/2012-E
REGISTRO DE IMÓVEIS – Financiamento imobiliário – Garantia hipotecária – Cédula hipotecária – Endosso-caução – Tradição inocorrente – Garantia pignoratícia descaracterizada – Cientificação pessoal dos devedores hipotecários inexistente – Ineficácia do endosso pignoratício – Título resgatado pelos devedores hipotecários – Quitação outorgada pela credora hipotecária – Eficácia plena – Cancelamento da hipoteca e da caução – Cabimento – Desqualificação do título afastada – Recurso provido.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,
Artur Carlos Pires Caldeira e Kátia Cristina de Oliveira, inconformados com o comportamento do Oficial do 15.º Registro de Imóveis de São Paulo – que recusou a averbação do cancelamento da hipoteca garantidora do adimplemento do financiamento imobiliário disponibilizado pelo Sul Brasileiro SP Crédito Imobiliário S/a, credor hipotecário, e, assim, da caução advinda do endosso da cédula hipotecária, dada em favor da Caixa Econômica Federal – CEF, sucessora do extinto Banco Nacional da Habitação – BNH -, suscitaram dúvida inversa (fls. 02/10).
Para eles, a exigência formulada é impertinente, pois, diante do pagamento das prestações do financiamento e do resgate da cédula hipotecária, o cancelamento da hipoteca não pode restar condicionado ao da caução averbada na matrícula: conforme argumentam, a extinção da hipoteca leva à da caução, garantia acessória. Ademais, ponderam: não foram notificados da caução, tampouco para realizar os pagamentos à CEF. Por isso, inclusive, não podem ser prejudicados por uma situação que lhes é estranha.
Todavia, o pedido apresentado pelos interessados, instruído com documentos (fls. 11/34), não foi acolhido: de fato, conhecido como pedido de providências administrativas (fls. 35, primeira parte), foi, depois da manifestação do Oficial de Registro e da CEF, indeferido, embora o MM Juiz sentenciante tenha ressalvado sua posição pessoal, cedendo, porém, aos precedentes desta Corregedoria Geral da Justiça (fls. 64/65).
Em suas manifestações, o Oficial de Registro não modificou sua posição (fls. 36/37); exibindo certidão atualizada da matrícula nº 92.771 (fls. 38/40); a Caixa Econômica Federal, fundada em nota de débito (fls. 55), afirmou que o bem imóvel continua garantindo seu crédito, objeto de discussão judicial, pois inadimplido pelo agente financeiro que financiou a aquisição do imóvel pelos interessados, e que a quitação do financiamento não repercute sobre a caução, garantia real oponível erga omnes; e o Ministério Público opinou pelo indeferimento do pedido (fls. 60/62).
Os interessados, ora recorrentes, não aceitando a decisão monocrática, interpuseram recurso de apelação, reiterando as suas manifestações pretéritas e visando à reforma da sentença, com a averbação pretendida (fls. 68/81). Ato contínuo, recebido o recurso, como administrativo (fls. 82), o Ministério Público se pronunciou e, depois, a Procuradoria Geral de Justiça propôs o desprovimento do recurso (fls. 84 e 90/93).
É o relatório.
OPINO.
Com relação à questão discutida, o posicionamento pretérito do Juízo da 1.ª Vara de Registros Públicos desta Capital não restou prestigiado por esta Corregedoria: diversamente dos precedentes consagrados, sustentava-se a pertinência dos cancelamentos da hipoteca e da caução.
Nos autos do processo n.º 000.03.052216-1, ao ser resolvida situação similar, decidiu-se: o cancelamento da hipoteca decorre da comprovada quitação do débito hipotecário (artigos 24 do Decreto-Lei n.º 70/1966(1), e 251, I, da Lei n.º 6.015/1973(2)) e a caução, equiparada ao penhor, não subsiste perante o devedor hipotecário porque, além de não cientificado da garantia pignoratícia, a posse e a guarda do título, até ser resgatado por aquele, permaneceu com o endossante-caucionante.(3)
Ademais, fundamentou-se em adendo: a extinção da hipoteca importou o esvaziamento eficacial da caução, garantia acessória em relação àquela, inútil, além disso, se valorado que o devedor hipotecário e o imóvel hipotecado, adimplido o financiamento, ficaram imunes a qualquer cobrança amparada no débito do endossante-caucionante junto ao caucionado.
