carregando ...
logo-menu Notários
logo-whatsapp WhatsApp

Notas sobre Notas – Tema VI: Do princípio notarial da veracidade – Segunda Parte – Desembargador Ricardo Henry Marques Dip

Do princípio notarial da veracidade (continuação)
 
Des. Ricardo Dip
 
 
66.      Tal já ficou dito, o princípio da veracidade notarial, lógica e historicamente, precede e justifica a fides publica que, entre os séculos XII e XIII, no Império romano ocidental, concedeu-se pela potestas política aos notarii, com que, a partir desta agregação de predicado, passaram eles a constituir o corpo e o tipo do Notariado latino ou românico, designando-se cada um deles, já de modo apropriado, com o título de notarius publicus (ou seja, deu-se o acréscimo usual deste qualificativo “publicus”).
 
67.      A isto se chegou historicamente (valho-me aqui, de modo amplo, das paramétricas lições de Bono e de Vallet), pela continuada gestação de redatores profissionais –práticos no dictare que, na segunda metade do século XI, ensejará o aparecimento da disciplina da ars dictandi−, reunidos em escolas (scholæ), devotados, sobretudo, a aprender as artes do trivium (gramática, dialética e retórica).
 
            Foram os scriptores que, de maneira paulatina, estudando as fórmulas redacionais com as cautelas jurídicas experienciadas ao largo do tempo, e que, já no começo da Baixa Idade Média, especializavam-se nos estudos do direito, propiciaram que a ars dictandi se convertesse em ars notariæ, a que ainda se viria adicionar a ars dictaminandi (a arte dos pareceres).
 
68.      Essa vívida e vivida competência profissional, fruto de uma sadia multissecular tradição de estudos e práticas de escrivania (judicial e negocial), teve um relevante aporte ético para a trajetória da configuração do notarius publicus. Já se fez referência, p.ex. (nas “Notas sobre Notas” n. 9), às Capitulares de 824 do Imperador LOTÁRIO I (795-855), impondo o juramento notarial, cuja fórmula homenageia a veracidade: os notários não devem fazer escrito falso (“quod nullum scriptum falsum faciant”).    Séculos depois, na Itália  baixo-medieval, do tabellio publicus, para exercitar seu officium, exigia-se, com juramento, não somente aptidão técnica, mas educação na prudência e fidelidade (fidelitas): lia-se, a propósito, nas XII Tábuas: “patronus si cliente fraudem fecerit, sacer esto” (: seja maldito o patrono que fraudar seu cliente).
 
                        Importa sublinhar que, em larga medida, a idoneidade do exercício do notariatus pode tributar-se ao papel central desempenhado pelas scholæ, sob o influxo da Igreja –não só as escolas monacais, episcopais e catedralícias, mas até as laicas palatinas, o que se explica por esse período medieval ser o paradigmático da Cristandade. Aliás, é interessante referir uma observação de Bono, qual a de, nas escolas claustrais, adotar-se a prática do ditado (a praxis do dictare), com que se foi, efetivamente, depurando as atuações e unificando as fórmulas que viriam a consagrar a ars notarii
 
69.                  A concessão política da fides publica notariis é, portanto, um reconhecimento da confiança solidada que a comunidade pôs na atuação profissional moralmente idônea e de estendida competência técnica e prudencial dos scribæ et notarii. Ou seja, aqui perfilhando os passos seguros da doutrina de Rodríguez Adrados: o princípio do fidem facere, é dizer, o atributo da conferência de plena fides a um documento pelo só fato de esse documento formalizar-se pelo notário em forma regrada (publica forma), foi concedido aos notários exatamente porque se reconheceram eles “por ser juristas prácticos especializados en la documentación de contratos y testamentos”.  Não, pois, o revés: a veracidade não resulta, lógica ou historicamente, da dação de fé pública, mas é a fé pública um atributo resultante da constância histórica da atuação profissional dos escribas e notários, no exercício da “Magistratura da Verdade”.
 
70.                  Que é, porém, a verdade? E qual a extensão da verdade que se espera abrangida na atuação notarial?
 
71.                  Comecemos por uma excursão etimológica, a que dedicaremos nosso próximo artigo desta série “Notas sobre Notas”.
 
                        Não custa agora dizer, todavia, que não se deve aguardar de uma apreciação meramente nominal e, em acréscimo, de origens, uma explicação exaustiva do significado real de um termo (e da coisa a que ele se refere). Mas é intrigante considerar, ficando isto como um atrativo para nosso artigo seguinte, que, em grego, a “verdade” corresponde ao termo “alétheia”: “a” (privativo) + “látos” ou “léthos” (esquecimento), vale dizer, o que é lembrado, descoberto, desvelado, inventado. Rábade Romeo, numa valiosa obra sobre a verdade, lembra que a mitologia grega hipostasiou o conceito de “látos” (ou “léthos”) com a fantasia de um “rio do esquecimento” (o Rio Lethe), situado no Hades e cujas águas tinham o poder de apagar a memória.  A memória de que o notariado e o registro público se fazem custódios.
 
                        (Continuaremos).
                                 
  Confira abaixo os outros artigos da série.
Tema I: Ciência e arte notariais
Tema II: Ciência e arte notariais (sqq.)
Tema III: Da ciência do Direito Notarial: Primeira Parte
Tema III: Da ciência do Direito Notarial: Segunda Parte
Tema III: Da ciência do Direito Notarial: Terceira Parte
Tema IV: Dos princípios notariais
Tema V: Do princípio da rogação notarial– Primeira Parte
Tema V: Do princípio da rogação notarial – Segunda Parte
Tema VI:  Do princípio notarial da veracidade – Primeira Parte