Da ciência do direito notarial (primeira parte)
Desembargador Ricardo Dip
16. Nas duas notas anteriores desta série “Notas sobre Notas”, procurou discutir-se acerca do predicado “artístico” atribuído à atividade e à obra notarial.
Agora, cabe considerar se é ou não justificado atribuir ao direito notarial o termo “ciência”.
Isto se versará com a discussão (breve, como convém às circunstâncias) destas três questões: (a) o conceito de “ciência jurídica”; (b) a distinção da ciência notarial no âmbito dos tipos de saber jurídico; (c) a natureza da ciência do direito notarial.
A primeira dessas questões é o objeto da presente nota.
17. A ideia de “ciência”, em seus albores, incluía-se no conceito de “artes”. Assim, tal se recolhe nas lições de TATARKIEWICZ, para os pré-socráticos, as “artes perfeitas” eram algo do que hoje designamos por “ciências” (p.ex., as matemáticas e a astronomia); em Cicero, entre as “artes medianas” arrolavam-se as intelectuais (ou seja, o que agora se entendem “ciências”), e também Plotino considerava ser “arte” a geometria. As artes do trivium e do quadrivium −gramática, lógica, retórica, geometria, astronomia, aritmética e música− não acolhiam nada do que hoje se entende por belas artes, averbada a circunstância de que a música era então só a teorização da harmonia. Assim, àquela altura, uma ciência do direito era algo nominalmente próprio da noção de “arte” e, como se verá adiante, um estudo incluído no território do trivium.
18. Nada obstante essa antiga inclusão rotineira da “ciência” no conceito de “artes”, já ARISTÓTELES distinguira umas e outra. As artes, para ele, consistem numa produção de coisas materiais, com ou sem significado espiritual, ao passo que a ciência remete a um saber com fundamento racional desvinculado de uma produção transcendente.
Com esta acepção, a ciência é o resultado histórico de um progressivo aperfeiçoamento racional das técnicas e distingue-se das artes, nisto que estas buscam uma transcendência imediata (útil ou belo), ao passo que a ciência, inclinada a um saber seguro e investigativo das causas reais dos entes, não se volta, contudo, à imediatidade produtiva.
Já, em sentido moderno, a “ciência” abdicou de ser um conhecimento seguro e restringiu-se, frequentemente, a um saber experimental, tendendo mesmo à contrametafísica (ou seja, nada é real, exceto o que a ciência afirmar que o é).
19. A noção aristotélica de “ciência” quadra bem com o conceito de “ciência jurídica”, e, neste sentido, Francisco Elías de TEJADA −que foi um dos maiores jusfilósofos do século XX (para não dizer mesmo que foi o maior deles)− define a ciência do direito “o saber de algum ramo jurídico particular, com pretensões de conhecimento seguro, universal e sistemático”.
20. Conhecimento seguro, porque, discursivo, apoia-se em premissas suficientes; conhecimento universal, porque sua validade não depende das variáveis do tempo e da geografia, supostas idênticas condições (outra coisa é que seu objeto material possa variar aqui e ali ou em tempos diversos); conhecimento sistemático, ou seja, uma ordenação −ou melhor, coordenação− de vários elementos, hierarquizados, integrantes de um todo.
21. Fez ver muito bem VALLET DE GOYTISOLO que essas características já se foram gestando, de maneira paulatina, no saber dos jurisconsultos romanos, ainda no período pré-clássico. Elaboraram-se então as primeiras noções jurídicas (obligatio, hereditas, possessio, res etc.). Consolidaram, depois, os romanos um “saber de precedentes” −mediante a progressiva enunciação de regras extraídas de casos. Seguiu-se a sindicância das causas dos termos e das instituições jurídicas, e, por fim, sua integração sistemática.