Nos julgamentos ocorridos nos autos dos processos n.ºs 583.00.2006.133480-5, 583.00.2007.141229-2, 583.00.2007.196771-0 e 583.00.2008.106801-0, decidiu-se que a averbação, em casos semelhantes ao aqui enfrentado, era cabível, independentemente da concordância da CEF, endossatária-caucionada, e do prévio cancelamento da caução.(4)
Sustentou-se, primeiro, que, provada, nos termos do artigo 18 do Decreto-Lei n.º 70/1966(5), a liquidação da dívida hipotecária, a caução, estabelecida em contrato acessório, perdeu o seu objeto e, depois, a inexistência de negócio jurídico envolvendo o devedor hipotecário e a CEF, beneficiária da caução.
Preliminarmente, quanto aos referidos precedentes, não se acede ao argumento da subsidiariedade da caução: à vista do parágrafo único do artigo 16 do Decreto-Lei n.º 70/1966, a hipoteca, emitida a cédula hipotecária, integra o título, “acompanhando-a nos endossos subsequentes, sub-rogando-se automaticamente o favorecido ou o endossatário em todos os direitos creditícios respectivos, que serão exercidos pelo último deles, titular pelo endosso em preto”.
Logo, a hipoteca, compondo a cédula hipotecária sobre a qual recai a garantia pignoratícia, é objeto da caução, que, portanto, não é acessório daquela. Aliás, a hipoteca, com o endosso-caução, passa a garantir, na realidade, o crédito do endossatáriocaucionado. Por outro lado, a relação entre as garantias reais não é de acessoriedade, mas de prioridade. De resto, inexiste relação de dependência entre os financiamentos contraídos pelo devedor hipotecário e pelo endossante-caucionante, credor hipotecário.
Também, penso, não é relevante a inexistência de negócio jurídico entre o devedor hipotecário e o endossatário-caucionado: o que importa, de fato, com reflexo no plano da eficácia, é a ciência daquele sobre o endosso-caução. Demonstrada, sujeitarse- á aos efeitos da garantia pignoratícia, não se beneficiando, para fins de cancelamento da hipoteca, de pagamentos feito ao credor hipotecário. Esclareço: embora estes tenham força para extinguir, pelo cumprimento, o contrato de financiamento imobiliário, não a terão para por fim à hipoteca, ora garantindo outro contrato.
Por isso, então, significativos, em compensação, os fundamentos, situados no plano da eficácia, ligados à insciência do devedor hipotecário – caso não cientificado do endosso-caução -, e, antes disso, os, localizados no plano da existência, relativos ao aperfeiçoamento da garantia pignoratícia, que pressupõe a tradição do título: a propósito, sobre o que, adianto, mais discorrer-se-á, realço que o artigo 22 do Decreto-Lei n.º 70/1966 dispõe, ao cuidar do endosso-caução, que a cédula hipotecária será recebida em garantia(6).
Todavia, consoante antecipado, esta Corregedoria Geral da Justiça trilhou caminho distinto, levando à mudança de entendimento do Juízo da 1.ª Vara de Registros Públicos desta Capital, expressa na recente decisão impugnada(7) e, por exemplo, na lançada, anteriormente, nos autos do processo n.º 100.09.343066-2(8): porém, ao aderirem aos precedentes desta Corregedoria, os ilustres magistrados ressalvaram os seus posicionamentos pessoais, alinhados com os julgamentos antes citados.
De todo modo, é certo, repita-se, tem prevalecido, ao longo dos anos, a compreensão – prestigiada pelo Registrador, escudada em substanciosos pareceres de ilustres Juízes Auxiliares desta Corregedoria, aprovados por vários, e igualmente eminentes, Corregedores Gerais da Justiça -, que condiciona o cancelamento da hipoteca ao da caução, dependente da anuência do endossatário, credor do credor hipotecário, de quem recebeu, em caução, mediante endosso, a cédula de crédito hipotecária.
Nos primeiros precedentes, extraídos dos pareceres aprovados nos autos dos processos CG n.ºs 1.174/2003, 1.149/2003, 503/2004, 24.811/2007, 7.579/2008, 45.315/2008 e 60.323/2009(9), os cancelamentos da hipoteca e da caução pretendidos não estavam lastreados na cédula hipotecária resgatada, mas em declaração de quitação do credor hipotecário, emitente do título que, segundo alegações, teria extraviado-se: recebidas com reserva tais afirmações, presumiu-se, acertadamente, na falta de elementos em sentido contrário, a circulação da cédula hipotecária, constitutiva da garantia, a tornar imprescindível – entendeu-se -, para a averbação perseguida, a anuência do endossatário-caucionado.
