É instável a união entre doutrina e jurisprudência no Brasil. Usualmente se crê na jurisprudência como sendo o conjunto de decisões exaradas pelos tribunais pátrios. Corre-se por aí risco de encontrar mero banco de dados. A jurisprudência vai além, se configura como verdadeiro método, isto é, um caminho para a atribuição de sentidos e interpretações dos vários campos jurídicos conformadores de um ordenamento. Não raro, a doutrina se cinge à reprodução sistematizada; deve também ir mais longe. Experiências e conhecimentos são duas faces de uma mesma moeda.
A jurisprudência pressupõe a consolidação de uma hermenêutica que seja coerente, mas não engessada, atenta à força normativa dos fatos e que não se perca no relativismo, enfim, que solidifique os entendimentos dos tribunais projetados da cultura jurídica do país. E isso a fim de se ter um reduto de segurança jurídica e previsibilidade dos tribunais, que seja palpável e não se esboroe com a primeira brisa.
Considerando esses elementos como pressupostos para a afirmação de uma verdadeira jurisprudência, é mesmo temerário defender que haja uma jurisprudência civilísitica geral no Brasil, quanto menos no âmbito do Direito de Família. Há acesa atividade jurisdicional e um frenético exarar de decisões. Contudo, há método formado para a atribuição de sentidos? A existência de inúmeras decisões em mesmo sentido sobre um determinado tema ainda não é de todo suficiente; é mandatória consolidação hermenêutica, de modo que haja preocupação com o constructo do julgamento, sua fundamentação e forma de análise.
No âmbito do Direito de Família, alguns temas evidenciam essa clivagem. Um exemplo é o artigo 1.790 do Código Civil que trata das regras de sucessão do companheiro. Não parece haver sincronia entre os tribunais brasileiros na declaração de constitucionalidade ou não do referido dispositivo, isso considerando toda a produção literária acerca do método civil-constitucional de análise jurídica e mesmo depois da guinada do direito de família em prol do afeto (sem absolutismos, por evidente) como denominador comum das relações familiares, de modo a igualar (respeitando a diferença) os diversos modos de família. Controvérsia também se apresenta no tema da separação convencional de bens, mormente a partir da dicção do artigo 1.829, gerando decisões judiciais em todos os sentidos.
Não se espera do Judiciário respostas tout court que a própria sociedade ainda não consegue dar. Sabe-se bem que o mundo sensível caminha deveras mais depressa do que pode acompanhar o ordenamento jurídico, cabendo ao magistrado trazer a solução a casos que ainda não encontram parâmetro jurídico. Nesse sentido, a controvérsia entre decisões judiciais é plenamente compreensível e mesmo saudável, porque faz parte de um processo de amadurecimento, baseado em tese e antítese, que deverá desaguar em verdadeira síntese posteriormente, por meio da solidificação jurisprudencial. Dessa forma, seria mesmo injusto querer impor ao juiz, a todo o tempo, a figura dworkiniana do juiz Hércules, quando a sociedade como um todo ainda não levou a efeito debates suficientes para formar posições. No entanto, não é aqui que reside a crítica. O problema está verdadeiramente na ausência de jurisprudência e consequente falta de segurança jurídica em temas amadurecidos, mas que ainda não se encontram pacificados dentro dos tribunais.
Ademais, não se está aqui a defender criação imutável, que nunca encontre oposições em função de um suposto agir mecânico dos magistrados. Longe disso. A criação jurisprudencial que se defende é aquela conectada à realidade e às transformações sociais, de modo que a aplicação do direito não fique estanque e desatualizada frente às necessidades do tempo. Destarte, é salutar uma jurisprudência em constante transformação, o que não é o mesmo que ausência de jurisprudência. Neste diapasão, há que se considerar o papel prospectivo da jurisprudência, isto é, a atividade do julgador não se resume à seleção dos comandos legais, no sentido kelseniano primitivo da superficial subsunção da norma ao fato. Muito além, a jurisprudência, sem fugir da norma, tem um papel atualizador, que não conflita com o papel ao atribuído ao legislador, mas adapta a norma ao tempo. Nesse sentido, a segurança jurídica que se almeja não é formal, engessada e insolúvel. Em verdade, o conceito de jurisprudência que aqui tem se defendido — como um caminho hermenêutico para a atribuição de sentido à norma frente o caso concreto — captura a ideia de segurança jurídica que pressupõe um fluxo entre o intento de perenidade e a pulsão de transformação. Basta acompanhar, no tema, os dois últimos anos nas específicas turmas do Superior Tribunal de Justiça para a matéria.
Os desafios para se criar uma verdadeira jurisprudência, no sentido de consolidação hermenêutica, no Direito de Família, ou no Direito Civil de modo geral, ainda são muitos. Desse desafio não escapa nem mesmo o Direito Constitucional diante do protagonismo e mesmo ativismo do Supremo Tribunal Federal.
E estado atual da arte do direito é indiscutivelmente complexo, desde a virada fundamental da estrutura para a função preconizada por Norberto Bobbio. O estrito regulamento jurídico, imprescindível, sem dúvida, não basta para dar respostas satisfatórias aos problemas — cada vez maiores — do dia a dia. É indispensável a interlocução com os outros campos do saber de modo a enriquecer a ratio decidendi. É crescentemente necessário que os julgadores tenham de recorrer a princípios para a construção de sua convicção, e, nesse paradigma, a estrita dogmática, de todo relevante, nem sempre é suficiente.
Nem mesmo dentro do próprio campo jurídico parece existir um diálogo efetivo entre a jurisprudência e a literatura jurídica; se, por um lado, a doutrina raramente se preocupa em analisar metodologicamente a jurisprudência — que é o objeto de análise por excelência da chamada ciência jurídica — de outro, os tribunais se utilizam da literatura jurídica, mormente, como forma de legitimação de decisões já construídas. Essencial, portanto, afinar essa relação. O intercâmbio de conhecimentos e experiências é fundamental para a construção de uma jurisprudência efetiva.
Ousadia demasiado seria tentar esgotar o assunto aqui. No entanto, é fundamental que se atente a esse quebra-cabeça e as suas consequências na vida judiciária brasileira, que acabam por se refletir materialmente na sociedade.
Daí emerge dever de todos juristas, não só magistrados, a fim de caminhar no sentido da construção de uma verdadeira jurisprudência em nosso país, fazendo desse processo metodológico uma travessia permanente de segurança jurídica material. Quiçá estabilizando-se a relação entre doutrina e jurisprudência, advenha aí uma virtuosa união.
Fonte: ConJur