22. A doutrina romana pós-clássica chamou o caso de species, e os juristas de Roma lentamente progrediram na trilha da extensão analógica para atingir os princípios gerais, formulando-os como regulæ (sugestiva, neste passo, é a leitura de D’ORS, Derecho Privado Romano). Chegavam-se a regras que se inventavam (é dizer, descobriam) com a experiência do concreto. Assim, a jurisprudência recolhe a divinarum et humanarum rerum notitia (notícia das coisas humanas e divinas), mas não prodigaliza, nem precipita a elaboração interna da iusti atque iniusti scientia (ciência do justo e do injusto), senão que vai, isto sim, progressivamente, articulando e aprofundando a notícia de todas as coisas, geração após geração.
23. Disso resultava a provisoriedade de toda normativa, porque, se a regula se inferia, por abstração, a contar da experiência das coisas −o que lhe conferia uma autoridade de prova dos tempos vividos−, não se elevava, porém, à condição de um imperativo irrevogável para todo o tempo futuro.
O “direito” provisório −i.e., a regra provisória− não pode menos do que ser secundária da res que sempre a pode mudar. Mas essa secundariedade da normativa −que afasta, de saída, um “platonismo de regras”− não induzia, entre os romanos, o excesso oposto do situacionismo ou “occamismo jurídico”, porque se compensava pela permanência dos juízos que conservavam a experiência vivida, o patrimônio experiencial. Permanência essa que importava no reconhecimento de uma verdade anterior: de fato, “uma verdade que não existisse antes −disse muito bem ROMANO AMERIO− não seria uma verdade”.
Numa linguagem para os dias de hoje, pode talvez dizer-se que o patrimônio entregue de geração a geração se aproxima, em alguns aspectos, da ideia de um paradigma hegemônico, que fica a salvo de aventureiros, mas, por certo, não está livre da dialética. À luz dessa experiência, vê-se que a tradição, com seu genuíno sentido de entrega, constitui um topos para todo o saber jurídico e um elemento essencial para um verdadeiro progresso.
24. Na Alta Idade Média, tem-se maior visibilidade desse possível caráter científico do saber do direito.
As restrições impostas pelo Imperador Justiniano aos estudos jurídicos (demarcando-os em Roma, Constantinopla e Berito −Beirute) induziram que os juristas se formassem no trivium, especialmente na retórica, alçando-se a fortalecerem-se na dialética.
Assim, o estudo do direito, no Alto Medievo, está intimamente ligado ao das ciências da retórica e da lógica, de modo que delas extrai aquele as características de sistema e de método.
Não foi por acaso, pois, que, progressivamente, o Notariado latino emergiu na Idade Média, nem que a medieval Aurora de ROLANDINO tenha então buscado “dissipar as sombras da ignorância noturna na arte notarial”, propiciando, com a paulatina racionalização das técnicas, o que EMÉRITO GONZÁLEZ observou serem “esplendores de luz meridiana” para abrir “amplos horizontes doutrinais”.
Já não se tratava de simples técnicas formulárias, já não se cuidava de mero exercício de uma arte útil, mas, a essa altura, a consagração de uma passagem histórica: o que era sobretudo uma arte de textualização dava passos seguros para constituir uma ciência, a ciência do direito notarial.
25. É verdade que estamos agora em tempos um tanto regressivos: a ciência do direito, desde a modernidade, passou a centrar-se na ideia de “lei”, submetida ao mito decimonônico de que a sociedade política responde a uma ordem racional determinativa, de sorte que a ciência jurídica moderna se inclinou não apenas a ser uma leitora/repetidora das regras de turno −sua tendência nominalista−, mas também, em face do crescente avultamento do Estado, a considerar redutivamente o direito como expressão estatal.
Essa moderna restrição exegética, em rigor, afasta o direito do âmbito da ciência, porque implica uma ruptura com o atributo de universalidade.
De toda a sorte, porém, continua a falar-se em “ciência do direito” −frequentemente confundida, tal se apontou, com a atividade apenas prudencial da exegese de normas postas− e também, apesar de tudo, formam-se ainda verdadeiros cientistas do direito (e muitos do direito notarial, felizmente) aptos a fazer ciência, suplantando os estreitos limites do nominalismo a que se limita a dogmática jurídica.
26. Em nossa próxima nota, versaremos a posição do saber científico-notarial no quadro dos vários tipos de saber jurídico.