O cancelamento, assinalou-se, estava desautorizado pelo artigo 251, I e III, da Lei n.º 6.015/1973(10), e, especialmente, considerada a referência feita por este último inciso, pelo parágrafo único do artigo 24 do Decreto-Lei n.º 70/1966(11). A respeito da redação deste, releva repetir o que oportunamente se afirmou no parecer lançado nos autos do processo CG n.º 1.174/2003, já lembrado: a regra se refere à quitação dada pelo endossante quando, na verdade, pretendeu mencionar, em prestígio da lógica, a declaração de quitação emitida pelo endossatário.
Tais precedentes avançaram, ainda, sobre o plano da eficácia: nos autos do processo CG n.º 1.174/2003, justificou-se que a averbação do endosso-caução, ao dar publicidade à garantia, basta para impor ao devedor hipotecário os pagamentos ao endossatário, enquanto, nos autos do processo CG n.º 503/2004, destacou-se tanto a ampla publicidade, espécie de notificação pública, oriunda da averbação, como o descabimento da discussão, na via administrativa, sobre os efeitos do endosso e a impossibilidade do Registrador, realizando o cancelamento, ignorar a existência do endossatário.
Em alguns destes precedentes (processos CG n.ºs 24.811/2007, 7.579/2008, 45.315/2008 e 60.323/2009), também ficou clara a ausência de participação da CEF, endossatária-caucionada, não cientificada da tramitação do pedido, a reforçar a inconveniência do enfrentamento da questão da eficácia, a ser considerada, decidiu-se, em processo contencioso, e não na seara administrativa.
Mas os precedentes administrativos supervenientes, provocada a Corregedoria Geral da Justiça por situações novas, foram além. A par de compartilharem os entendimentos acima aduzidos, ainda definiram: a) nos autos do processo CG n.º 20.450/2009(12), o resgate da cédula hipotecária, com mera quitação unilateral da emitente-endossante, sem liberação da caução pela endossatária, que sequer subscreve o termo de quitação, é insuficiente para os cancelamentos objetivados; e, b) nos autos CG n.º 35.183/2009(13), a irrelevância da inocorrência da tradição da cédula hipotecária. E prestigiando ambos, recentemente, o parecer elaborado nos autos CG n.º 136.217/2009(14).
Todavia, respeitado o vigorante entendimento desta Corregedoria, suficientemente revelado pelos pareceres aludidos, a solução prevalecente admite alteração: primeiro, sob o prisma da existência, porque a tradição do título é pressuposto da constituição da garantia pignoratícia; segundo, sob o da eficácia, porque o endosso-caução, para produzir efeitos em relação ao devedor hipotecário, deve ser, necessariamente, cientificado-lhe, não bastando a sua averbação na matrícula do imóvel objeto da hipoteca.
Vamos, agora, aos fatos.
Os interessados, recorrentes, adquiriram, mediante compra e venda pactuada com a Construtora INCON – Industrialização da Construção S/a, o imóvel descrito na matrícula n.º 92.771 do 15.º Registro de Imóveis desta Capital, acertando, então, no mesmo instrumento contratual, o financiamento do preço do negócio jurídico, cujo pagamento restou garantido pela hipoteca do bem imóvel, registrada (registro n.º 2 – fls. 38 verso), dada em favor da mutuante, a Sul Brasileiro SP Crédito Imobiliário S/a (fls. 22/29), atualmente denominada Transcontinental Empreendimentos Imobiliários Ltda. (averbação n.º 09 da matrícula acima referida – fls. 40).
Autorizado pelo contrato (cláusula vigésima quarta – fls. 26) e, principalmente pelos artigos 10 e 16, caput, ambos do Decreto-Lei n.º 70/1966(15), a credora hipotecária, contemporaneamente à compra e venda e ao mútuo, em 30 de dezembro de 1984, emitiu a cédula hipotecária (fls. 30/31), averbada na matrícula do bem imóvel (averbação n.º 3 – 38/39), representativa do crédito aberto pelo agente financeiro aos mutuários, dotado de inegável função social, pois direcionado à facilitação da aquisição da casa própria.
