AÇÃO COMINATÓRIA – OUTORGA DE ESCRITURA – CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – PROPRIETÁRIO – HERDEIROS FIRMATÁRIOS – PROPRIEDADE – REGULARIZAÇÃO – TRANSMISSÃO FUTURA – POSSIBILIDADE
– Afigura-se impossível a determinação de outorga de escritura com base em contrato de promessa de compra e venda de imóvel não firmado pelo proprietário, e sim pelos herdeiros, que não se desincumbiram da obrigação primária e moral de regularização da transmissão da propriedade ocorrida por força da sucessão, para que, em seguida, a transmissão onerosa prometida a terceiro de boa-fé pudesse ser efetivada, ainda que por meio de eventual tutela jurídica cominatória.
Apelação Cível nº 1.0301.12.013357-6/001 – Comarca de Igarapé – Apelante: Remi Leandro Nunes – Apelados: Iracema Fernandes Miguel, Guilherme Fernandes Miguel, Wagner Fernandes Miguel – Relator: Des. Saldanha da Fonseca
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.
Belo Horizonte, 6 de julho de 2016. – Saldanha da Fonseca – Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES. SALDANHA DA FONSECA – Recurso próprio e tempestivo.
A análise dos autos revela que o apelante requer, em face dos apelados, tutela jurídica cominatória (obrigação de fazer) de outorga de escritura.
Alega que adquiriu dos apelados, em 29.08.2011, por meio de contrato particular de compra e venda, os lotes 01, 02, 03, 43 e 44 da quadra 13, com áreas de 426m², 402m², 360m² e 360m². O contrato previu o compromisso de outorga de escritura após o pagamento integral das parcelas, negócio de caráter irrevogável e irretratável. Os apelados quedaram-se inertes e, nas constantes vezes que foram indagados para o cumprimento da obrigação, sempre apresentavam a existência de algum problema. Réus revéis (f. 38/55).
Processo extinto, sem resolução de mérito, por ilegitimidade passiva, com base no art. 267, inciso VI, do CPC (f. 62/63).
O apelante sustenta que os apelados são, respectivamente, esposa e filhos do falecido Valter Miguel, proprietário do imóvel (f. 61). Na qualidade de herdeiros, firmaram o contrato de promessa de compra e venda de imóvel (f. 09/13) e receberam o valor integral da negociação, sem, contudo, cumprirem suas obrigações contratuais. O apelado Wagner é advogado e com o irmão e a mãe venderam um imóvel do qual sabiam não serem proprietários de direito. Enfim, ludibriaram o comprador e se locupletaram de sua torpeza. O fato é que os apelados foram regularmente citados (f. 42, 46 e 54), e já sabedores de que tinham engendrado um ardil para se locupletarem com o dinheiro do comprador, optaram por se quedarem inertes na esperança de que não seriam atingidos pelo comando judicial. Os apelados se obrigaram a assinar a escritura de compra e venda tão logo recebessem o preço integral, fato já ocorrido, de modo que devem ser obrigados a assinar a escritura pública de compra e venda e/ou entregar documento hábil a transferir a propriedade do imóvel adquirido.
O contrato preliminar pode ser considerado como aquele em que as partes se comprometem a efetuar, posteriormente, um segundo contrato, que será o contrato principal. A autonomia privada permite que, por meio de duas relações obrigacionais sucessivas de efeitos diversos, possam as partes produzir negócios. Com o contrato preliminar, as partes não se obrigam apenas a prosseguir negociações, mas a exigir a conclusão de um contrato com certo conteúdo. A distinção entre os dois modelos contratuais é facilitada pela identificação do objeto. Enquanto no contrato principal o objeto consiste na obrigação de dar, fazer ou não fazer, no contrato preliminar, se traduz a obrigação em concluir o contrato principal, é uma obrigação de fazer no momento futuro. A obrigação de fazer, sucessiva nos contratos preliminares, consiste em emissão de uma vontade por parte do contratante, autorizando o ingresso das partes no contrato definitivo. Havendo resistência injustificada à execução espontânea, o contratante lesado exercitará a pretensão de direito material por intermédio da tutela específica da obrigação de fazer, na qual o preceito cominatório (astreintes) desempenhará uma função coercitiva indireta perante o devedor, constrangendo-o a desempenhar a obrigação em juízo. Entretanto, fracassando a modalidade coercitiva, aplica-se o art. 466-A do CPC (art. 501 do CPC/15), com o fito de imposição de execução direta, mediante a tutela sub-rogatória. Sobejando perfeito o contrato preliminar no plano de validade, a vontade do magistrado subsistirá à do devedor remitente, que, de forma injusta, a negou. A possibilidade de obtenção do suprimento judicial demonstra a fungibilidade da obrigação de fazer e serve como título para a obtenção do registro definitivo de compra e venda nas sentenças originárias de contratos preliminares de promessa de compra e venda.