Posteriormente, no dia 20 de dezembro de 1995, a credora hipotecária, para garantir financiamento que contraiu, comprometeu-se a ceder, em caução – por meio de endosso impróprio, portanto -, ao Banco Nacional da Habitação – BNH, sucedido pela CEF, a cédula hipotecária (fls. 31 verso): trata-se de garantia pignoratícia sobre título de crédito impróprio, prevista no artigo 22 do Decreto-Lei n.º 70/1966(16) e documentada na matrícula do imóvel hipotecado (averbação n.º 5 – fls. 39).
Contudo, a tradição do título não se operou, pois o instrumento cedular prosseguiu sob os cuidados da credora hipotecária, isto é, não houve transferência ao endossatário-caucionado, tanto que, junto àquela, endossante-caucionante, resgatado pelos recorrentes, devedores hipotecários, por ocasião da quitação do financiamento imobiliário (fls. 30/31): malgrado averbada na matrícula do imóvel, impõe admitir que a garantia pignoratícia sequer se aperfeiçoou, não se constituiu, nos termos do 768 do Código Civil de 1916(17), vigente ao tempo dos fatos e reproduzido, em linhas gerais, pelo artigo 1.431, caput, do Código Civil de 2002(18).
Em reforço, a legislação civil revogada, em vigor à época dos fatos, equiparando ao penhor a caução de títulos de crédito pessoal (artigo 790(19)), condicionava, em dispositivo específico, a eficácia da garantia real à tradição do título (artigo 791(20)): mais tecnicamente, a regra equivalente no CC/2002, estabelecida no artigo 1.458, prevê que o penhor que recai sobre título de crédito se constitui “mediante instrumento público ou particular ou endosso pignoratício, com a tradição do título ao credor” (grifei).
A doutrina não discrepa. Para Caio Mário da Silva Pereira, o endosso pignoratício, ou endosso-caução, opera-se com a tradição; a garantia se constitui com a traditio do título.(21) Marco Aurélio S. Viana é taxativo: “o título de crédito deve ser entregue ao credor pignoratício, porque o dispositivo legal em comento exige a tradição.”(22) Compartilham idêntico entendimento, Maria Helena Diniz(23), Carlos Roberto Gonçalves(24), Francisco Cláudio de Almeida Santos(25), Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes(26) e Francisco Eduardo Loureiro, para quem “a entrega do título ao credor pignoratício, em razão da sua literalidade e necessariedade, é constitutiva do penhor”.(27) (grifei).
De mais a mais, a inscrição do penhor no Registro de Títulos e Documentos, prevista no CC/1916, na Lei n.º 6.015/1973 e no CC/2002(28), e, particularmente, a averbação do endosso-caução no Registro de Imóveis, também contemplada pela Lei n.º 6.015/1973(29), e autorizada pelo CC/2002(30), jamais dispensaram a tradição do título de crédito: de fato, nesta residem a constituição da garantia em foco e a sua correspondente publicidade.
Aliás, por isso, alguns doutrinadores, interpretando, creio, corretamente, a regra positivada no artigo 1.458 do CC/2002(31), afirmam que o penhor especial que recai sobre título de crédito prescinde de inscrição no Registro de Títulos e Documentos.(32) Para Francisco Eduardo Loureiro, por exemplo:
em vista das particularidades dos títulos de crédito, a constituição do penhor difere das demais modalidades. Exige-se apenas o instrumento público ou particular, ou endosso pignoratício e a tradição do título ao credor endossatário pignoratício. Dispensa-se o registro dessa modalidade de penhor no Registro de Títulos e Documentos, uma vez que a publicidade decorre da própria posse do título representativo do crédito empenhado.(33)
E tal raciocínio, penso, vale para a averbação do endosso-caução, que não constitui a garantia pignoratícia e, embora relevante para a sua oponibilidade contra terceiros, tampouco se presta, veremos, para conferir-lhe eficácia em face do devedor hipotecário. De resto, confortando as conclusões relativas ao plano da existência, o § 2.º do artigo 910 do CC/2002 acentua: “a transferência por endosso completa-se com a tradição do título.” E segundo Marcelo Fortes Barbosa Filho, “indica estar perfeito o endosso com a tradição do documento, isto é, com sua entrega física ao endossatário.”(34)
Se isso não bastasse, a endossatária-caucionada, a credora pignoratícia, consoante admitiu em sua manifestação, não deu ciência do endosso-caução aos devedores hipotecários, fiando-se, exclusivamente, na averbação do endosso-caução (fls. 50/54), insuficiente, consoante adiantado, para produzir os efeitos pretendidos.
Para a eficácia perseguida, a ciência, a notificação dos devedores hipotecários – judicialmente, pela via epistolar ou telegráfica, por meio dos serviços dos Registros de Títulos e Documentos ou outro meio idôneo -, era indispensável, à luz do disposto no artigo 1.069 do CC/1916(35) (reproduzido com linguagem mais técnica pelo artigo 290 do CC/2002(36)), com incidência expressamente autorizada pelo artigo 16, caput, do Decreto-Lei n.º 70/1966(37).
É natural que assim seja. A simples averbação do endosso pignoratício não tem, consoante bem reconheceu o legislador, aptidão para cientificar os devedores hipotecários a respeito da caução. Não se presta a evitar que paguem ao credor hipotecário. Logo, para dar-lhes conhecimento, produzindo a garantia, assim, plenos efeitos contra eles, exige-se a notificação pessoal (prescindível apenas se existir documento no qual se declaram cientes do endosso-caução), não bastando a publicidade ficta advinda da averbação.
Ademais, as peculiaridades do crédito hipotecário incorporado ao instrumento cedular justificam tal exigência. O fracionamento do pagamento em prestações, quitadas periodicamente independentemente da apresentação do título representativo do crédito, em sistemática própria das relações jurídicas massificadas, despersonalizadas, revela o acerto da exigência legal.
Se, de um lado, para dívidas que se pagam apenas contra a apresentação do título de crédito, a notificação, tratada no artigo 1.453 do CC/2002(38), e a intimação ventilada, anteriormente, pelo artigo 792, II, do CC/1916(39), e, atualmente, pelo artigo 1.459, III, do CC/2002(40), são facultativas, de outro, para a garantia real que recai sobre a cédula hipotecária, a cientificação dos devedores hipotecários é fator de eficácia.
A cautela imposta, por sua vez, harmoniza-se com a função social do financiamento em destaque, direcionado a resguardar o acesso à moradia, a realização do sonho da casa própria. Está afinada com o princípio da boa-fé objetiva, pois se a inação da endossatária-caucionada, incompatível com os deveres anexos de lealdade e transparência, não pode ser premiada, sob outro ângulo, as justas e legítimas expectativas dos devedores hipotecários devem ser prestigiadas. Tal lógica, de resto, orientou precedentes jurisprudenciais firmados na Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça.(41)
De resto, é possível abordar, na via administrativa, os efeitos do endosso pignoratício em relação aos devedores hipotecários, até porque oportunizada, à credora pignoratícia, cientificada, manifestação nestes autos. Caso contrário, não haveria razão para a previsão expressa no artigo 251, II, da Lei n.º 6.015/1973, segundo a qual o cancelamento de hipoteca pode ser determinado em procedimento administrativo no qual o credor tenha sido intimado.(42)
Por fim, e também ao contrário dos precedentes desta Corregedoria, a quitação dada exclusivamente pela credora hipotecária, lançada no verso da cédula hipotecária, é suficiente para os cancelamentos da hipoteca e da caução: com efeito, a quitação foi outorgada por quem estava na posse do título, resgatado pelos devedores hipotecários, que prescindem da expressa concordância da credora pignoratícia.(43)
Ora, o endosso-caução, do qual tomaram ciência apenas com o resgate da cédula hipotecária, sequer se completou pela tradição e, se reputado fosse constituído, seria ineficaz perante eles, os devedores hipotecários: trata-se solução confortada pelas normas extraídas dos artigos 794(44), interpretado a contrario sensu, e 1.071(45) – com aplicação autorizada pelo artigo 16, caput, do Decreto-Lei n.º 70/1966(46) -, ambos do CC/1916, que correspondem às emergentes dos artigos 1.460, caput(47), e 292(48), ambos do CC/2002.