O apelante postula em face dos apelados uma tutela jurídica cominatória (obrigação de fazer) de outorga de escritura pública, após exibir um contrato de promessa de compra e venda de imóvel firmado em 29.08.2011 (f. 09/13), cujo registro imobiliário certificou pertencer a Valter Miguel (f. 61), que não firmou o contrato preliminar exibido de promessa de compra e venda. Tal fato é justificado, no cenário civil (f. 09/13 e 61), pelo óbito anterior do proprietário Valter Miguel, e a promessa de venda posterior ao óbito, celebrada pela meeira e herdeiros (f. 09/13). Tanto é que a apelada Iracema Fernandes Miguel (qualificada como esposa na certidão de matrícula – f. 61) firmou o contrato de promessa de compra e venda qualificando-se como viúva (f. 09).
Como o proprietário não firmou o contrato de promessa de compra e venda de imóvel exibido pelo apelante (f. 09/13 e 61), não sendo possível obter sentença substitutiva da vontade, em desconformidade com o conteúdo do contrato preliminar ou à vista de insuficiente normatização nele encerrada, o pedido de outorga de escritura se mostra juridicamente impossível, porquanto não cabe a quem não é proprietário cumprir um contrato preliminar de promessa de compra e venda de imóvel, exceto se, em se tratando de pessoa viva, houvesse procurador constituído com poderes para tanto, não sendo essa a condição jurídica dos apelados.
Nessa linha técnica, a sentença recorrida carece de ajuste, para que a extinção do processo, sem resolução de mérito, decorra da impossibilidade jurídica do pedido, e não de ilegitimidade passiva atrelada à pessoa do proprietário que não firmou o contrato preliminar. Cumpre perceber que a legitimidade para a causa consiste na qualidade da parte de demandar e ser demandada, portanto, de estar em juízo. A legitimidade se verificará quando se estabelece um vínculo entre a parte autora da ação, a pretensão trazida a juízo e o réu, analisando-se, em concreto, a situação apresentada. Como a causa de pedir é um contrato preliminar de promessa de compra e venda de imóvel, com base nele, deve ser aferida uma eventual carência da ação, que se mostra efetiva em relação à impossibilidade jurídica do pedido, nesse momento processual.
Sem embargo, a situação técnica destes autos remete ao instituto da sucessão (art. 1.784 do Código Civil). A abertura da sucessão causa mortis ocorre no instante da morte. Herança é o conjunto do patrimônio do de cujus, incluindo o ativo e o passivo por ele deixados. Os herdeiros só respondem pelo passivo nos limites da força da herança (art. 1.792 do Código Civil).
Aberta a sucessão, a herança se transmite, desde logo, aos herdeiros legítimos ou testamentários. A expressão desde logo significa que a transmissão da herança aos herdeiros acontece no instante da morte. O intuito é que o patrimônio não fique sem titular sequer por um momento. A transmissão da herança ocorre de pleno direito, ainda que o herdeiro desconheça a morte do autor da herança. Não só o domínio, mas a posse se transmite aos herdeiros no exato instante da morte, ainda que não saibam da morte e não detenham nenhum bem da herança. A posse transmitida é a indireta, que não demanda apreensão física (art. 1.197 do Código Civil). A transmissão da posse, na abertura da sucessão, caracteriza o droit de saisine, que não se aplica no caso de herança jacente (arts. 1.819 a 1.823 do Código Civil).
Portanto, como o apelante negociou com os apelados em contrato preliminar a compra de um imóvel, cuja propriedade lhes foi transmitida por herança, e a certidão de matrícula atualizada faz prova cabal de que ainda não foi inventariado e partilhado (f. 61), de ação própria, o apelante deverá se valer para obter, em face dos apelados e do espólio, uma tutela jurídica constitutiva do direito de transmissão da propriedade imobiliária negociada, isso em razão do preço provado pago aos herdeiros e da promessa formal destes de outorgarem escritura pública constante de um contrato preliminar (f. 10) em desconformidade com a verdade dos fatos, sobretudo pela omissão dolosa relacionada à obrigação fundamental primeira de inventariar e partilhar o imóvel negociado. De outro modo, o apelante poderá se valer do decurso do tempo (prescrição aquisitiva) para haver, em face dos apelados e do espólio, uma tutela jurídica constitutiva do direito originário de propriedade, sendo o contrato celebrado elemento de prova do início da posse.
Por epílogo, afigura-se impossível a determinação de outorga de escritura com base num contrato de promessa de compra e venda de imóvel não firmado pelo proprietário, e sim pelos herdeiros, que não se desincumbiram da obrigação primária e moral de regularização da transmissão da propriedade ocorrida por força da sucessão, para que, em seguida, a transmissão onerosa prometida a terceiro de boa-fé pudesse ser efetivada, ainda que por meio de eventual tutela jurídica cominatória.
Com tais razões, nego provimento à apelação, para confirmar a sentença recorrida, mediante acerto técnico de sua parte dispositiva, pois a extinção do processo sem resolução de mérito decorre da impossibilidade jurídica do pedido, e não de ilegitimidade passiva, com base no inciso VI do art. 267 do CPC.
Custas, pelo apelante, suspensa a exigibilidade, na forma do art. 98, § 3º, do CPC.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Domingos Coelho e José Flávio de Almeida.
Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.
Fonte: DJE – MG