Em breve síntese: os cancelamentos da hipoteca e da caução, então pretendidos pelos recorrentes, devedores hipotecários, têm respaldo nos artigos 250, III(49), 251, I, II e III, ambos da Lei n.º 6.015/1973, 18, caput, e 24, I e II, ambos do Decreto-Lei n.º 70/1966(50).
Pelo todo exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à apreciação de Vossa Excelência é no sentido de dar provimento ao recurso, então com determinação voltada à averbação dos cancelamentos da hipoteca e da caução.
Caso aprovado o parecer, sugiro sua publicação na íntegra, diante da relevância do assunto e da mudança de orientação que vossa respeitável decisão importará.
Sub censura.
São Paulo, 27 julho de 2012
(a) Luciano Gonçalves Paes Leme
Juiz Assessor da Corregedoria
(1) Artigo 24. O cancelamento da averbação da cédula hipotecária e da inscrição da hipoteca respectiva, quando se trate de liquidação integral desta, far-se-ão: I – à vista das cédulas hipotecárias devidamente quitadas, exibidas pelo devedor ao Oficial do Registro Geral de Imóveis; II – nos casos dos artigos 18 e 20, in fine; III – por sentença judicial transitada em julgado. Parágrafo único. Se o devedor não possuir a cédula hipotecária quitada, poderá suprir a falta com apresentação de declaração de quitação do emitente ou endossante em documento à parte.
(2) Artigo 251. O cancelamento de hipoteca só pode ser feito: I – à vista de autorização expressa ou quitação outorgada pelo credor ou seu sucessor, em instrumento público ou particular; (…).
(3) Sentença proferida, no dia 23 de março de 2004, pelo MM Juiz Venício Antonio de Paula Salles, atualmente Desembargador.
(4) Sentenças proferidas, respectivamente, nos dias 08 de março, 27 de junho, 20 de agosto de 2007 e 12 de março de 2008, da lavra dos MM Juízes Marcelo Martins Berthe (as três primeiras) e Gustavo Henrique Bretas Marzagão (a última).
(5) Artigo 18. A liquidação total ou parcial da hipoteca sobre a qual haja sido emitida cédula hipotecária prova-se pela restituição da mesma cédula hipotecária, quitada, ao devedor, ou, na falta dela, por outros meios admitidos em lei. Parágrafo único. O emitente, endossante, ou endossatário de cédula hipotecária que receber seu pagamento sem restituí-la ao devedor, permanece responsável por todas as consequências de sua permanência em circulação.
(6) Artigo 22. As instituições financeiras em geral e as companhias do seguro poderão adquirir cédulas hipotecárias ou recebê-las em caução, nas condições que o Conselho Monetário Nacional estabelecer. (grifei).
(7) Sentença da lavra do MM Juiz Gustavo Henrique Bretas Marzagão, hoje Juiz Assessor desta Corregedoria Geral da Justiça, proferida no dia 30 de novembro de 2011.
(8) Sentença de autoria da MM Juíza Maria Isabel Romero Rodrigues Henriques, proferida em 21 de maio de 2010.
(9) Respectivamente, de autoria dos MM Juízes Auxiliares da Corregedoria Geral da Justiça João Omar Marçura, Fátima Vilas Boas Cruz, José Antonio de Paula Santos Neto, José Antonio de Paula Santos Neto, José Marcelo Tossi Silva, Álvaro Luiz Valery Mirra e Álvaro Luiz Valery Mirra, aprovados, na devida ordem, nos dias 18 de dezembro de 2003, 20 de fevereiro de 2004, 20 de setembro de 2004, 28 de janeiro de 2008, 03 de março de 2008, 01.º de setembro de 2008 e 03 de março de 2009, pelos Excelentíssimos Corregedores Gerais da Justiça Luiz Elias Tâmbara, José Mário Antonio Cardinale, José Mário Antonio Cardinale, Ruy Camilo, Ruy Camilo, Ruy Camilo e Luiz Elias Tâmbara.
(10) Artigo 251. O cancelamento de hipoteca só pode ser feito: I – à vista de autorização expressa ou quitação outorgada pelo credor ou seu sucessor, em instrumento público ou particular; (…); III – na conformidade da legislação referente às cédulas hipotecárias.
(11) Cf. nota 1.
(12) Parecer de autoria do MM Juiz Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça José Antonio de Paula Santos Neto, aprovado, no dia 18 de junho de 2009, pelo Excelentíssimo Corregedor Geral da Justiça Ruy Pereira Camilo.
(13) Parecer da lavra do MM Juiz Auxiliar da Corregedoria Walter Rocha Barone, aprovado, no dia 17 de dezembro de 2009, pelo Excelentíssimo Corregedor Geral da Justiça Reis Kuntz.
(14) Parecer de autoria do MM Juiz Auxiliar da Corregedoria Hamid Charaf Bdine Júnior, aprovado, no dia 22 de abril de 2010, pelo Desembargador Antonio Carlos Munhoz Soares.
(15) Artigo 10. É instituída a cédula hipotecária para hipotecas inscritas no Registro Geral de Imóveis, como instrumento hábil para a representação dos respectivos créditos hipotecários, a qual poderá ser emitida pelo credor hipotecário nos casos de: I – operações compreendidas no Sistema Financeiro da Habitação; II – hipotecas de que sejam credores instituições financeiras em geral, e companhias de seguro; III – hipotecas entre outras partes, desde que a cédula hipotecária seja originariamente emitida em favor das pessoas jurídicas a que se refere o inciso II supra (…).
Artigo 16. A cédula hipotecária é sempre nominativa, e de emissão do credor da hipoteca a que disser respeito, podendo ser transferida por endosso em preto lançado no seu verso, na forma do artigo 15, II, aplicando-se à espécie, no que este decreto-lei não contrarie, os artigos 1.065 e seguintes do Código Civil. (…). Atualmente, o artigo 1.486 do Código Civil prevê: “podem o credor e o devedor, no ato constitutivo da hipoteca, autorizar a emissão da correspondente cédula hipotecária, na forma e para os fins previstos em lei especial.”
(16) Cf. nota 6.
(17) Artigo 768. Constitui-se o penhor pela tradição efetiva, que, em garantia do débito, ao credor, ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de um objeto móvel, suscetível de alienação. (grifei).
(18) Artigo 1.431. Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação. (grifei).
(19) Artigo 790. Também se equipara ao penhor, mas com as modificações dos artigos seguintes, a caução de títulos de credito pessoal.
(20) Artigo 791. Esta caução principia a ter efeito com a tradição do título ao credor, e provar-se-á por escrito, nos termos dos arts. 770 e 771. (grifei).
(21) Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil: Direitos Reais. Atualizada por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. 20.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. P. 304.
(22) Comentários ao novo Código Civil: dos Direitos Reais. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 767. v. XVI.
(23) Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. 22.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 504. v. 4.
(24) Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 541-542. v. V.
(25) Direito do promitente comprador e direitos reais de garantia (penhor, hipoteca, anticrese). In: Biblioteca de Direito Civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. Miguel Reale e Judith Martins-Costa (coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 150. v. 5.
(26) Código Civil interpretado conforme a Constituição da República: Direito de Empresa; Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 901.v. III.
(27) Código Civil comentado. Cezar Peluso (coord.). 2.ª ed. Barueri: Manole, 2008. p. 1511.
(28) De acordo com o artigo 771 do CC/1916, “se o contrato se fizer mediante instrumento particular, será firmado pelas partes, e lavrado em duplicata, ficando um exemplar com cada um dos contratantes, qualquer dos quais pode levá-lo à transcrição.” Por sua vez, o artigo 791 do mesmo Diploma legal, na seção destinada a cuidar da caução de títulos de crédito, deixou clara a finalidade probatória do registro: “esta caução principia a ter efeito com a tradição do título ao credor, e provarse- á por escrito, nos termos dos arts. 770 e 771.” Já segundo o artigo 127, II e III, da Lei n.º 6.015/1973, o registro do penhor comum sobre coisas móveis e o da caução de títulos de crédito pessoal serão feitos no Registro de Títulos e Documentos. Por fim, o artigo 1.432 do CC/2002 estabeleceu que o instrumento do penhor comum deverá ser levado a registro no Cartório de Títulos e Documentos, enquanto, na seção do penhor de direitos e títulos de crédito, o caput do artigo 1.452 previu que o penhor de direito se constitui “mediante instrumento público ou particular, registrado no Registro de Títulos e Documentos.” Quer dizer, no penhor de direitos, o registro, porque ausente a entrega do bem, crédito incorpóreo, é constitutivo da garantia real.
(29) Artigo 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I – (…); II – a averbação: (…); 7) das cédulas hipotecárias; (…). Artigo 246. Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. (…).
(30) Artigo 289. O cessionário de crédito hipotecário tem o direito de fazer averbar a cessão no registro do imóvel.
(31) Artigo 1.458. O penhor, que recai sobre título de crédito, constitui-se mediante instrumento público ou particular ou endosso pignoratício, com a tradição do título ao credor, regendo-se pelas Disposições Gerais deste Título e, no que couber, pela presente Seção.
(32) Cf. Nestor Duarte. Penhor de título de crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 162-165.
(33) Op. cit., p. 1511.
(34) Código Civil comentado. Cezar Peluso (coord.). 2.ª ed. Barueri: Manole, 2008. p. 849.
(35) Artigo 1.069. A cessão de crédito não vale em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.
(36) Artigo 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.
(37) Artigo 16. A cédula hipotecária é sempre nominativa, e de emissão do credor da hipoteca a que disser respeito, podendo ser transferida por endosso em preto lançado no seu verso, na forma do artigo 15, II, aplicando-se à espécie, no que este decreto-lei não contrarie, os artigos 1.065 e seguintes do Código Civil.
(38) Artigo 1.453. O penhor de crédito não tem eficácia senão quando notificado ao devedor; por notificado tem-se o devedor que, em instrumento público ou particular, declarar-se ciente da existência do penhor.
(39) Artigo 792. Ao credor por esta caução compete o direito de: (…); II – fazer intimar ao devedor dos títulos caucionados, que não pague ao seu credor, enquanto durar a caução (art. 794); (…).
(40) Artigo 1.459. Ao credor, em penhor de título de crédito, compete o direito de: (…); III – fazer intimar ao devedor do título que não pague ao seu credor, enquanto durar o penhor; (…).
(41) Súmula 308. A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa Nde compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.
(42) Artigo 251. O cancelamento de hipoteca só pode ser feito: I – (…); II – em razão de procedimento administrativo ou contencioso, no qual o credor tenha sido intimado (art. 698 do Código de Processo Civil); (…).
(43) A título de reforço, o caput do artigo 901 do CC/2002 dispõe que “fica validamente desonerado o devedor que paga título de crédito ao legítimo portador, no vencimento, sem oposição, salvo se agiu de má-fé”, enquanto o seu parágrafo único estabelece que, “pagando, pode o devedor exigir do credor, além da entrega do título, quitação regular.”
(44) Artigo 794. O devedor do título caucionado, tanto que receba a intimação do art. 792, n. II, ou se de por ciente da caução, não poderá receber quitação do seu credor.
(45) Artigo 1.071. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de varias cessões notificadas, paga ao cessionário, que lhe apresenta, com o título da cessão, o da obrigação cedida.
(46) Cf. nota 37.
(47) Artigo 1.460. O devedor do título empenhado que receber a intimação prevista no inciso III do artigo antecedente, ou seder por ciente do penhor, não poderá pagar ao seu credor. Se o fizer, responderá solidariamente por este, por perdas e danos, perante o credor pignoratício.
(48) Artigo 292. Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pública, prevalecerá a prioridade da notificação.
(49) Artigo 250. Far-se-á o cancelamento: I – (…); III – a requerimento do interessado, instruído com documento hábil.
(50) Cf. notas 1, 2, 5, 10 e 42.
DECISÃO: Vistos etc. O primoroso parecer do Juiz Assessor LUCIANO GONÇALVES PAES LEME mostra-se irrepreensível por sua lógica e confere à hipótese a solução mais adequada. Embora os precedentes prestigiassem uma orientação longeva, os tempos reclamam novas posturas, rumo à eficiência da Justiça. O registro é instrumento para assegurar bens da vida mais relevantes do que a mera formalidade. Quando, perante situações jurídicas consolidadas, permanecer na velha trilha implica em obstar a garantia que o registro público se preordena a concretizar, é o momento de se adotar vereda mais consentânea com a realidade. Posto isto, aprovo o parecer e seus irretocáveis fundamentos, conferindo provimento ao recurso administrativo para determinar a averbação dos cancelamentos da hipoteca e da caução. Esta, a partir de hoje, a orientação da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. Publique-se o parecer na íntegra. São Paulo, 31 de julho de 2012. (a) JOSÉ RENATO NALINI, Corregedor Geral da Justiça. (D.J.E. de 14.08.2012)